quinta-feira, 29 de julho de 2021

Os permanentes da estação


 

Edson de França*


Todos os dias é um vai e vem/ A vida se repete na estação/ Tem gente que chega pra ficar/ tem gente que vai pra nunca mais (...) E assim chegar e partir são só dois lados da mesma viagem”, cunharam os poetas Fernando Brant e Milton Nascimento na inesquecível canção Encontros e despedidas (Milton Nascimento, 1985). 

Quando os poetas utilizam a palavra ficar não querem dizer efetivamente permanecer na estação. As estações são portas para quem chegou para ocupar um lugar no espaço da cidade. As estações são lugares de passagem. Não são definitivamente locais de permanência prolongada. Os transeuntes estão ali temporariamente. Objetivos, buscam apenas embarcar em um meio que os transporte a algum lugar outro.

Vão às suas casas atender compromissos profissionais, visitas sociais ou familiares. Chegam à estação, aspiram ar, analisam o ambiente, acabam respirando algo – se forem ao banheiro, então, seus narizes serão contemplados com um misto de odores do cão - e levando consigo suores, fumaças de cigarro, perfume barato, resquícios de gente em movimento em si. Demoram-se pouco. Se vão.

São populações hegemonicamente flutuantes. As estações são mutantes, multiformes, transformam e redimensionam imediatamente sua paisagem. Obedecem à logica cartesiana e inexorável dos relógios. Ali todo mundo tem pressa. Até os que chegam “só para olhar” tem um tempo determinado. 

Seja de ônibus, trens, metrô, o que se quer é sair dali, buscar destinos. Deseja-se, na maioria dos casos, é abandonar o local, permanecer só o tempo da espera. 

Mas como é toda regra tácita, as exceções mostram-se escandalosas. Há uma população que fica, se estabelece, cria raízes. Uma turba que trafega entre o mundo visível e o invisível. Que ficam ali, feito árvores, monumentos a estática humana tão somente por não ter onde ir. Um endereço, um CEP...

Os terminais de integração, as rodoviárias, as estações de trem vivem uma rotina intrépida. Movimento e pouca permanência dão o tom, fazem a logica e até o charme prosaico do local. Os que, por necessidade, ali criam raízes são a vida que estagna, a paisagem vegetativa, a hera, a flor vital exposta a intempéries da razão humana. A paisagem se pintada, cantada, descrita ou documentada, os contempla. Não os inclui, os fixa em cores, sons, versos. A insensibilidade humana, por seu turno, jamais os lê.

*Jornalista, poeta e cronista

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Marchinha do língua de graxa

 

Repartição é uma palavra antiga. O vocábulo “antanho”, como fazem uso os doutos, talvez lhe adjetivasse melhor. Quando penso na palavra, e no ambiente que ela evoca, invoco mentalmente a personagem que a frequentaria. 

Um tipo franzino, trajando calça de brim com vinco acentuado, camisa lisa de manga curta impecavelmente engomada, sapatos gastos, brilhando mais que trilha de lesma. Completando o visu escovinha, o cabelinho repartido no meio e um bigodinho sovina. Em dias mais solenes traja um paletó meio puído, herança de algum tio defunto.

Quem passeia pelas ruas do passado como eu notará que a figura que compus lembra o figurino do personagem “O Amigo da Onça”, criação do cartunista Perícles de Andrade Maranhão, publicado pela Revista Cruzeiro, de 1943 a 1972. Tracei inicialmente os caracteres físicos, mas não esqueci os atributos psicológicos inerentes.

Exemplares do típico funcionário da repartição, que na nomenclatura moderna recebe o nome de secretaria, setor ou escritório, podem ser encontrados nos romances e contos de Machado de Assis e Lima Barreto. 

Imagino-o saindo de casa, às  6 horas e quinze minutos de uma segunda-feira, de sua morada localizada em um subúrbio bem afamado, dando um beijo na testa da “fiel companheira" e proclamando: “Não posso me atrasar para o expediente na repartição!”

A primeira vista ele engana. É muito gente boa. Leva uma vida simples vida simples, frugal, sem muitos vícios. Mas a convivência certamente o levará a concluir que, por trás da lã superficial, encontra-se o verdadeiro “finório da repartição”.

Não quero de forma alguma afirmar que a figura é uma espécie endêmica dentro das repartições do funcionalismo público. Os cartórios estão cheios de engomadinhos suspeitos que compõem, sem jaça, essa irmandade. Aponte o seu, onde quer que esteja.

São gente boa em boa parte. Escondem uns pecadilhos decerto, sob a pele de “cidadãos de bem”. Porém, quando compõem a “legião do mal” se destacam escandalosamente pelo caráter duvidoso, pela ética controversa e, sobretudo, por aquele tapete vermelho portátil que ele estende toda vez que o chefe cruza o batente da repartição.

A repartição se modernizou, é claro. Respira-se outros ares, os figurinos sofreram a influência dos modismos hodiernos. Aquele tipinho foi ultrapassado, assim como as rotinas dos setores. Mas guardem a imagem. A fauna humana que nela se reproduz, entretanto, vez ou outra sente saudades de “antanho” mostra-se exuberantemente reacionária, bem disfarçada por trajes modernos.

