quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Os “maus pensamentos” e a censura

Os ditadores alimentam paixões gris. Parece-nos, em primeiro plano, que o mundo imaginado por eles é cinza no calor dos corpos e no pulsar das idéias. Assim todo amor que eles possam nutrir pelas gentes que tiranizam é ritualístico como uma solene marcha marcial, composta por boas, obedientes e inexpressivas crianças. Já a explosão da alegria legítima, se por acaso há, é marcada por um dobrado bajulativo e démodé, executado num dia pátrio e festivo de culto ao déspota de plantão.

Todo projeto ditatorial tem por base a instituição da censura. O ato, mais que a própria palavra, faz parte do vocabulário ® estrito dos artífices das ditaduras. Compõe parte das estratégias restritivas da criação artística, do pensamento e da informação jornalística. A estrutura governativa das ditaduras, portanto, não prescinde de uma estrutura burocrática e de parda significância intelectual para vigiar e punir a eclosão dos “maus pensamentos”. Ou seja, coibir idéia ou atitude que sugira desestabilizar o status de pensamento médio aceitável por aqueles vetustos seres fãs da ordem e da disciplina, mantida a ferro e fogo.

Em dois momentos, ao longo do século XX, o país das bananas e parangolés sofreu estados de censura. Um primeiro patrocinado pelo Estado Novo de Getulio, e um outro durante o movimento militarista apelidado de Revolução de 64 (que para nós, seguindo uma tendência de análise mais crítica, resolvemos simplesmente classificar como Golpe). Os dois tiveram por pano de fundo rebuliços internacionais que marcavam a conjuntura cada época, especificamente. Com Getulio, a II Grande Guerra marca sobretudo um estágio de desesperança e eclosão de ideologias arrevesadas, vividos por toda humanidade.

Com o Golpe de 64, dois eventos: mais uma Guerra – Vietnã - e um elemento novo e intrigante: um movimento planetário de essência jovial e provocativa. Quem nos dá noticia desse movimento é Fred Góes, na Literatura Comentada de Gilberto Gil: “de roupas coloridas, cabelos longos, cultivando a terra e usando tóxicos para aprofundar o auto-conhecimento, os hippies recusam qualquer padrão institucional adulto”. Pois é, esses malucos de cabelos encaracolados e mentes maravilhosas entravam em cena sem pedir licença com um discurso pacifista, uma musicalidade que unia a ancestralidade a rebeldia e uma forma de vida alternativa determinada criticar os padrões da sociedade.

Ironicamente, nossa “revolução” interna, por mais que lhes decantem o espírito desenvolvimentista, entrava em choque direto com a revolução mundial que se desenrolava. O mundo experimentava, ao contrário de nós, revolução; esta sim muito mais significativa, uma revolução cultural no melhor sentido que a expressão possa ter para a humanidade. Revolução cultural quer sugerir descontinuidade, ruptura: inconformismo, make Love, not war, despadronização da vida. Nada, nada, nada que agrade um santo homem do senhor e das instituições cristalizadas.

A revolução cultural, porém, inspirou pelo menos dois movimentos tupiniquins. O bucólico Clube da Esquina e o carnavalesco e desbundado Tropicalismo. O primeiro muito mais marcado pela musicalidade e o outro incorporando não apenas a música, mas o espírito rebelde de uma época, o experimentalismo literário e a veia política mais exposta. Como nos reportam Paulo Franchetti e Alcir Pécora (leia-se Literatura Comentada de Caetano Veloso): “Recuperando Oswald de Andrade, valorizando a alegoria, assumindo a modernidade, eliminando a fronteira entre mau e bom gosto, entre música erudita e popular, nacional e estrangeira, o movimento tropicalista cria uma nova linguagem. Linguagem de recusa dos padrões de bom comportamento no palco, na melodia, na vida”

O corpo, o som e a as cores tropicalistas não se harmonizariam jamais com o uniforme verde-oliva, nem com o rataplã dos marcha-soldados cabeças... de que mesmo? Era inevitável o choque. Ouçamos, então, Paulo Franchetti e Alcir Pécora em obra supracitada: “os clarins da banda militar, cujos acordes dissonantes irromperam com brio em 1964, avolumaram-se com a Lei de Segurança Nacional no compasso marcial dos Atos institucionais, que culminaram no 5º”, a mais terrível criação garrastazulina. Acabaram, inclusive, com a transmissão ao vivo de programas da juventude.

