terça-feira, 27 de outubro de 2015

O legal (muitas vezes) é imoral

Participei dia desses, do lançamento de mais um programa de incentivo ao pequeno empreendedorismo. Entre as metas do programa constavam, além do incentivo financeiro óbvio, a disposição em regularizar os pequenos comerciantes, ou seja, tirá-los da total informalidade. O convencimento dos mesmos passava, claro, pelo aceno da bandeira legalista que promete, entre outras coisas, o acesso aos benefícios da Previdência, a habilitação jurídica para a concorrência nas licitações públicas e a entrada no rol dos cidadãos com direito a créditos bancários. São douradas as promessas para quem se dispor a abandonar o mercado informal.
Essa é uma parte da história contada pelos gestores. A isca. Não podemos, de fato, descartar os benefícios e o esforço legítimo e real, para levar aos simples comerciantes a condição mínima de legalidade. O que falta dizer, entretanto, é que todo esse esforço legalista, se tem algo de benemérito, tem também uma contrapartida: atuar sob as condições legais é render-se à vigilância estatal e, sobretudo, ter maiores compromissos com a receita pública, através de impostos e taxações. Não que isso contenha algo de imoral. Não! O problema vem, sobretudo, da carga de exigências, afora as garras dos rapinismos e burocracia, com que a máquina estatal acossa os incautos.
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Os ônibus urbanos das grandes cidades ostentam outdoors onde se lê: “Transporte ilegal de passageiros é crime”. O aviso alerta para os perigos advindos do uso disseminado, brasis a fora, dos tais transportes alternativos. Tudo certo, tudo bem, tudo lindo, tudo... legal. O que se esquece de dizer, no entanto, é que a condição em que os legais trafegam beiram as piores das alternatividades.
Basta visitar uma cidade qualquer de uma região metropolitana, para sentir o real peso da legalidade. Não é nada legal quarar em um ponto de ônibus sem cobertura durante, no mínimo, quarenta minutos. Sei que, neste caso, põe-se em cheque a reponsabilidade do poder público, mas esse é mais um sinal do compromisso do estado brasileiro com as condições legais.
Quando surge o busão, a entidade denominada de cidadão – no caso, sem qualificativo na escala social como um time sem série – tem um susto. Uma carcaça enferrujada que se arrasta em sua direção, pensa e de pneus meio carecas. Quando adentra, outra amarga surpresa.”Lata sardinha” seria mais confortável. São pingentes humanos pendurados nos estribos, assentos largando de bancos, bancos largando do chão, motorista esbaforido, estressado, mal pago e, entrementes, senhor de habilidades discutíveis.
Ora, no momento civilizatório, onde a grande maioria das pessoas cumpre horário e para isso necessita, decisivamente, de uma forma de deslocamento rápida e precisa, nossos sistemas públicos deixam a desejar. Pergunta-se: como aderir a legalidade, se o sistema não atende às necessidades e, em muitos casos, empatam em termos de qualidade e capricho com os alternativos, os informais e os “fora-da-lei”.
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Acho que o leitor mais atento há de perguntar-se “o que essas duas histórias têm em comum?” A rigor, responderia o cronista, trata-se de um desabafo que muitos gostariam de expressar, creio. Viver no Brasil, em alguns momentos, é ser convidado a ser legal, a participar do banquete da legalidade, usufruir de todos os direitos, benefícios e segurança que ela poderia propiciar. No entanto, nada é mais falho que as condições legais postas por alguns dos nossos serviços básicos. Nesse quesito, ainda estamos em construção, carregando pedras e a argamassa para garantir a segurança do muro.

por Edson  de França