A maioria, como dissemos, é gente boníssima. Pacatos na medida certa, educados, prestativos, até ciosos de seus ofícios. Mas, para toda regra rolam exceções estrambóticas. Eis o feudo dos ardilosos, sonsos e sagazes da repartição, aqueles que compartilham expedientes similares ao amigo da onça aludido acima, com o agravante de serem periculosos, com tendências a dedos-duros e, sua maior característica, chaleiras do chefe. 

Em sua homenagem, o poeta popular (no caso, o cronista que vos dirige a palavra), dada as singularidades do colega, traçou os versos que seguem, cantáveis em ritmo de marchinha de carnaval. 


Pra polir bem 

Você não acha

Um lambe botas

Tem que ter língua de graxa



Um escovão 

E uma escovinha

Para manter 

O piso do chefe na linha  


Passa, passa o trapo companheiro 

Lambe até brilhar 

Que o chefe é tenso 

Não dá bom dia 

E anda a procura de uma boa montaria 

De alguém que chegue

Se curve e brigue 

Para manter o calçado real nos trinques 


Dar à tramela

O texto e o tacho

Que lambe-lambe

Já nasceu pra ser capacho 


Deixa-me rir 

Não me socorre 

Que o tal menino

Se não lamber botas morre.


por Edson de França (poeta, cronista e Jornalista)


 


sexta-feira, 21 de maio de 2021

Vivas à incompetência

A incompetência sempre foi uma tônica marcante no sistema de meritocracia instalado por aqui. Ela acomete espécimes vários; por vezes incautos, por vezes, ladinos. Tradicionalmente, sempre convivemos com essas espécies espalhadas por todos os recantos da administração pública. Ironicamente, na iniciativa privada, apesar das exigências mais rígidas, eles também se criam. Em qualquer setor, contudo, a aparição deles parece seguir uma regra tácita e pétrea: mostrou algum grau de incompetência, vai para o começo da fila. Isso quando não viram os protegidos de primeira hora no organograma institucional e no sistema de promoções.

Tal aceitação tem explicações, claro. O incompetente, geralmente, é afável; troca suas limitações por afagos dedicados a quem de direito. Também é falante, simpático e dedicado às atividades triviais e prosaicas do ambiente de trabalho; raramente um incompetente é um mega chato. Claro que as exceções existem, mas, até o final da edição deste textículo, ainda não havíamos recebido os últimos levantamentos acerca dessas ocorrências. 

Por outro lado, quando alçado a algum posto de chefia, o incompetente se transforma. De uma criatura suportável dentro dos limites, torna-se uma excrescência coroada. Um abacaxi estragado, mas com ornamentos no cocoruto. Pensa ele que uma repentina e arranjada ascensão confere, automaticamente, ao portador um naco de poder. Para exercê-lo, por não ter maiores atributos vocacionais e habilidades profissionais,  ele incorpora um papelzinho qualquer para fiscalizar e cobrar trivialidades. A indumentária de capataz lhe cai bem.   

Mas a maior habilidade do incompetente talvez seja a capacidade de adular os chefes; troca fácil a capacidade laborativa por uma boa habilidade de lamber botas, a velha e boa bajulação. O incompetente comum desfila pelos salões com sua fantasia festiva. A fauna, porém, é variada. Não estranhe se do nada um mastodonte se materializar na sua frente, portando toda a sutileza que seu corpanzil admite. Vão sobrar arrogância, nariz empinado e um certo ar de superioridade intrínseco.

Nos últimos tempos, no nosso Brasil in-varonil, verifica-se uma verdadeira onda de incompetências laureadas. Emergiram das catacumbas, do segundo plano e da coadjuvância inofensiva. Empoderados, feito zumbis devoradores de cérebros, ocuparam o proscênio, compondo um espetáculo grotesco e potencialmente perigoso e antiproducente. Afora, claro, suas grandes contribuições satânicas para os ambientes de trabalho: a desarmonia, o desequilíbrio e o desestímulo.Vivemos a época do elogio da mediocridade, da nulidade e da incompetência congênita.

Infiltrados. Podem ser concursados, de carreira ou em comissão. Se espalham  pelas administrações estatais, forças armadas, judiciário, relações exteriores, enfim. No campo político, outra pá de gente estranha, devidamente eleita e empossada. O certo é que escancararam o portal desse inferno particular da vida brasileira e as  incompetências puseram a cara fora da máscara. Além das trapalhadas, naturais da espécie, o discurso que eles proferem serve para compor a pantomima. Incompetência gourmet, mal falante, servida em pratos devidamente sujos.

Para terminar esse texticulo é preciso dizer que o jornalismo e o mundo artístico não escapam dessa onda não. Sem surpresa alguma, pela cena artística figuram certa incompetência para criar (a intrínseca falta de talento) e capacidade de gerenciar a carreira, pecado de quem se acha liberal, mas não sobrevive às leis de mercado. Do lado jornalístico, a fala comprometida vem demonstrando a incompetência de velhísimas raposas da comunicação brasileira, que só conseguem ser independentes quando o vento sopra a seu favor. 

