quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Chá de “puxadinho"

           
 A composição urbana de nossas cidades, em sua porção mais suburbana, é pra lá de caótica. Ela, flagrantemente, acaba revelando a face mais dolorosa de nossa condição socioeconômica. Enquanto nas regiões mais centrais e nobres das urbes, a tendência é que os aglomerados humanos sigam uma lógica de organização, nos arrabaldes impera a informalidade e o aproveitamento irracional dos espaços exíguos. Por lá, o “puxadinho” é quase uma instituição, uma particularidade típica dos “morros mal vestidos”.
            Para quem não sabe do que fala o cronista é preciso recorrer à sociologia e à antropologia dos andarilhos urbanos – os flaneurs -  para captar em essência o fenômeno. “Puxadinho” é, a rigor, a saída encontrada pelos abandonados da sorte para abrigar uma grande quantidade de pessoas em certo lugar. Sabendo da sentimentalidade humana natural dos pobres, não é difícil intuir que, destituídos dos bens materiais que desumanizam e geram o desapego, só lhes resta manter os parentes, aderentes e agregados próximos. É uma espécie de solidariedade, de simbiose (às vezes, com veias de parasitismo, mas deixemos o caso para outra crônica), da celebração ritualística dos laços afetivos.
            O “puxadinho” é filho da necessidade. Ela resolve, informalmente, nosso déficit habitacional. É a alternativa dos pobres de toda ordem para organizar e abrigar seus rebentos primais e, consequentemente, os nascituros desses rebentos. Quando me referi ao flaneur lá no alto, é que foi flanando, em um período de atividades inúteis, como recenseador, que aportei em alguns “cortiços” suburbanamente formados a base de “puxadinhos”. Um puxadinho (ou puxadinha) sempre acaba puxando outro até virar uma série, um acampamento sujeito à miséria endêmica e às atividades mais promíscuas.
            Em um terreno de, em média, de 300m², localizado dentro do triângulo formado pela trinca da Beira Molhada, Ninho da Perua e Bola na Rede,  seu João Apolinário ocupava a casa da frente. Palmas e “ô de casa” não foram precisos. Seu João ocupava uma cadeira de balanço, as pernas rugosas, pés rachados e meio sujos descansavam displicentemente dependurados, feito esculturas de tocos de arvores decrépitas. A corrulepe jazia inútil aos pés do homem de 55 com aparência de, pelo menos, dez anos a mais.
Recebeu-me com a formalidade dos humildes. Comuniquei-lhe o nome e a missão e ele se prontificou a prestar as informações que eu necessitava.  Mandou “puxar o banco” espécie de escultura rudimentar, esconcha, produzida pelas astúcias de um aprendiz de marceneiro. Ofereceu café e se dispôs a responder às perguntas do questionário básico: nome, sobrenome, cônjuge, descendentes, moradores da unidade e coisas do tipo. Falou-me da composição familiar da casa “grande”. Mulher, filhos, netos, sobrinhos de longe que em sua casa encontravam abrigo. Entre um dado e outro, histórias da vida, experiências vividas e comentários genéricos sobre os mais variados assuntos.
Antes de a entrevista chegar ao fim, havia uma pergunta que interrogava ao líder da casa se o terreno era ocupado por outra habitação. Aí foi que descobri a magnitude do cortiço que ocupava aquela área. Pela lateral direita da casa principal, um corredor com musgos na parede e lodo no solo levava a outro mundo, um quadro pintado com cores berrantes e lúgubres, sob as astúcias literárias de Aloísio Azevedo e uma atmosfera musical múltipla e perturbadora.
Um casario mal-ajambrado, estacas fincadas por todo canto, arame farpado se confundindo com fiação elétrica improvisada de uma casa a outra, varal de roupa, roupas estendidas, uma profusão de meninos de todas as idades e mulheres, placas de fossa pontuando o terreno... Só ali consegui recensear cerca de 45 almas. Antes de me despedir, missão cumprida, ainda recebi um convite para voltar no final de semana pra “tomar uma”, na inauguração de mais um puxadinho. Era uma recepção ordinária para um pródigo desgarrado que estava voltando do sul. A “puxadinha” já estava em pé e o rebento desgarrado também acamparia no terreno do pai até deus mandar bom tempo.

por Edson de França        
                 

               
                               
                 
               














 

terça-feira, 27 de outubro de 2015

O legal (muitas vezes) é imoral

Participei dia desses, do lançamento de mais um programa de incentivo ao pequeno empreendedorismo. Entre as metas do programa constavam, além do incentivo financeiro óbvio, a disposição em regularizar os pequenos comerciantes, ou seja, tirá-los da total informalidade. O convencimento dos mesmos passava, claro, pelo aceno da bandeira legalista que promete, entre outras coisas, o acesso aos benefícios da Previdência, a habilitação jurídica para a concorrência nas licitações públicas e a entrada no rol dos cidadãos com direito a créditos bancários. São douradas as promessas para quem se dispor a abandonar o mercado informal.
Essa é uma parte da história contada pelos gestores. A isca. Não podemos, de fato, descartar os benefícios e o esforço legítimo e real, para levar aos simples comerciantes a condição mínima de legalidade. O que falta dizer, entretanto, é que todo esse esforço legalista, se tem algo de benemérito, tem também uma contrapartida: atuar sob as condições legais é render-se à vigilância estatal e, sobretudo, ter maiores compromissos com a receita pública, através de impostos e taxações. Não que isso contenha algo de imoral. Não! O problema vem, sobretudo, da carga de exigências, afora as garras dos rapinismos e burocracia, com que a máquina estatal acossa os incautos.
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Os ônibus urbanos das grandes cidades ostentam outdoors onde se lê: “Transporte ilegal de passageiros é crime”. O aviso alerta para os perigos advindos do uso disseminado, brasis a fora, dos tais transportes alternativos. Tudo certo, tudo bem, tudo lindo, tudo... legal. O que se esquece de dizer, no entanto, é que a condição em que os legais trafegam beiram as piores das alternatividades.
Basta visitar uma cidade qualquer de uma região metropolitana, para sentir o real peso da legalidade. Não é nada legal quarar em um ponto de ônibus sem cobertura durante, no mínimo, quarenta minutos. Sei que, neste caso, põe-se em cheque a reponsabilidade do poder público, mas esse é mais um sinal do compromisso do estado brasileiro com as condições legais.
Quando surge o busão, a entidade denominada de cidadão – no caso, sem qualificativo na escala social como um time sem série – tem um susto. Uma carcaça enferrujada que se arrasta em sua direção, pensa e de pneus meio carecas. Quando adentra, outra amarga surpresa.”Lata sardinha” seria mais confortável. São pingentes humanos pendurados nos estribos, assentos largando de bancos, bancos largando do chão, motorista esbaforido, estressado, mal pago e, entrementes, senhor de habilidades discutíveis.
Ora, no momento civilizatório, onde a grande maioria das pessoas cumpre horário e para isso necessita, decisivamente, de uma forma de deslocamento rápida e precisa, nossos sistemas públicos deixam a desejar. Pergunta-se: como aderir a legalidade, se o sistema não atende às necessidades e, em muitos casos, empatam em termos de qualidade e capricho com os alternativos, os informais e os “fora-da-lei”.
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Acho que o leitor mais atento há de perguntar-se “o que essas duas histórias têm em comum?” A rigor, responderia o cronista, trata-se de um desabafo que muitos gostariam de expressar, creio. Viver no Brasil, em alguns momentos, é ser convidado a ser legal, a participar do banquete da legalidade, usufruir de todos os direitos, benefícios e segurança que ela poderia propiciar. No entanto, nada é mais falho que as condições legais postas por alguns dos nossos serviços básicos. Nesse quesito, ainda estamos em construção, carregando pedras e a argamassa para garantir a segurança do muro.