Assim, prisão, exílio, censura de pensamento e atitudes não eram só medidas punitivas, eram estratégias saneadoras, artifício limitativo de quem se acostumou a viver paixões cinzentas. Paixão assim sem abraços, sem beijo na boca em meio ao passeio público. Paixão pela limitação dos movimentos de corpo, do colorido das vestes, dos pensamentos e dos acordes, considerados em bloco como exotismos perniciosos. Cá pra nós, “exageros transgressores” esses que, além de soar como representações das ousadias e traduções do espírito de uma época, fazem minimamente pensar. Fazem um homem se sentir homem, alimentam o sonho (até de um mundo melhor) e contribuem para torná-lo participativo no jogo das forças e formas que movimentam o cosmo. Em navilouca assim não há lugares para instituição da censura.

(por Edson de França)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Universitarizando tudo!

Mais de uma vez ouvi de professores o seguinte comentário: “Tenho alunos que gastam os tubos para realizar a festa de formatura, mas que durante o curso inteiro não compraram um único livro. E pior, não adquirir uma única obra básica da área que escolheram para se profissionalizar é até compreensível; não ler os textinhos didáticos das aulas é o fim da picada.” O desabafo e a constatação pessimista dos mestres mostram duas coisas: o nível do nosso ensino superior tende a ser baixíssimo, pelo material humano que a ele é guindado e; segundo, a formação superior virou griffe. Um luxo, um capricho, um hábito fútil como as lentes coloridas e os faróis de neon que iluminam, por baixo, os automóveis da galera descolada.
É moda universitarizar tudo. Depois do galicismo oitocentista e da americanização dos anos 50 em diante, parecíamos ter chegado ao nosso limite. Qual nada. Numa onda de nacionalismo exacerbada descobrimos a pátria acadêmica e passamos a querer ser universitários a todo o custo. Isso talvez servisse para esconder algumas deficiências nossas (como as deficits de formação básica, por exemplo) e, também, para emprestar certo status a tantos de nós, tão pouco afeitos aos malabarismos do intelecto e, por que não, do espírito.
É in ser tribal. Pertencer a tribo de algum curso, de preferência o da moda. Se a moda é Biomedicina, porque não exibir por aí uma t-shirt com uma representação qualquer do curso que freqüento, mesmo que só retenha uma vaga idéia do que se estuda por lá? Porque não encher uma camiseta com símbolos e frases de efeito relativas a uma área qualquer para demonstrar meu pertencimento aquela gangue em particular? Ser tribal constitui uma cultura particular do mundo dos consumismos. Ensino universitário é assim. Um produto, comprado a pesadíssimas mensalidades, não sob a pena de tornar o individuo melhorado ou minimante profissional, mas tão somente laureado pelo glamour que a griffe empresta.
O ensino superior, dito universitário, virou uma marca um rótulo e, como todo rótulo, repleto de sentidos e interpretações. Interpretações que levam incautos a dar aura de inteligente a qualquer coisa que a porte.
Por que, do nada, eclode um movimento chamado forró universitário e ninguém de plantão para nos explicar por quê? Por que um bando de neo-sertanejos que inclui Michel Teló e Luan Santana, versões nacionais e caipiras da mega-estrela Justin Bieber, são precedidas de uma marca chamada inadequadamente de sertanejo universitário. O que o mundo universitário tem a ver com isso? O que explicaria a tomada dessa marca? Talvez a presença maciça de jovens universitários nos shows desses rapazes, talvez a idade dos mancebos, compatível com quem deveria estar na universidade (sei que eles não estão, e se chegarem a farão a distância, pois universidade é incompatível com os planos imediatos das estrelas do mundo pop, até para estudar música); talvez, finalmente, por que o nível mental (que envolve audição, senso estético, cultura e sentimento) daquelas super-produções não ultrapasse a leitura, com a voz uma oitava acima e a mente várias páginas abaixo, de um meteoro de paixão por parte dos nossos acadêmicos.

por Edson de França

sábado, 20 de novembro de 2010

Indo nada bem!