O que salva - ou pode dar sobrevida - a essa galera é que a categoria “incompetente” não é titulo que se lance no currículo. A marca não se fixa no papel, vai estampado na testa mesmo. Afinal, quem vê cara só vê cara.

por Edson de França



Tudo de bom para os otários


Uma vez mais a imprensa põe em tela, por meio de uma revista televisiva domingueira, a questão do uso da “empurroterapia” nas farmácias. Coisa antiga. Não é a primeira e certamente não será a última vez que a imprensa hegemônica baterá nessa tecla, trazendo à luz  um expediente que não representa novidade alguma. Seja para quem trabalha em farmácias, seja para a população que consome produtos farmacêuticos. 

Documento da OAB sobre a CPI voltada para a prática, em 2000, define a expressão BO no ambiente farmacêutico como “medicamento bonificado”, ou seja aqueles remédios “adquiridos da indústria em condições comerciais mais favoráveis”. Por outro lado, a mesma expressão mantém a conotação de “bom para otário” no jargão dos balconistas de farmácia, na venda de produtos sem efeito ou mais caros.

Lá pelos anos 90 frequentei muito um desses estabelecimentos. Uma amiga trabalhava em uma unidade de rede e, de passagem, muitas vezes a visitava nas horas mornas de movimento. Foi ela que me passou a fita. “Tenho pena, dizia ela, de algumas mulheres que chegam aqui desesperadas, com seus pequenos acometidos de alguma enfermidade.”. Questionei o porquê dessa aflição. Explicou-me. “É que cada vez que uma situação dessas ocorre, os balconistas recorrem ao B.O para resolver a questão”.

O tal B.O, numa tradução jocosa, corrente e bem compreendida e internalizada no jargão dos atendentes , seria o “BOM para OTÁRIO”, que nada mais é que a ação pouco honesta, digamos, de promover a venda de um medicamento cujos efeitos são impossíveis de se prever. Muitas vezes medicamentos são empurrados sob alegação de representar economia no bolso do consumidor. 

Geralmente na hora do desespero, da procura aleatória por algum sanativo ou de  uma compra qualquer, os balconistas fazem questão de sugerir marcas similares ou genéricas, produtos mais baratos, enumerar as promoções e promover as benesses dessa ou daquela droga ou suplemento. 

Nessas horas, a farmácia adquire feitio de feira livre. Faz parte do negócio. Estratégia de sugerir necessidades, radiografar o bolso do consumidor e atiçar o consumo. Quanto mais impiedoso se for, melhor para os negócios. Mesmo o consumidor mais desatento já percebeu e desconfiou dessa diligência dos atendentes. Muitos já caíram na conversa e engordaram suas cestinhas básicas com produtos sugeridos. 

Quando  a imprensa se dedica a um tema como esses, o habitual parece ganhar ares de exceção, excentricidade. Nada disso. O grande feito, além da constatação da obviedade corriqueira, é a investigação capaz de mostrar os bastidores dessa prática. Ou seja,  os mecanismos que envolvem laboratórios, redes de farmácia, gerentes de unidades e operadores de balcão. 

Uma corrente (des) virtuosa que, nada mais é, que a aplicação lógica das leis de mercado. Business is money. Vender é preciso. Nenhum negócio se sustenta se as possibilidades  de venda não forem exploradas; se o consumidor não for levado a contribuir, compulsivamente,  com o saneamento do negócio lá na ponta do varejo. Uns ganham muito, outros medianamente, enquanto, lá na base, sobra uma laminha para a raia miúda.

A imprensa cumpre um papel nesse tipo de questão. A iniciativa de levar a cabo uma matéria com este teor deve, contudo, demandar negociações editoriais. Nem sempre interessa aos veículos explorar tais nichos, por razões também comerciais. Quando, por acaso o faz, supera o cotidiano de matérias acorrentadas aos sucessos escabrosos, os anúncios, a superficialidade dos fatos, a ciranda política e o opinismo militante. É a hora e a vez da natureza investigativa do jornalismo.

A empurroterapia como vimos já foi motivo de CPI, essa instituição parlamentar que nada resolve. É motivo popular e pauta da imprensa incontáveis vezes. Sobretudo é uma prática corrente e  reincidente. Enfim, uma agenda perene em todos os escalões da opinião pública. Dos envolvidos diretamente, os operadores dessa bolsa e os que tem sua fé e seus centavos desembolsados. 

Ao fim, resta só a cara dos CEO’s das redes farmacêuticas e presidentes de organizações classistas, mostrados em matéria de nível nacional, negando tudo e prometendo severidade no combate aos abusos. Me engana que eu gamo. Falei que a “empurroterapia” não é novidade para ninguém. E é sério. Sério mesmo é só a cara das velhas corporações do brasil tentando passar o cheque da idoneidade.

por Edson de França


 


 


quinta-feira, 13 de maio de 2021

A voz e a presença das fontes perdidas

 

Para a exploração ou discussão de qualquer assunto é necessária a recorrência às fontes básicas. Por vezes exaustivo, esse é o processo que constitui a base do método de contar ou reconstituir histórias. 

É das fontes que o escriba extrai a água que vai permitir captar fenômenos A luz esclarecedora que vai dar um norte e aclarar o caminho do texto. É lá que se encontram as pérolas mundanas ou raras em forma de informações.