por Edson  de França





 
     


             

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Recortes animados da memória

            - Pêdo, tu vai querê pão de mi?
A voz miúda de D. Joana Graú ganhava momento de agudíssima estridência, quando perguntava a Seu Pedro, opinião sobre o cardápio da janta. Era o momento em que ela ocupava a boca da cena bucólica de fim de tarde, assumia a fala. Brilhava corpo e voz, com autoridade e a segurança de sua tímida desenvoltura.
O cenário, a seu modo, era belíssimo.
Entre a casa principal e o apêndice que servia de moradia ao casal, nos fundos do terreno, se distribuíam plantas frutíferas – lembro-me de uma goiabeira e de uma pinheira que ali moravam -, arbustos medicamentosos – xaxambá, hortelã, capim santo, cidreira... -, flores nobres e daninhas – uma roseira soberana e rosetas sem-vergonhas de malmequer (comida para a criação de preás e lebres). No terreno baldio, ao lado, bananeiras, mangueiras e coqueiros contribuíam com sua parte para a montagem de um cenário latino americano como uma alegoria, uma referencia suburbana aos labirintos da alma latino-americana, tão bem descritos por Gabriel Garcia Marquez.
            Havia um caminho entre as duas moradias.
Uma vereda levava da cozinha da casa grande ao quichó do casal; no percurso, graças a providência da base alta e laje de uma fossa, formava uma espécie de assento coletivo que servia de banco para as histórias de seu Pedro com os piás, a conversa de d. Zefa, a locatária, com d. Graú, e a cachaça de seu João com alguns amigos de sina. Era a um tempo confessionário das mulheres, festança para os homens grandes, encantamento para as crianças e, algumas vezes, nos momentos da total  redução da energia telúrica vital, de abandono e ensimesmamento. 
Havia um clima de suburbana e festiva afetividade.
 Dissemos era tarde e, naquelas tardes, havia uma confluência feliz de situações. Além da preparação da janta que ocupava as mulheres e moças das casas, os meninos haviam chegado da escola, os patriarcas do trabalho. Os animais se recolhiam; galinhas nos poleiros naturais e improvisados nos galhos das fruteiras, a ração dos bichos pequenos já tinha sido servida. Os humanos faziam, então, a prévia festiva do descanso noturno e aproveitavam essa hora para descarregar as últimas energias gastas durante o dia. Cansaço, frustações, preocupações e esperanças...
- Pêdo, tu qué pão de mi?
 Jamais havia ouvido falar em “pão de mi” (traduzindo: “pão de milho, na nossa esnobe mania de dar sentido ao falar popularesco). Pão de milho era o velho e bom cuscuz nordestino, à base de farinha de milho, água e água. D. Joana Graú, com seu linguajar caiçara e sua sabujice de esposa dedicada, representava a simplicidade e a naturalidade da vida dos arrabaldes. Pedaço de universo particular, recorte bucólico da vida onde íamos, meninos, pari passu, costurando nossas experiências sensoriais de  mundo.      

por Edson de França    


sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Os bem-amados

Não sei em que escola de jornalismo eles se formaram. Imagino apenas que, a rigor, não passaram por escola alguma e somam, para o exercício do oficio, algum conhecimento técnico da comunicação “interpessoal” mediatizada, desconhecimento geral das minudências relativas ao ser humano e sua organização histórico-social e, ademais, uma militância política unicamente movida por interesses pessoais e, na maioria das vezes, com uma leve essência de estelionato midiático.
Tracei, grosseiramente, um retrato dantesco do espécime que mais prolifera em nosso jornalismo atualmente. Em alguns meios, sobretudo super  populares como o rádio, são eles que nivelam por baixo a qualidade das emissões. Com seu comportamento, a um tempo intencional e oportunista, contribuem para a desinformação geral e, sobretudo, para a formação de opiniões gerais, necessariamente descontextualizadas, retrógadas, conservadoras e de baixa análise sócio-estrutural e de conjuntura.   
Na real, creio que eles sempre existiram, afinal, na história da comunicação e do jornalismo especificamente, quem tem um olho “crítico” e uma voz altissonante sempre se passou por aglutinador dos interesses maiores da maioria sem voz. Uma subespécie de paladinos da “razão” pública. Em alguns momentos, seja ocupando o centro das atenções, seja escapando entre os guetos infectos da desimportância, os “comunicadores” de voz possante e ideias enviesadas sempre estiveram presentes na cena social.
O jornalismo contemporâneo, do impresso ao televisivo, foi concebido para ser produzido por grupos empresariais que pudessem manter, minimamente, equipes altamente especializadas, dedicadas à composição do produto noticia. Equipes que entendessem o produto em todas as suas nuanças: técnica, ética, estética e comercial. E, também, pelo significado e importância político-social de sua emissão.
Criou-se, em torno da notícia, um campo intelectual amplo que discutia da captação e da formatação ao plano gerencial e aos limites da penetração social dos conteúdos. Essa é uma função político-empresarial com certeza, pois liga as estratégias do negócio comunicação às bases de negociação e influencia que a noticia pode adquirir. Vem dessa base estruturada, especializada, sutilmente política e politizante, a expressão do jornalismo como um quarto poder.
Um quarto poder exercido não pelo grito banal, mas pela coerência dos argumentos, pela seriedade na apuração, pela coragem de abrir caixas-pretas e desafiar os autoritarismos de toda ordem, pela análise diuturna e balizada da conjuntura política, da noção exata dos danos irreparáveis de uma emissão irresponsável. Talvez seja este rosário uma quimera e apareça um dedo pronto a apontar a irrealidade dessas premissas e a afirmar que a comunicação pública sempre foi e será um lamaçal pronto a expirar perdigotos por todos os lados e contaminar o tecido social.
Talvez, o impacto das “notícias-mentira”, sobrepujem os idealismos, acostumem corações e mentes ao conformismo das palavras esvaziadas de sentidos mais profundos e enterrem de vez a ideia de um jornalismo mais sério e comprometido com a emancipação do homem e da coletividade. É esse, enfim, o caminho que tomamos com a falência da organização da produção jornalística, o individualismo laboral dos âncoras histriônicos das rádios e tvs populares e, finalmente, com a infestação do pior da “política” no editorial vigente.
Limitada, interesseira, controversa, hedionda, alarmista são apenas alguns dos adjetivos que se pode colar, qual decalque na produção jornalística de maior ibope no atual momento. É ela, profusa, atabalhoada, porém, precisamente, que orienta os comportamentos mais torpes por parte dos profissionais e promove lacunas contextuais nos conteúdos disseminados por aí. Melhor, contribui para criar maiores contingentes de gente desinformada e, pior, conformada e remotamente guiada.
por Edson de França
 
