Edson de França*
"Entrar por uma viola e com ela sair cantando". Quase consigo ouvir a voz de Neruda, poeta pacífico, aqui do lado de meu providencial leito de mar. Atlântico de corpo e alma - nascido, criado e encarquilhado pela brisa marinha - aprecio o poema como quem mira os horizontes procurando deuses abissais que, vez ou outra, emergem para seduzir donzelas e tomar uma com os “mano” num boteco à beira mar.
A voz de Cátia de França, um desses seres maragrestinos, dá-me uma cantada. "Esse verde que chega a doer das águas de Tambaú...um dia vou voltar". Da terra "vem-me a ânsia de viver e de ficar". Este vem a ser o final de um poema, "Cemitério no campo", do alemão Herman Hesse. Parodiando o pacífico Neruda, adentro-me, irmano-me feito peregrino, à caminhada com o poeta e com ele sigo cantando.
“Nada vejo por essa cidade que não passe de um lugar comum”. Salves, Zé Ramalho, oitenta anos de galopes rasantes. Passei a amar minha terra quando conhecida como “terra das acácias”. “Badionaldo na praia do Poço. O hotel Tambaú, que colosso. Cabo Branco e Astrea charmoso, são recantos encantos enfim”, cantava o bardo Livardo Alves. Arrematava. “Tuas praias formosas. Mulheres, acácias e rosas. É cidade jardim, poema sem fim”. O Badionaldo continua lá pra quem quiser conhecer. O Astrea minguou, mas ainda é possível ver o mar a partir do mirante Cabo Branco.
Não conheço as acácias. Conheço os abricós de macaco da Praça da Independência. Conheço ipês floridos do Parque Arruda Camara. Lembro-me do abricó, fruta exótica, que o velho trazia do Horto Simões Lopes. Lembro tanta coisa...Adoro o trour lírico, roteiro sentimental pelas ruas da cidade. Retomo o poeta Eulajose Dias de Araújo, primeiro poeta nativo de minha memória afetiva. Viajo na poesia de Polibio “varadouro” Alves. Sinto-me joaopessoalmente como o poeta Lau Siqueira. De outra, como o Vital cantador Farias, “Essa linda Philipéia, digo joãopessoalmente, que não sai da minha idéia, que não sai da minha mente. Aperto a mão de Caixa D’água no beco da escola de artes do Tomás Mindelo.
Olhava dia desses os passantes - alguns apresados, outros em velocidade de cruzeiro – no largo do Ponto de Cem Réis. Numa crônica reportagem antiga, lá nos tempos de aluno da Comunicação, eu e o parceiro Roberto Faustino, referi-me ao jornaleiro Reginaldo e ao propagandista Vitorino, este último que na época fazia reclames das lojas com um carrinho munido de autofalantes. Já não estão mais entre nós. Mas, como cantava o poeta argentino Jorge Luis Borges, quadros não recebidos ocupam um lugar meio psíquico a quem foi prometido. As figuras do mundo ativo permanecem vivas, pelo menos enquanto por aqui flanarmos.
Quem passa pelo Cem Réis, com um mínimo de mediúnica sensibilidade, sente a energia ancestral de quem por ali passou. Quem passou, quem parou para contemplar ou se sentou para papear com amigos, quem tirou seu sustento de alguma atividade econômica ali desenvolvida. O largo do Cem Réis foi/é palco para discussão política, para propagar e ruminar as novidades palacianas de perto e de além mar. Lugar onde os velhos digerem, com comentários picantes ou reacionários, a tatuagem de Anitta e o uso do Anita para prevenir a Covid-19.
Lembro-me da areia branca do terreiro da casa de tio Severino, numa Tambaú desabitada, cuja nobreza estava nas areias pisadas pela gente pobre. Os pobres venderam suas terras, premidos pela urgência desenvolvimentista de colocar o luxo à beira-mar. “Além do limite do vale profundo que sempre começa na beira do mar”. O mar é para todos, mas para morar na boca do tsunami é preciso ser, no mínimo, desembargador e construir uma mansarda com recursos públicos.
“Em suas mansardas, mansões e motéis, os homens manejam os seus carretéis. Novelos e linhas, labirintos e ruas, as mulheres e luas são pedaços da noite”. A urbe, pessoa, é contraditória. Somos, gente como a gente, contraditórios. Consumimos nossa alegria e carnavalizamos nossa dor. Bradamos aos mundos que nem Chico Limeira. Nossas ruas, nossas praças, nossa cidade tem denominação “imprópria”. Palmas para a novíssima geração do canto paraibano. Sou essa cidade múltipla, véio, e isso dá um orgulho danado. Daqui vejo o mundo, vejo meu mundo, sensibilizo-me e canto. Cantando dessa folha-palco onde me sustento, abro o peito e meu canto rasga o universo para atingir as estrelas. Há encantos e cantos a serem lidos, revisitados, vividos.
*Jornalista, cronista e poeta.
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