Penso, para esse caso, primeiramente nos livros, nos documentos de toda ordem, nas fotos, filmes e por aí vai. Fontes primárias porém. De certa forma mortas e um tanto quanto empoeiradas.

Em alguns casos, contudo, é preciso buscar, recorrer, acessar pessoas que venham a elucidar ou despejar opiniões sobre um fato; que venham a acrescentar pontos de vista a uma apreciação ou aclarar um episódio com suas experiências de vida e produção. 

São elas a cacimba vívida, o sal e a luz solar que vai dar vida ao texto. É imprescindível e aconselhável, sempre que possível, ouvi-las.

Faço esse preâmbulo para saudar algumas fontes que, com suas experiências, conhecimento e sabedoria, deram vida a variadas produções. O mundo do jornalismo, da ciência, do cinema documental e até da ficção, devem parte de seu brilho a fontes vivas.

Seja pontuando assuntos, sejam  como personagens centrais da narrativa, são elas o extrato mais rico da cultura e o insumo mais precioso da produção do conhecimento veiculado pelas mídias.

Para o jornalismo corriqueiro temos as fontes oficiais, os mandantes da vez, os queridinhos de áreas fins, o discurso competente. Usando uma palavra da moda os “influencers genéricos” de toda ordem. Para determinados temas específicos, porém, é preciso ir mais longe. É preciso valorizar a voz, a inteligência e os arquivos encarnados, com suas vivências, experiência, sua ternura e criticidade. Até mesmo a rabujice e a aspereza dos entrevistados pode ser bem vinda.

Cada vez que algum pesquisador, veterano ou neófito, se aventurava no campo da poesia popular - suas formas, estilos, modos de produção, aspectos históricos - o nome de Manoel Monteiro era pautado. A enciclopédia viva da produção poética popular estava sempre ali, meio carrancudo, a receber pessoas e sanar suas sedes de conhecimento com curiosidades e, vez por outra, um insight novo sobre o assunto.

Nas areias de Cabo Branco ficaram marcados os passos do velho senhor que ali habitava. Parentes próximos eram funcionários da casa e tive o prazer de entrar nas dependências antes que ela se tornasse Fundação. Por diversas vezes soube de grupos de estudantes secundaristas que visitavam a casa para colher depoimentos. Conta a história que, de seu retiro, José Américo era uma referência para políticos que o visitavam frequentemente. O cineasta Vladimir Carvalho registrou os passos do Homem de Areia, dimensionando-o também como uma importantíssima fonte histórica.

            Pincei de memória essas duas figuras para exemplificar a força da fonte que, como frisei no princípio, são como bebedouros onde se busca saciar a sede que nasce com a curiosidade do saber.

Penso entrementes o valor de um Ariano Suassuna para as coisas da cultura popular nordestina, de um Câmara Cascudo para o folclore, de um Zuza Homem de Melo para a entremeios e redondezas da Música Popular Brasileira. Fontes que, apesar das páginas escritas, se foram deixando este vazio que só seria preenchido com suas vozes e observações iluminando veredas e abrindo caminhos para novas análises e pontos de vista.

por Edson de França (Jornalista, Poeta e Cronista)

 

O bípede exibido

             


Não sou louco de desafiar seu ninguém para uma disputa de apoio de frente - flexão de braço no solo , como chamam os especialistas. Sei, e bem, das minhas limitações físicas e não detenho “histórico de atleta" para exibir. Nem para usar nas mentiras que, por acaso, venha a compartilhar em mesa de bar. Consequentemente, também não tenho a mínima disposição atlética para aceitar um desafio desses. Eu tenho um nome a zelar.

Caso incorresse nessa bravata, acabaria, por um lado, roubando os concorrentes, pela total inapetência para a perfeita prática do exercício. Por outro, experimentando as faces do ridículo humano e expondo-me a vergonha pública.

Para quem não sabe - e um militar cioso de seu papel mais que tudo tem que saber - que a execução do exercício exige uma postura. Há entre nós, porém, bípedes que não se negam a se submeter ao ridículo humano. 

Conheço criaturas “mitológicas” que não se furtam a entrar numa façanha dessas, só para tentar dar provas de sua biografia de caserna e esportiva. Coisas de antanho e necessariamente  Também, por uma limitação nos níveis de testosterona, a mania de cultivar atos capazes de reafirmar sua masculinidade constantemente. 

Assisti em vídeos algumas performances do pavão e concluí: o rapaz foi um militar de péssima estirpe e um atleta de proezas questionáveis. Chamavam-no “cavalo” nos tempos de caserna, dizem. penso que o apelido caiu-lhe bem como uma homenagem aos seus dotes intelectuais. 

Mas voltemos ao apoio de frente. Pense numa lagartixa com escoliose e terás a figura do “atleta”. A única parte que conseguia erguer era do peito para cima e do pescoço. Ou seja, totalmente em desacordo com a execução perfeita do exercício exigida dos aquartelados.  

Pior. A total indisposição para acertar o exercício mostra características psicológicas da mente viciada do personagem: o auto engano, a bravata, o exibicionismo e a capacidade ilimitada de engodo. 