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terça-feira, 18 de agosto de 2015

Da festa ao fosso

Convenhamos, caríssimos companheiros do front jornalístico, que nosso dia a dia é ponteado por pautas, motivos e situações intocáveis. Inalcançáveis, até. Isso devido, com certeza, ao nosso limitado domínio das artes de perscrutar, ao moderado estilo de inquirir, aos nossos meios operacionais e acessos disponíveis e, é claro, às temíveis conjunturas politicas, dadas a conveniências várias e censuras particulares.
Quem está na arena, seja como mero registrador de eventos ou agente inteligente e provocador, seja como mero espectador ou analista privilegiado da mídia, tem que direcionar o periscópio e magnetizar as antenas da crítica para perceber-se, também, dentro dessa condição paralisante do bom exercício da informação clara e precisa.
Há situações e temas espinhosos, caixas-pretas que não podemos abrir, solos de mansardas e palacetes que queimam nossos pés, truculência e maneirismos de figuras de proa do cenário político, econômico e até da militância dita social. Além, é claro, das tesouras que limitam nossas asas e da subversão da mente que contribui com nossa idiotização. Primeiro individual, depois, a partir da propagação do nosso trabalho, coletiva e contagiosa.
Dificilmente, alguma pauta de real e grandioso interesse coletivo ganha as cores e a profundidade ideais para parâmetros básicos de informação que sirvam como ganho real no nível de conhecimento do público.
Discordo do profeta Raul quando insinuava ser o jornal um monte de mentiras. Mas isso é apenas a defesa apaixonada do trabalho de inúmeros colegas que ralam incansavelmente para produzir jornalismo.
Por outro lado, não posso negligenciar a alfinetada sagaz do maluco beleza. O jornalismo pode não ser um calhamaço de mentiras, mas não passa de um produto enlatado para consumo. Pense em enlatado como veneno para saúde, para o corpo ou para a mente conforme o caso.
O enlatado, geralmente, promete gostosuras, praticidade, com garantias de essência imaculada. O jornalismo promete verdade, imparcialidade, objetividade e, mais recentemente, imediatismo.
Do enlatado, suprimem-se (quando se adicionam os conservantes) a essência vital dos alimentos aprisionados. Por extensão, caem os sabores naturais (por vezes, substituídos por artificialismos). É preciso garantir vida longa ao produto como forma de garantir muitos dias de vida na prateleira dos peg-pagues do mundo.
No jornalismo, o caminho da fonte ao leitor, expectador ou ouvinte é floresta de lobos vorazes e maquiavélicos.
As matérias de transito fácil, que envolvem interesses e narcóticos massivos, são o oba-oba da cobertura jornalística. Abrem-se janelas, escancaram-se portas, estendem-se os tapetes vermelhos para profissionais de ponta e pixotes amadores. Todos tem acesso a tudo.
É a hora do oba-oba da notícia.
O interesse é, claro, massificar a informação para que todos saibam todos os detalhes superficiais da ação e atendam ao chamado do berrante. Saber só, não. É preciso acreditar, multiplicar, transferir, replicar até perder de vista.
Pergunte, por exemplo, em nome da transparência, que se ponha luz sobre os contratos das estrelas de festas populares. Pauta fácil para profissionais e holofotes de qualquer rincão perdido pelos cafundós dessa república. Acho, com certo escarnio, que vão transpor o vermelho do tapete para teu corpo amarrotado.
Quando algum golpe está em caminho, naqueles casos em que a mídia é conivente (quando não mentora), abrem-se escaninhos ocultos; números e estatísticas viram café da manhã, almoço e jantar; perdas e ganhos são sopesados diariamente.
Cria-se um clima de terror ou de derrocada anunciada. Algo assim como a invasão imaginária de homenzinhos verdes no planeta. Nesses momentos, o ilustre inquiridor, sempre se achará um arauto da verdade, da veracidade, da moralidade e outros ades a mais. É bom pensar nisso.
por Edson de França  


 


   