 Parece-me que a performance do nosso personagem está mais para "postura" que se atribui ao galináceo do gênero feminino que qualquer outra coisa. Uma ave emplumada apenas. Temporariamente coroada,  ela se crê algo além de um mísero resíduo genético dos grandes diplodontes.  Exibido, arrogante, mas pequeno; não passou de coisa, não chegou a ser gente. 

Não me convidem para desfilar com a sub-espécie, meu status humano não permite. Tenho um nome a zelar.

por Edson de França


O que você anda pensando, escreva!

 

Edson de França*

 

Circula pelas redes uma expressão muito significativa. “Nunca se escreveu tanto, tão errado e se interpretou tão mal”. Assunto a se pensar bem nos tempos que nos veem passar.

Os humanos depois que dominaram a arte ou a habilidade não pararam mais, de falar, digo. E nesse particular, o brasileiro médio exibe toda sua destreza, sempre que aparece uma oportunidade. Dizem que por uma ancestralidade latina, o dito cujo é chegado mais a fala que à escrita. Nossas línguas, naturalmente, não silenciam nunca. 

Gostamos de nos contar um pro outro, ou para plateias pegas distraídas. No transporte publico ou nas filas de banco, por exemplo. O streep tease da alma e o relato das acontecimentos se dá eminentemente pela fala. "Escrever é coisa de intelectual", ouvi de alguém. De outro ouvi "escrever pra quê, se ninguém lê".

A emergência das "redes sociais" (um dia discutiremos esse conceito e seus impactos), contudo, forçaram o povo a escrever. Escrever mesmo, ainda que os mecanismos de mensagens portem ferramentas que oferecem o recurso da “mensagem de voz” para os mais inábeis.

Escrever, porem, é via de regra no campo restrito das redes sociais. Aí, deu-se o desastre. De uma hora a outra, todo mundo viu-se obrigado a produzir mensagens curtas para alimentar a comunicação diária. De outra parte, amadores premidos a forjar "opiniões" à base da escrita e profissionais a se esmerar, imprensados pelos dead lines internalizados, a escrever em favor da vaporosidade da informação ou do comentário inadiável.

Falando, mesmo com todos os cacos, cacoetes e vícios linguísticos, a mensagem é passada. O interlocutor a capta de alguma maneira. Escrever, porém, é um outro universo. Há milhões de regras, naturalmente rígidas, para se produzir um mínimo texto que seja. Se vira bem quem consegue ser intuitivo na arte ou dominar uma meia dúzia delas.

Mesmo quem escolheu viver escrevinhando tropeça vez ou outra nas regras rígidas do escrever; trai a língua, macula-a. Imagine, porém, quem não é muito simpático à leitura e a escrita quando se vê intimado a produzir textos, mesmo que minúsculos, com o mínimo de inteligibilidade. Já não se trata simplesmente falar, emitir um pensamento, uma ideia, transmitir uma ordem. Escrever cabe no papel e expõe mais facilmente as limitações de organização do pensamento.

Temos instalada a condição de dilema contemporâneo. Descobre-se que a maioria de nós, malgrado nossa empáfia e arrogância titularesca, não sabe escrever. De professores e advogados, de desocupados zapeiros a capitães e generais. Estes últimos, inclusive, que, só por hora, tem uma representatividade presidencial, em um bom contingente, não foram apresentados às regras mínimas da produção textual.

Consciência do teor, domínio da técnica e vigilância ferrenha das armadilhas da linguagem não fazem parte do repertório de muitos contemporâneos. Infelizmente. Lê-se mal em nossos dias, é verdade. Escreve-se porcamente. Imagine, então, os níveis de interpretação que andamos usando por aí. O processo básico da educação cidadã pressupõe essa integração entre esses três níveis. Se nada disso se concretiza na prática, erraram conosco ou nos perdemos em algum ponto.

Definitivamente a página em branco ou a pergunta “O que você está pensando” são nosso calvário. Metemos o pé e lá estará exposta nossa ignorância; não para um ou dois leitores, mas para uma massa. Benvindo ao campo de batalha, guerreiro! Escrever é preciso. Ter ciência do que se escreve, e como, é imprescindível.

 

*Jornalista, cronista e poeta.

Necessárias, mas chatas prá caralho!

 

por Edson de França*

 

Mais que instituição de formalidade institucional, a reunião é, antes de tudo, o instituto basilar da burocracia. Os burocratas, sejam de estabelecimentos privados ou públicos, adoram contar com esse instrumento entre os seus mais caros modus de administrar uma equipe.

A rotina dos homens do mundo corporativo é preenchida com a participação em reuniões. No setor público, sempre que um “pajé de ocasião” tem um “nada a dizer” convoca uma só pra manter a sua “fama de mau”.

Não sei como funcionam as grandes reuniões de negócio, onde milhares ou milhões de dinheiros são negociados e grandes acordos financeiros-produtivos firmados.

Conheço reuniões de emprego – quando alguém debulha suas qualificações profissionais para outrem que oferece uma oportunidade de trabalho -, de grupos – como os festivos encontros da rapaziada barulhenta dos clubes de jovens; da formalidade estatal – quando um chefe de um poder recebe chefes de outros poderes ou representações do mundo corporativo e, finalmente, das reuniões intra-organismos.