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Em volta da viola

Parece mágica. Círculo de amigos, zumzum de falas em todos os tons e timbres possíveis, exortações e ânimos exaltados, doses e doses, ampolas e ampolas de cerva, piadinhas amiúde, sarros com as caras deste, daquele ou daquela, palmas ou risos para uma relembrança qualquer que aflora.  De repente, alguém se lembra de requerer o “auxilio luxuoso” de uma viola... Ela chega tímida, muda, meio desafinada, rouca. Vai infiltrando-se e recebendo apalpadelas em seu corpo esguio. Procura-se alguém que, mesmo parcamente, atire-se ao misterioso universo de cordas e sons.
A subordinada ave canora voeja a procura de um ser que harmoniosamente acaricie suas cordas vocais expostas. Passa de mão em mão. Mãos delicadas, mãos rudes, desajeitadas manoplas. Se tivessem ouvidos, chorariam ao ouvir comentários estabanados. “O que me atrapalha são as cordas”. “Tenho uma frustração: não aprendi tocar”. Tenho um bom ouvido, sei até afinar, mas tocar, parceiro, é outra coisa”. “Tu aí, metido, tu gosta de tocar? Porque não aprende?”. “Se tiver quem toque, eu canto!!!”. Alguém ameaça fazê-la de atabaque.
A viola declina, com certa arrogância, de assédios tão “tentadores”. Almeja tão somente chegar às mãos de quem a submeta aos limites de sua destinação existencial. Que a toque, que extraia do seu ventre algum som minimamente harmônico. Um herói, antes tarde que nunca, toma posse do pinho esculturado em formato feminino. O dispõe sensualmente entre as pernas e entre os arrulhos da companhia passa a tentar uma mínima afinação.
Parece magia. Aos poucos a caótica reunião passa a ter um motivo, um alvo de atenção, um antídoto anti-dispersão. O barulho diminui, os ouvidos parecem aguçados, as mentes a buscar melodias perdidas como se a simples presença da ilustre viola pudesse fazê-los recordar (e recordar é viver, já dizia uma velha canção perdida no tempo) os maviosos arranjos de suas afetivas canções.
Caso haja um prodigo virtuose entre os camaradas, a tertúlia tenderá a execução precisa de clássicos. Como geralmente um desses não está ao alcance fácil das rodas boêmias contemporâneas, a rodada de hits será composta de musica popularesca e altissonantes vozerios, enganiçados e precários. Mas tudo estará certo. Haverá magica no ar, afinal ninguém quer mais que a companhia da viola.
Quando o misterioso universo das madeiras, cordas e trastes passa a ser penetrado, bolinado, descoberto, exposto, mesmo que por mãos pouco habilidosas e conhecimentos musicais superficiais, existirá magia no ar. Ouvidos, também pouco afeitos aos conhecimentos estéticos musicais mais intensos, nada se importarão com a intromissão.
Melhor. O mistério dos dedos que atiçam cordas e despertam sonoridades atrai. São bruxedos, mistérios, mandingas, artes de prestímanos para iludir ou encantar plateias.  As melodias que daquele inusitado encontro saem despertam sentimentalidades adormecidas. As proximidades entre os elementos – instante, instrumento e artífice – perfazem o quadro mágico. A proximidade pessoal de estar dentro da mágica faz o circunstante ativo no espaço da magia.
Parecerá tudo então mágico como um Choro Bandido (Edu Lobo/Chico Buarque). “Mesmo que os cantores sejam falsos como eu/ Serão bonitas, não importa/ São bonitas as canções/ Mesmo miseráveis os poetas/ Os seus versos serão bons...”

por Edson de França

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Superior, em quê¿

Os cursos de terceiro grau no Brasil representam, medianamente, a realização para muitos concidadãos. Todo, mais todo mundo mesmo, que conseguiu passar em um vestibular, seja para universidade top ou inqualificável, comemorou às pampas.
Primeiro por ter galgado o patamar máximo da educação média, depois pelas perspectivas de aprendizado profissional, sucesso, ascensão sócio-econômica e etc. O coquetel básico para mentes medianas. Alguns semestres cursados depois, as opiniões sobre os superiores se dividem.
Uma enquete rápida com o alunado certamente colherá indícios de frustração, críticas bem adolescentes pelo teor superficial e, nos casos mais graves, flagrantes inadequações pessoais às rotinas do ensino universitário.
Rigorosamente, o recém ingresso nos cursos tem apenas um semestre para maquinar e descobrir, per si, qual é a do ensino dito superior. Nesse tempo, safamente, o indivíduo tem que sacar as rotinas, o nível de estudo que ali se pratica, as relações que se estabelecem entre docentes e discentes, acostumar-se ao “desregramento produtivo”, ao disciplinamento de sua agenda de estudo e vida social, às condições postas de dialogicidade, ao estabelecimento de parcerias e etc.
Sobretudo, entender que está só. Que até as relações amistosas que estabelece com os colegas não vão lhe valer na hora em que tiver de dar respostas pessoais, coerentes e integradas.
E esse não é um processo simples. E não o é, sobretudo, pela imaturidade que as séries anteriores plantaram no comportamento dos indivíduos. É que a nossa educação começa pelas “tias” com seu bando de “mimadinhos”, de onde os piás já partem desaprendidos de segurança intelectiva.
Num segundo momento, lança o ente aprendiz, de supetão, na idade da “rebeldia”. Contraditoriamente, a fase que direciona o indivíduo para todo aprendizado mundano e pouco, muito pouco, para uma formação mais consistente e autônoma.
Aqui, a rebeldia significa afronta gratuita e desacato a tudo e todos (sobretudo à escola) e aprendizagem enviesada, conservadora em conteúdo e soluções pedagógicas. Outra vez lá vamos nós, brasileiramente jeitosos, nos resumindo às corrupções escolares, aos pactos pela “mediocridade” do ensino tutelado.
   Já a aprendizagem em nível de 3º grau se dá pela disponibilidade pessoal para aprender.
Aprender, no caso, ganha expressão de experimentar, empreender, gostar de ler, ter desenvolvido ao longo da vida escolar a capacidade de absorver e entender o que foi lido, de ter antecipado etapas, roçando conhecimentos além do cardápio oferecido pelos conteúdos curriculares, de competência na reprodução do que aprendeu, repassar, confrontar ideias e por aí vai.       
Se alguém, por acaso, sai de um curso superior e tem coragem de dizer que por lá não aprendeu nada, deixa claro, sim, que não deveria era ali ter entrado. Melhor, demonstram claramente que, em muitos casos, o curso superior entre nós virou um adereço social, um souvenir, e não um passaporte para uma compreensão realmente superior da realidade e da força de intervenção socio-estrutural da área de domínio. 
Para coisas práticas, busca desenfreada de alguns oligofrênicos, cursos de fuxico e amenidades seriam bem mais aprazíveis. Satisfação garantida durante o percurso e maiores sensações de realização no final.

por Edson de França



quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Malandro é malandro...

            Cá entre nós, basicamente existem dois tipos de malandros. Os safos, profissionais, e os amadores. Seguindo as lições da velha canção de Neguinho da Beija Flor, pedra bruta no repertório do malandríssimo Bezerra da Silva, aprendemos ludicamente que “malandro é malandro, mané é mané”. Malandros e manés figuram no mesmo cenário, dividem a mesma cena (geralmente periférica), compartilham os mesmos trejeitos, mas se diferenciam pelos comportamentos endêmicos. Malandro nasce malandro. Mané é o malandro que pegou o bonde errado.
            Definir o malandro, talvez seja uma das coisas mais difíceis para os especialistas em malocagens. Isso porque o malandro tem um perfil social (pré) conceituado pela sociedade. A imagem do malandro pressupõe a bebida, a boemia, a jogatina, a promiscuidade sexual e a violência latente, só para ficar na nata. Ou seja, o ébrio, o rufião, o trapaceiro, o descuidista, o cafetão, o golpista, o mãos leves do carteado e outros tipos são os malandros enraizados no imaginário popular.
            Tal definição, no entanto, cai por terra quando personalidades como Moreira da Silva, o Kid Morengueira, ou o próprio Bezerra, já citado, se definiam por outro tipo de malandragem. A malandragem dos que bebem socialmente ou são abstêmios, não gostam de armas nem de armações, aqueles que, ao que parece, se especializam tão somente na difícil arte da sobrevivência. A arte refinada pelo drible de corpo para situações limite, o olho vivo, a língua controlada, o apuro das idéias básicas, um golpezinho de vez em quando, um blefe ou outro para manter a pele intacta.
            Com a ascensão de tal persona, aquele malandro arruaceiro e aproveitador, tende a virar um mané de marca maior. O mané tende a projetar uma figura si mesmo, a exaltar essa imagem, a sofrer crises agudas de destempero verbal. Podemos dizer, sadicamente, que o mané o malandro que acreditou na estereotipia corrente da figura. Vestiu a camisa, armou os ânimos, pintou-se com as cores e caiu na rua acreditando-se malandrão de fato.
            Quando penso no universo e na cultura da malandrice, tendo a estendê-lo, qual bandeira, nos varais de toda a vida. A vida em si carece daquilo que chamo de “boa malandragem”. A malandragem vista por esse ângulo é aquela em que os artífices são pra lá de maneirosos. Tendem a falar muito, mas não tocam em ponto nevrálgicos que possam ferir coletivas suscetibilidades, a não ser pelo viés da crítica jocosa, do folclórico das gentes e tipos.
Malandro que é malandro não usa a tintura para a guerra contra exércitos bem armados ou para multidões insanas. Sabem do seu papel limitado, camuflam-se camaleônicos, não comem a carne onde ganham o pão, não dão a falar de si, não criam tipos que não possam se sustentar na hora das brigas foice.
O mané, ao contrário, acreditando que a imagem é o que vale, age com trejeitos desajeitados, cria em torno de si lendas e hábitos, que acredita promoverem a infalibilidade e a indestrutibilidade. Mas ficam por aí, na lenda. O mané social, na real, quer ser o que não é. Quer ter o que não pode. Quer viver o que não lhe é permitido. “São caboclos querendo ser ingleses” (Viva Cazuza e sua “Burguesia) ou “chupim querendo ser cardeal”, como nos ensinava um velho excerto embutido em velha cartilha de infância.

por Edson de França


   
           
           
             
           

             

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Maturidade intelectual II

            Constituímos um país relativamente jovem. Os 514 anos que contabilizamos parecem, ainda, apenas um rascunho do país que poderíamos ser. Um desenho de criança não seria tão tosco. A agravante é que nos rabiscos da criança de fraldas ainda há certa graça. Nos nossos passos civilizatórios há desorganização e uma tendência grave a quadros irreversíveis de anencefalia de alto a baixo.  
            Não sou capaz de pesar até que ponto evoluímos como povo e como sociedade, mas sinto de perto o quanto deixamos de avançar e, também, o quanto parecemos regredir.
Uma historia séria do Brasil poderia nos revelar o tanto quanto andamos queimando etapas, relegando passos importantes e negligenciando experiências bem sucedidas que poderiam ter continuidade. Em nossas crises de autocritica, creditamos todos os nossos desarranjos a nossa pouca idade, como se apenas isso fosse o responsável maior pela nossa mentalidade, digamos, limitada e propensa à mesquinhez.      
            Somos um país onde, ainda, cultua-se um papel pendurado na parede e uma arrasadora festa de formatura muito mais que uma formação de fato. Não seria, claro, uma aberração gritante, se fossem casos isolados ou comportamentos individualizados. Mas nos surpreendemos sempre com a repetição em massa dessa conduta.
Parece ser mais importante dar-se a conhecer ao high society, que ter consciência do papel social a ser desempenhado pelo profissional formado.     
Somos um país onde calouros de universidade, por farra, promovem sessões de humilhação e divertimentos homicidas. Onde estudantes de medicina, por molecagem, chamam o SAMU e roubam a chave da viatura (http://rederecord.r7.com/video/estudantes-de-medicina-roubam-chave-de-ambulancia-durante-festa-em-minas-gerais-5519f9260cf26c8c7f56092a/).
Um país, onde ao que parece, a medicina e outras formações de base servem apenas, salvo raras e bravíssimas exceções, como green card para o grand monde.   
Somos um país onde certa elite adora a Europa, vendo naquele continente a excelência da cultura e do pensamento. Mas, muitos vauchers depois, um certo ar de superioridade e egoísmo, contribui para que nada do que foi visto e aprendido por lá influencie mudanças de comportamento. Ou, no mínimo, ações públicas que redundem em melhorias para a coletividade.
O choque de cultura e o lustro geram espanto e impressão de intelligentsia apurada, mas ao que parece se limita a isso.
Se pensarmos este país como possibilidade teremos que querer, sem reservas, que cada vez mais pessoas tenham acesso real e pleno a condições de formação e trânsito cultural. Talvez só aumentando o exército de formados, promovamos realmente a depuração e a excelência das cabeças pensantes e proativas.  
Creio que uma Europa (idolatrada, salve, salve!) não se fez com poucas páginas produzidas, nem com a preguiça mental para devorá-las. Muito menos com elitização egoísta do conhecimento. Lastro cultural e maturidade intelectual devem ser construídos pelo empenho e pela sensibilidade teórico-prática de adquirir conhecimento como bem imaterial, para logo em seguida   pô-lo em contato e a serviço do chão nativo da pátria mãe. Sem maneirismos ou egotrips.