A maioria absoluta das reuniões são orientadas por uma pauta pré-definida, geralmente atendendo a alguma intercorrência ocorrida na rotina norn

Por principio, a reunião é uma ocasião pré-determinada administrativamente para apresentar, estudar ou discutir determinado assunto relativo a rotina institucional. Faz parte do manual, digamos, dos administradores e das rotinas administrativas, aquele conteúdo básico que se aprende nas escolas de formação de chefetes e lideres de qualquer ordem.

Consta do repertório de procedimentos a que se recorre para promover certa coesão entre as determinações gerais e as condutas particulares, unificar procedimentos, comunicar inovações e equacionar problemas e diminuir ruídos relacionais ou de produção do trabalho.

Reuniões deveriam atender a necessidades especificas, ou seja, cumprir a missão de, uma vez reunido um contingente funcional, provocar o entendimento e a concertação entre os atores. Compor uma situação de comunicação em si que seja, ao longo do tempo, convertida em ações; ações que, ao fim, venham a contribuir para a produtividade no trabalho e também para a redução dos hiatos relacionais.

Fora tudo isso, o básico, a reunião torna-se apenas uma contingência, um “sei que lá”, sem qualquer atributo que a qualifique ou demonstre sua existência e utilidade. Se ela não consegue influir, ao fim da ritualistica, na condução dos propósitos de uma aglomeração humana voltada para a produção, nada feito.

Muitas reuniões só existem por existir. Complementam o estatuto do ócio operacional das organizações. Pecam pela falta de objetividade. Se primassem pelo dado objetivo, muitas pautas de reuniões poderiam ser mortas por mensagens diretas, utilizando a acessibilidade das redes. Em muitas outras, se o critério da objetividade fosse cumprindo, evitando-se a extensão do discursos e das intenções natimortas, não durariam mais que meia hora (ou menos) cada uma.

*Jornalista, cronista e poeta.  

Do povo? Como? Por que?




Toda porcaria que ganha alguma projeção é prontamente atribuída ao povo. Basta guardar ao redor de si referências jocosas ou extravagantes e já se rotula “povo”. Uma afinidade, mesmo que remota, com o comportamento espontâneo do porção populacional mais pobre e já se gasta o decalque “povo”, como estigma feiamente colado às costas. Se algo cheira forte, tendendo para qualquer dos extremos da paleta olfativa, é coisa de “povo”. Enfim, o “povo” é tomado como sinônimo de tudo que se limite com o mau gosto, a má educação, os maus modos, o histriônico, o risível, o violento. 

Alheio ao conceito sociológico, antropológico ou político, a categoria “povo” é atribuída, pela ação limitada do senso comum, ao estamento mais baixo da população. Aquele em que as condições sócio-econômicas levam a habitar, consumir e assimilar hábitos condizentes com o ambiente em que se vive e, sobretudo, com o que se ganha. 

Esse mesmo “povo”, se visto de forma otimista e épica, seria a parcela de bravos sobreviventes; espécime tendente ao improviso vital e as adaptações para sobrevivência cotidiana. Mas essa não é a história/visão assimilada pela maioria. Para essa, a baixaria, a grosseria, o exotismo no seu sentido mais esdrúxulo são atributos do pobre, do paupérrimo, do sem instrução, do rebelde, do despossuído, dos periféricos de toda ordem.  

O “povo” tomado como categoria depreciativa, em alguns pontos, se limita com o “popular”. Mas, este último, mesmo quando pego desprevenidamente, ainda ganha uma lustração; emprestam-lhe uma certa aura de qualidade, uma distinção. “Povo”, não. O vocábulo “povo” sempre é rebaixado ao pior do ser humano e tem a pobreza como modelo. 

Se surgem produtos de mídia que sejam pautados pela dissecação das entranhas do “mundo cão” chamam-no de popular, no sentido negativo de ser coisa do “povo”. Foi espetacular, circense no pior sentido, sangrento como o antigo matadouro de Cruz das Armas, não levanta dúvida, é popular, é do “povo”, é do povão. Se aparece uma estrela televisiva de alta popularidade e audiência e baixo caráter, a geral apõe logo um “povo” como sobrenome ou marca do indigitado.  

O povo, na real, tem muitíssimas qualidades, todas elas atreladas a seu modus de enfrentar a vida, encarando obstáculos, superando adversidades, criando sua própria cultura. Sendo ademais vítima maior das incompreensões e das sacanagens dos governos de plantão e do sistema que não o reconhece, nem em nada favorece. Acima de tudo, porém o povo exala alegria. Não inteiramente por autocrítica, ri de si mesmo. 

O povo é o que é por questões objetivas, materiais, excludentes. Aqueles cuja mentalidade só vai até onde a compreensão intui o povo como sinal de pobreza e baixaria carecem de estudo e sensibilidade. Descerem dos salões emplumados e verem, daqui de fora, pralém dos jardins, como são ridículos e decadentes os atos, os fatos, os modos e bolor das elites.


por Edson de França


Nosso inferno brazilis e a piada das latas (republicação)




É dia de chuva na cidade. Dias de chuva geralmente nos põe melancólicos prá danar. Dias de recolhimento, meditação, preguiça, caldos quentes. Na teoria. Na prática das ruas centrais e arrabaldes são horas de apreensão, vigilância e esforço. Muita força física empregada na redução dos danos provocados pelas forças da natureza. Força primal que desencadeia outras forças, gerando um efeito dominó. Torrente que descamba no desespero e na desesperança. 