por Edson de França



 



quarta-feira, 15 de julho de 2015

Idolatrias maestralizadas

Se há um troço nauseante na cultura brasileira chama-se idolatria maestralizada pela mídia. Nela, laivos de oportunismo e babaquice, uma sebosa cumplicidade entre a corda e o pescoço, formam um banquete tétrico. Servido como repasto frio para mentes distraídas, convém ao apetite voraz das massas desavisadas e ignaras.
Creio que, para uma mente minimamente crítica, o acepipe figura como empadão indigesto, imoralmente adiposo, desses produzidos a revelia em rodoviárias com ingredientes de segunda e manipulação insalubre. Claro que como todo embuste é servido sob uma aparência pra lá de asséptica para dar ares de lisura, importância e com laços parentais com os imprescindíveis da vida. Numa expressão acadêmica, processo chulo de construção da legitimidade.
Nos últimos dias assistimos mais uma vez a ensaios patéticos nessa direção. Os hegemônicos, meios fabulistas de comunicação e respectivos porta-vozes, escolheram mais um iluminado, deram-lhe uma biografia positiva e ascendente e exploraram até o fim a tragédia pessoal. Tudo muito bem arquitetado.
Um investimento de horas (regiamente desperdiçadas por basbaques de todas as idades, classes e ocupações em frente às telinhas e telonas) na construção do mito, através da exploração mais vil da sentimentalidade e da comoção coletiva. Horas de fidelidade. Investimento maciço e maquiavélico na condução das visões de mundo de uma nação (ou de uma parcela considerável dela). A frio, duas faces de um mesmo desserviço cultural.
O sentimento de nacionalidade é, entre nós, construído pela forçação de barra dos esportes. Retirando o lado positivo (que existe), o problema está na reserva com os sujos bastidores e a irrealidade que eles traduzem e a que, fatalmente, conduzem. Nos mesmos moldes, irrelevâncias do mundo pop são conduzidas ao panteão da visibilidade para servir a formatação de uma mentalidade medianamente pífia e a-estética.
Penso que há uma máxima, ao que parece cultivada pelas divinas inteligências midiáticas, que um povo precisa de ídolos e deuses. Uma coisa assim como um Olimpo. Para tais deuses, culto e submissão. Ao outros, os súditos, alimentos para a alma sequiosa por preenchimentos banais.

Para os últimos, as facilidades de apreensão, a inoculação a fórceps de visões distorcidas de mundo e de vivencias que ampliem o crescimento coletivo e a própria ascensão individual.   

Por Edson de França

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Escrita aforismática

          “Enchendo linguiça!”. Foi assim que certa vez fui alfinetado enquanto tentava articular e parir poucas (e mal pagas) ideias que dariam luzes a um projeto de conclusão de curso. Faz uns bons 08 anos que o episódio aconteceu, mas até hoje a crítica instintiva me obriga a ruminá-la.
             A personagem criticava minha luta, talvez inglória, de buscar elaborar argumentos e criar uma linha de raciocínio, minimamente lógica, para o tal projeto de monografia.
            “O texto – tentava rebater o eu criticado -, sobretudo, o acadêmico, não pode ser escrito de forma direta como as expressões de gíria que utilizamos na conversa com nossos parceiros de copo e vadiação. Nem muito menos com poucas e tão diretas palavras dispostas aleatoriamente num textículo mal ajambrado.”
            “É preciso, além da linguagem clara, um tanto de argumentação como artifício, artesanato mesmo, da comunicação ‘complexa’ das ideias”.
Usei a palavra complexa para acentuar que, se mesmo as ideias mais simples têm um “que” de mistério, bastaria perceber a tal “inocência cruel das criancinhas, com seus comentários desconcertantes”, como diria o poeta.
            A linguagem cientifica – ou até uma simplória crônica, se exigirmos um pouco de purismo estético formal -, então, deve estar um degrau acima das nossas argumentações corriqueiras. Exige elaboração. E elaboração quer dizer, numa sequência rígida: ideia clara e precisa, inicialmente; acúmulo de informações empíricas e teóricas; ruminação criativa para dispor no texto as informações harmônica e coerentemente. 
Finalmente, criatividade na disposição dos argumentos que comporão o documento de comunicação a ser produzido. É o momento em que se vê que o texto não se resume a frases soltas, algumas de feitio, e emissões superficiais de pensamentos.
“Se assim não ocorrer, concluí, com essa carne picada para moldar essa linguiça e explicar suas poeticidades pueris, o tribunal acadêmico não absorve a propositura, nem absolve o proponente!”
            “Você argumenta para explicar; para mostrar a profundidade das suas ideias, os vários ângulos, possibilidades e fertilidade delas, além de permitir, a relativização de seus pontos de vista!”.  
            Discurso para o nada. Como convencer um ente de uma geração que não se acostumou com as nuanças e particularidades do texto escrito mais denso. Que se amoldou ao pensamento reto, direto, anti-dialogal; à lógica dirigista e redutora, sem possibilidades de esquiva, da linguagem publicitária.
À lógica hipnótica da propaganda ideológica que trata o indivíduo como objeto, entidade apenas com desejo insaciável de consumo para coisas fúteis e supérfluas.
À escrita aforismática de quem, com o uso de uma palavra desconexa, acha que já disse tudo. À palavra autoritária, cheia de empáfia e esnobismo e, sobretudo, anti-reflexiva.    
A nossa era é maculada pelo discurso ideologizante. A linguagem com que nos conduzimos nas redes sociais mostra bem isso. Frases feitas, pensamentos prontos e descontextualizados. Muitas delas, errônea e risivelmente atribuídas a figurões das letras, circulam e são reproduzidas incontáveis vezes.
Caímos, afinal, no rondó da preguiça mental, no ócio improdutivo das combinações neuroniais. Na prática insalubre de ficar às margens do córrego sujo, passagem dos pensamentos rasteiros, pescando com bico torto e impreciso as impurezas que boiam na superfície para, com elas, tentar entender o mundo, emitir opiniões e, ainda, almejar produzir ciência. Pobres. Por hoje, penso que a linguiça já tá cheia.

por Edson de França


              


sexta-feira, 24 de abril de 2015

Maturidade intelectual (para a formação das opiniões)

            A história de um povo se faz pelo investimento nas formações individuais que, ao longo de um processo de compartilhamento de ideias e participação social, acabam por se materializar em decisões coletivas que influem nos comportamentos e nas realizações.
            A educação, a civilidade, o respeito, a honestidade, a lisura e até a capacidade autônoma de decidir e influir nas questões polêmicas da vida social, como a violência, por exemplo, demandam diretamente dessa equação.
            Creio não ser difícil intuir que a referência ao “amadurecimento individual” guarda uma relação direta com os processos educativos de transmissão, aprendizado e, sobretudo, construção do conhecimento.
É nesse território que os reiterativos, e para alguns maçantes, clamores teóricos e práticos em torno da essencialidade da educação como vetor de desenvolvimento do indivíduo e da sociedade (capitaneadas, em nosso meio, por pessoas como Paulo Freire, Darcy Ribeiro e Cristóvão Buarque) ganha expressão.
Infelizmente, relegada a um plano secundário por governos e, muitas vezes, levada a reboque até por agentes diretos do processo, a educação entre nós continua sendo um problema estrutural e, sobretudo, um item mal compreendido e parcamente assumido por grande parte da população.
Educação em si não é só dominar os territórios do letramento, da leitura básica, da formatação e difusão de opiniões. Perpassa esses estágios, mas deve ser compreendida como conjunto, uma parte sendo indissociável da outra, um composto que nos capacitaria, individual e coletivamente, como entes autônomos de decisões, influência e autonomia.
A educação, assim compreendida, tem o poder de promover mudanças ou, no mínimo, contribuir para a participação proativa em todos os setores da sociedade, quando da afluência de questões mais delicadas.
No protagonismo conjuntural de questões como a violência urbana, as drogas, a maioridade penal, o desarmamento civil, a corrupção, é que se abrem brechas para o debate público, para emissão de pontos de vista ponderados e sugestões efetivas de solução ou contornamentos.
Nada disso, contudo, parece fazer parte de nosso repertório das ações “cívicas”. Pelo menos não é isso que se vê. Se a educação não é tomada pela sua raiz revolucionária, o protagonismo de um povo vai sendo postergado para um tempo além, quase não identificável.
Assim, gerações vão se perdendo sem vislumbrar mudanças realmente significativas, em meio ao pessimismo, a descrença e o engodo. Presa fácil do dirigismo patrocinado por grupos e corporações que, entrementes, lutam pela manutenção de seus próprios interesses e privilégios.
Um maior conhecimento, produzido e partilhado não nos livraria das trevas, é certo, mas ao menos evitaria a profusão de idéias centradas nas paixões. Ademais, nossa débil educação humanística geral age como incapacitante para formulação de opiniões mais balizadas, de domínio de métodos mais eficazes de análise da realidade circundante.  
O que parece sobrar-nos em termos de ardis políticos, pendores musicais (?) e malandragem futebolística, falta-nos na elaboração de métodos de apreciação das situações postas com isenção e objetividade.
Somos tomados pela emoção e pelos fracos critérios de análise. Não conseguimos ainda produzir um pensamento massudo sobre nossa realidade. Nossos posicionamentos, tão em moda, fartamente veiculados nas redes sociais da atualidade, expõem muito da nossa, ainda frágil formação, para análises contextuais e conjunturais e, consequentemente, para a participação consciente nos destinos de nosso quintal.

por Edson de França

               

               

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Dando alta para as zebras

Entre a décima segunda ou decima quinta saideiras, tendemos a ficar mais intensos na emissão de voz e, magicamente, os pensamentos parecem nos converter em entes mais espirituosos. Foi numa saga dessas um dos meus amigos me surpreendeu, em nossos papos aleatórios, com uma expressão deveras sugestiva. Qualquer coisa desagradável que surgisse ou que, por uma incongruência marota dos astros, se tornasse aziaga, recebia da parte dele um taxativo e filosofal: “Tou dando alta para...”.
Bastou a primeira emissão e seguiu-se uma profusão de “altas”, generosamente distribuídas, para pessoas, instituições, lugares e situações. Passei, por imitação, também a “dar altas” para fatos cotidianos de humor desagradável. Passei a considerar minha mera posição humana como um labirinto psíquico, sujeito a ocorrências sempre limítrofes, jamais intermediárias. Elas cotizam minha paciência, em parcelas não exatamente iguais, de estados de bem estar e irritabilidade iminente.
Dos estados de “bem estar” nada a dizer. A não ser curti-los extensa e intensivamente. Aos outros, cabe sempre a referência alegórica do manicômio, do hospital em que nos tornamos, em determinadas situações provocadas por agentes externos ou por nossas próprias encucações doentias. Dependências de um hospital, paredes brancas, convalescentes e estados terminais, leitos cansados de desencarnes, loucos de fato ou de direito zanzando de cima para baixo e nos observando, sádicos, com seus imensos olhos insanos.
Penso que não é exclusividade minha (nem do amigo professor) essa proto-condição humana. A materialidade acachapante dos cotidianos é condicionada pelas relações com instancias de toda natureza. Cada uma delas sugerindo emanações que fogem a qualquer controle por parte das entidades envolvidas. Há miasmas e produção acentuada de fogos-fátuos nas nossas estáveis e cambaleantes relações de convivência. Assim nascem os desacertos e as situações de desconforto.
Sempre que elas quiserem tomar contar, protagonizar a zebra em nosso pasto, alta para elas. Dar alta é tornar suspenso um estado de permanência em nossos limites. Existem, lógico, hospitais para recuperação prolongada e de pronto atendimento, esses últimos sem elasticidade de tempo para uma recuperação completa. Entre nós, seriam os chamados pavios curtos, aqueles que não estão com a paciência em dia para suportar ocupações de leito por muito tempo.
Há gente que atura, suporta, engole o sapo, respira, infla o peito e sai por cima. Talvez quem tenha uma tendência Madre Tereza se encaixe nesse perfil altruísta. O resto de nós, cuja santidade não tem raízes bem firmadas, seguimos tentando dialogar com o mundo e, vez em quando, “dando alta” para pessoas, situações, instituições, as coisas chatas e os atrasos de vida em geral.

por Edson de França     





   

  