O Brasil e suas cores de bandeira esmaecidas… Uma nação que ilude os crédulos e distraídos cidadãos. Uma nação, cujo sentimento cívico é manipulado por espertalhões e parasitas. Uma nação a que falta o sentido de organização, logística social, sensibilidade pátria e frátria. O exemplo recente da expansão da pandemia e a patuscada governamental pela aquisição de vacinas, a propaganda da crendice em torno de um medicamento inócuo são a nossa herança, nosso cotidiano, nosso legado. Produzi o texto a seguir há um tempo, lancei no blog em 2015, Só me referi as nossas mazelas permanentes.



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Muita gente deve ter dado risadas com uma piada sobre latas que traçava um hilário comparativo entre um inferno de ilustre nação e o nosso. A anedota, para quem não conhece, narra o dilema posto a duas almas recém- desencarnadas em sua chegada ao salão celestial: a escolha entre o diabo e a caldeirinha das duas nações.

A graça ficava no fato de que, na hora da triagem condenatória, caso escolhesse o inferno brasileiro, o infeliz era obrigado a comer três latas de excrementos por dia, enquanto ao “felizardo” do inferno rico caberia a mixaria de uma lata diária. Piadas que envolvem excrementos tem o estranho poder de provocar risadas espontâneas.

A religiosidade na entrega das latas nas duas filiais das hostes do capeta era o diferencial. A graça e a picardia da estória em si. A embalagem e entrega do produto de indigesto consumo no inferno americano era pontualíssima. Nele, uma lata diária era uma lata diária.

No nosso, ao contrário, se revelava um pouco de nossa balbúrdia estrutural. Um dia faltava lata, num outro faltava merda e, na maioria dos dias, quem não comparecia ao expediente do trabalho sujo era o entregador. Moral da história: melhor era viver no inferno brasileiro, pois comer merda ainda vá lá, a regularidade do ato é que é pau..

As anedotas como esta revelam enormidades sobre nossa capacidade de rirmos de nós mesmos. A seu modo, revelam um potencial de autocriticidade mordaz.

Por outro, parecem exaltar virtudes em pontos onde somos visivelmente deficientes. Algo como se afirmar que as coisas abaixo nas terras brazilis estão fadadas a serem assim mesmo. E que, portanto, conformados, é bom encaixarmos essa situação em nossa mentalidade mediana, rirmos e apenas sermos conscientes de nossas mazelas.

Revela, por fim, infelizmente e sobremaneira, a cruel totalidade de nossas falhas estruturais e estruturantes. O inferno lá descrito é nossa imagem no espelho. Cagados e cuspidos, nem na entrega rotineira da ração malcheirosa conseguimos ser eficientes. Nesse ponto, diria que a piada estaria completa caso enaltecesse também nosso papel de mazeladores.

A piada dos infernos deveria nos servir para gerar indagações. A princípio, bem ou mal, dispomos de estruturas de serviço, de gerenciamento, de participação, de locomoção. Dos mecanismos de elaboração de políticas públicas às estruturas de pavimentação de ruas e logradouros, passando por serviços de saúde, educação e segurança. Temos a estrutura, a lei, os planos, o material humano, as ações cotidianas.

Se temos tudo isso, o que nos faltaria, então? Acho que além do riso autocrítico temos que rever a noção e extensão de nosso inferno. Dos enlatados à base de esterco humano que somos instados a engolir como ração diária e que produzimos sistemática e profusamente.

Tomemos o exemplo de nossas cidades, independente de seus limites e extensão, diante das chuvas de fim de verão. Atoleiros, calçamentos revirados, alagamentos em bairros “nobres”, deslizamentos em bairros pobres, surto de dengue e chikungunya, filas de crianças e idosos em postos de saúde, atendentes mal-humorados e médicos mal formados e sem sensibilidade social e humana.    

Por aqui, convenhamos, falta a cobrança mínima de regularidade por parte dos entregadores de nossas sagradas latas diárias. A falta-nos a seriedade, falta-nos governança, falta-nos o equilíbrio dinâmico de consertar as coisas antes que se tornem metastáticas, falta-nos participação e cobrança.

Infraestrutura de vias, estrutura de transporte público, inoperância das empresas que administram serviços básicos como água e saneamento básico. Sem contar, claro, com a indefinição de responsabilidades. Federação, Estado, prefeituras, diretamente ou via autarquias, não tem uma cartilha definida de responsabilização. O jogo de empurra serve ao propósito de minorar a urgência urgentíssima de certas providências.

 Se formos perguntar, porém, a algum responsável, fatalmente eles creditarão a culpa a São Pedro e sua incontinência pluvial. O tempo e a hora de atuação não são respeitados por aqui. No final, sobra para nós a impressão de que se um dia falta o conteúdo da lata, noutro a própria lata e em outros o entregador falta ao trabalho é que nós, sem percebermos, vivemos é mesmo dentro da lata compondo, junto com conteúdo, um cenário de situações indigestas, e penosamente compartilhadas.


por Edson de França    


sexta-feira, 16 de abril de 2021

Crônica de uns dias à toa


Edson de França*


"Entrar por uma viola e com ela sair cantando". Quase consigo ouvir a voz de Neruda, poeta pacífico, aqui do lado de meu providencial leito de mar. Atlântico de corpo e alma - nascido, criado e encarquilhado pela brisa marinha - aprecio o poema como quem mira os horizontes procurando deuses abissais que, vez ou outra, emergem para seduzir donzelas e tomar uma com os “mano” num boteco à beira mar.

A voz de Cátia de França, um desses seres maragrestinos, dá-me uma cantada. "Esse verde que chega a doer das águas de Tambaú...um dia vou voltar". Da terra "vem-me a ânsia de viver e de ficar". Este vem a ser o final de um poema, "Cemitério no campo", do alemão Herman Hesse. Parodiando o pacífico Neruda, adentro-me, irmano-me feito peregrino, à caminhada com o poeta e com ele sigo cantando.

“Nada vejo por essa cidade que não passe de um lugar comum”. Salves, Zé Ramalho, oitenta anos de galopes rasantes. Passei a amar minha terra quando conhecida como “terra das acácias”. “Badionaldo na praia do Poço. O hotel Tambaú, que colosso. Cabo Branco e Astrea charmoso, são recantos encantos enfim”, cantava o bardo Livardo Alves. Arrematava. “Tuas praias formosas. Mulheres, acácias e rosas. É cidade jardim, poema sem fim”. O Badionaldo continua lá pra quem quiser conhecer. O Astrea minguou, mas ainda é possível ver o mar a partir do mirante Cabo Branco. 

Não conheço as acácias. Conheço os abricós de macaco da Praça da Independência. Conheço ipês floridos do Parque Arruda Camara. Lembro-me do abricó, fruta exótica, que o velho trazia do Horto Simões Lopes. Lembro tanta coisa...Adoro o trour lírico, roteiro sentimental pelas ruas da cidade. Retomo o poeta Eulajose Dias de Araújo, primeiro poeta nativo de minha memória afetiva. Viajo na poesia de Polibio “varadouro” Alves. Sinto-me joaopessoalmente como o poeta Lau Siqueira. De outra, como o Vital cantador Farias, “Essa linda Philipéia, digo joãopessoalmente, que não sai da minha idéia, que não sai da minha mente.  Aperto a mão de Caixa D’água no beco da escola de artes do Tomás Mindelo.

Olhava dia desses os passantes - alguns apresados, outros em velocidade de cruzeiro – no largo do Ponto de Cem Réis. Numa crônica reportagem antiga, lá nos tempos de aluno da Comunicação, eu e o parceiro Roberto Faustino,  referi-me ao jornaleiro Reginaldo e ao propagandista Vitorino, este último que na época fazia reclames das lojas com um carrinho munido de autofalantes. Já não estão mais entre nós. Mas, como cantava o poeta argentino Jorge Luis Borges, quadros não recebidos ocupam um lugar meio psíquico a quem foi prometido. As figuras do mundo ativo permanecem vivas, pelo menos enquanto por aqui flanarmos. 

Quem passa pelo Cem Réis, com um mínimo de mediúnica sensibilidade, sente a energia ancestral de quem por ali passou. Quem passou, quem parou para contemplar ou se sentou para papear com amigos, quem tirou seu sustento de alguma atividade econômica ali desenvolvida. O largo do Cem Réis foi/é palco para discussão política, para propagar e ruminar as novidades palacianas de perto e de além mar. Lugar onde os velhos digerem, com comentários picantes ou reacionários, a tatuagem de Anitta e o uso do Anita para prevenir a Covid-19.

Lembro-me da areia branca do terreiro da casa de tio Severino, numa Tambaú desabitada, cuja nobreza estava nas areias pisadas pela gente pobre. Os pobres venderam suas terras, premidos pela urgência desenvolvimentista de colocar o luxo à beira-mar. “Além do limite do vale profundo que sempre começa na beira do mar”. O mar é para todos, mas para morar na boca do tsunami é preciso ser, no mínimo, desembargador e construir uma mansarda com recursos públicos. 

“Em suas mansardas, mansões e motéis, os homens manejam os seus carretéis. Novelos e linhas, labirintos e ruas, as mulheres e luas são pedaços da noite”. A urbe, pessoa, é contraditória. Somos, gente como a gente, contraditórios. Consumimos nossa alegria e carnavalizamos nossa dor. Bradamos aos mundos que nem Chico Limeira. Nossas ruas, nossas praças, nossa cidade tem denominação “imprópria”. Palmas para a novíssima geração do canto paraibano. Sou essa cidade múltipla, véio, e isso dá um orgulho danado. Daqui vejo o mundo, vejo meu mundo, sensibilizo-me e canto. Cantando dessa folha-palco onde me sustento, abro o peito e meu canto rasga o universo para atingir as estrelas. Há encantos e cantos a serem lidos, revisitados, vividos.

*Jornalista, cronista e poeta.