Encarando a vida

           
Artistas que iniciam precocemente a carreira costumam afirmar orgulhosos: “Não nasci. Estreei!”. Uma forma de enaltecer a capitalização precoce de seus talentos e destacar eficiência de sua carreira. É fácil, penso, usar a máxima quando o ente é dono de uma trajetória exitosa. Dessas sopradas, desde os primórdios, pelos bafejos da sorte que garantem a intermitência ascensional do sucesso. É confortável o exercício (meio esnobe, é bem verdade) de valorizar o brilho da própria estátua, dadas essas objetivas condições.
O contrário, porém, bem que pode acontecer. Ou seja, naqueles casos em que a rigor não houve estreia, e a cada novo espetáculo, reza-se para que os deuses brincalhões e sádicos da divina tragicomédia humana permitam ao espetáculo ir até ao final sob a incidência de percalços mínimos. Naqueles em que até o acordar diário exige empenho hercúleo, e botar a cara na rua seja um desafio permanente.
Eis dois cenários contraditórios da vida, resumidos em dois patéticos parágrafos. A via por onde caminhamos nem sempre é pavimentada, a iluminação é ruim em muitos pontos e até a própria condição nata dos sentidos dos caminhantes são determinantes na condução do percurso. Além de tudo, ainda pairam, em torno do caminhante, energias colaterais, por vezes regiamente maquinadas, que atrapalham em muito o caminhar.
A existência não tem manual de instruções. Mover-se em meio a ela, prover o mínimo necessário para sobrevivência em meio ao tiroteio não é tarefa fácil. Quando falamos em mínimo, não estamos falando só de pão, esses da esfera material. Há elementos de ordem psicossociais que determinam, a rigor, comportamentos caros à vida como os estados motivacionais, os trânsitos sociais, as escaladas ascensionais de status.
Encarar a vida, ter a “boa malandragem” de adaptação às condições inóspitas, o toque safo pra fugir das armadilhas e outras artimanhas para mandar tudo às favas vez por outra são, digamos, ingredientes básicos no composto do homem.
Viver é contabilizar sucessos para alguns. E conta-los, posteriormente, batendo orgulhosamente no peito, como a dizer que a vida é fácil, para plateias embasbacadas. Para a grande maioria, viver é ter que encarar desafios. A expressão “enfrentar um leão por dia” caberia bem ao desafio de quem tem que encarar a vida sem muitos recursos ou providenciais ajudas da estrutura familiar e social. Viver é processo de perguntas e respostas. Perguntas rascantes que exigem respostas rápidas e, se possível, engenhosas, límpidas e honestas.
Numa dessas publicações que circulam na Internet e vira, por insistência, citações recorrentes no Facebook, Eder Medeiros enumera uma série de ações para encarar a vida. Para ele, viver é “tentar, arriscar, errar, sorrir, chorar, contemplar, se aperfeiçoar, se dedicar, permitir, sonhar, voar, planejar, fazer, perdoar, se envolver, amar”.
Cá por nós, só pra concluir, vamos de Paulinho da Viola, que sabiamente ensinava que “é preciso viver e viver não é brincadeira não”. O barco é precioso, frágil e as marés temperamentais; o timoneiro, este ente inteligente e falível, tem que dosar coragem, ousadia, ritmos e prudência para ir, passo a passo, encarando a vida, ciente das dimensões do barco e dos humores inesperados das marés.     
por Edson de França

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Nosso inferno e a piada das latas

Muita gente deve ter dado risadas com uma piada das latas que traçava um hilário comparativo entre um inferno de ilustre nação e o nosso. A anedota, para quem não conhece, narra o dilema posto a duas almas recém- desencarnadas em sua chegada ao salão celestial: a escolha entre o diabo e a caldeirinha das duas nações.
A graça ficava no fato de que, na hora da triagem condenatória, caso escolhesse o inferno brasileiro, o infeliz era obrigado a comer três latas de excrementos por dia, enquanto ao “felizardo” do inferno rico caberia a mixaria de uma lata diária. Piadas que envolvem excrementos tem o estranho poder de provocar risadas espontâneas.
A religiosidade na entrega das latas nas duas filiais das hostes do capeta era o diferencial. A graça e a picardia da estória em si. A embalagem e entrega do produto de indigesto consumo no inferno americano era pontualíssima. Nele, uma lata diária era uma lata diária.
No nosso, ao contrário, se revelava um pouco de nossa balbúrdia estrutural. Um dia faltava lata, num outro faltava merda e, na maioria dos dias, quem não comparecia ao expediente do trabalho sujo era o entregador. Moral da história: melhor era viver no inferno brasileiro, pois comer merda ainda vá lá, a regularidade é que é phoda.
As anedotas como esta revelam enormidades sobre nossa capacidade de rirmos de nós mesmos. A seu modo, revelam um potencial de autocriticidade mordaz.
Por outro, parecem exaltar virtudes em pontos onde somos visivelmente deficientes. Algo como se afirmar que as coisas abaixo nas terras brazilis estão fadadas a serem assim mesmo. E que, portanto, conformados, é bom encaixarmos essa situação em nossa mentalidade mediana, rirmos e apenas sermos conscientes de nossas mazelas.
Revela, por fim, infelizmente e sobremaneira, a cruel totalidade de nossas falhas estruturais e estruturantes. O inferno lá descrito é nossa imagem no espelho. Cagados e cuspidos, nem na entrega rotineira da ração malcheirosa conseguimos ser eficientes. Nesse ponto, diria que a piada estaria completa caso enaltecesse também nosso papel de mazeladores.
A piada dos infernos deveria nos servir para gerar indagações. A princípio, bem ou mal, dispomos de estruturas de serviço, de gerenciamento, de participação, de locomoção. Dos mecanismos de elaboração de politicas públicas às estruturas de pavimentação de ruas e logradouros, passando por serviços de saúde, educação e segurança. Temos a estrutura, a lei, os planos, o material humano, as ações cotidianas.
Se temos tudo isso, o que nos faltaria, então? Acho que além do riso autocrítico temos que rever a noção e extensão de nosso inferno. Dos enlatados à base de esterco humano que somos instados a engolir como ração diária e que produzimos sistemática e profusamente.
Tomemos o exemplo de nossas cidades, independente da de seus limites extensão, diante das chuvas de fim de verão. Atoleiros, calçamentos revirados, alagamentos em bairros “nobres”, deslizamentos em bairros pobres, surto de dengue e chikungunia, filas de crianças e idosos em postos de saúde, atendentes mal-humorados e médicos mal formados e sem sensibilidade social e humana.    
Por aqui, convenhamos, falta a cobrança mínima de regularidade por parte dos entregadores de nossas sagradas latas diárias. A falta-nos a seriedade, falta-nos governança, falta-nos o equilíbrio dinâmico de consertar as coisas antes que se tornem metatásticas, falta-nos participação e cobrança.
Infraestrutura de vias, estrutura de transporte público, inoperância das empresas que administram serviços básicos como água e saneamento básico. Sem contar, claro, com a indefinição de responsabilidades. Federação, Estado, prefeituras, diretamente ou via autarquias, não tem uma cartilha definida de responsabilização. O jogo de empurra serve ao propósito de minorar a urgência urgentíssima de certas providencias.
 Se formos perguntar, porém, a algum responsável, fatalmente eles creditarão a culpa a São Pedro e sua incontinência pluvial. O tempo e a hora de atuação não são respeitados por aqui. No final, sobra para nós a impressão de que se um dia falta o conteúdo da lata, noutro a própria lata e em outros o entregador falta ao trabalho é que nós, sem percebermos, vivemos é mesmo dentro da lata compondo, junto com conteúdo, um cenário de situações indigestas, e penosamente compartilhadas.

por Edson de França