Jornalismo sério no Brasil é artigo de luxo. Exige dois preços. Um intelectual; não é produzido nem para (nem por) oligofrênicos, nem agrada a patuléia desinteressada e analfabeta funcional. Outro, financeiro; não está a venda a preços populares como os blood news, esses epidêmicos tablóides que infestam o país, espécie de caça-níqueis de empresas em franco processo de desaprendizagem jornalística e comercial. Tampouco pode se valer apenas da abnegação e genialidades opinativas dos jornais de autor.
Se fossemos apontar hoje uma fonte de jornalismo confiável em nível de Brasil, teríamos que nos contentar com uns pouquíssimos títulos. Esses geralmente independentes e tendentes às posições outrora rotuladas de “esquerda”. No mais, no dito mundo editorial dos jornalões, dos sites de toda ordem e dos jornalísticos televisivos radiofônicos, a carência é geral.
Peca-se pelo conteúdo editorial frágil, e justo na informação que é a coluna mestra do jornalismo com a produção da notícia. Peca-se no ajuste da opinião, uma vez que qualquer um dá opinião sobre tudo. Não que a opinião seja artigo para especialistas apenas, não é isso, mas o excesso de holofotes sobre alguns célebres palpiteiros compromete o exercício saudável da apreciação da realidade sócio econômico e cultural de um país. Peca-se pela falta de criticidade; falo da crítica comprometida e formadora. Peca-se, finalmente, na carência do auxílio honesto, sem pieguices, sacerdócio ou qualquer coisa que o valha, ao pensamento nacional, através do incremento de possibilidades de conhecimento e interpretação.
Invadiu e se intalou confortavelmente na saleta do sensacionalismo o jornalismo brasileiro. E para esse ato, podemos até encontrar defensores, sob a desculpa de “estamos tão somente explorando o filão do que o “povo” gosta, do que o “povo” consome”, “ao menos, num país que não lê, estamos produzindo um literatura popular”. Pobre povo, que somos todos nós, tomados como seres de mentalidade rasteira. Um bando de incapazes. Bem abaixo dos burros que só exercem sua burrice de fato quando atravessam uma via movimentada, pondo em risco suas finíssimas canetas.
Poderíamos dizer, parodiando Lobato, que uma nação é feita de homens e jornais. E jornais servem para incrementar e manter o status da democracia. Todo entendimento do cidadão acerca do mundo que o cerca passa necessariamente pelo veio jornalístico. É ele que fornece os elementos, seja ouro ou cascalho, que permitem ao individuo posicionar-se diante das correntes de pensamento de seu tempo. Ao jornalismo cabe a promoção do diálogo, a captação dos fluxos relacionais da opinião pública e a vigilância permanente aos desvios dos setores de mando no país. Isso sintetiza o papel da imprensa num país. Se não tivermos isso minimante, se de nossas minas só extraímos ouro de tolo; e até for-nos difícil localizar nichos dessa prática no nosso meio, então, estamos indo de mal a pior.

por Edson de França

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Democracia monárquica - II

As eleições em geral se notabilizam pelo signo do novo. Novos os tempos, novas as caras. Porém, nada a se comemorar: o novo traz encarnado em si o velho. O velho hábito, a velha usança, a velha retórica tantas vezes recorrida. Algo que não se classifica exatamente como fenômeno nessa terra tendente a vivificar comportamentos monárquicos. E, portanto, nada que gere espanto, ânsia de revolta ou repugnância para quem dança conforme a dança.
Por essas bandas o exercício político passa pela consangüinidade, ou seja, por aqui é importante fazer parte de um clã, de feudo, de reinado ou principado mirim, em primeiríssimo plano, se quiser estar entre os protagonistas da dança eleitoral. Se não, para tão somente compor o quadro de figuração, que ostente ao menos uma pitada de sangue, mesmo que emprestada por diluições sucessivas, da nobreza e ocupe um reles posto de-pré nas bases sustentatórias da estrutura.
Aqui, a herança política – e em que sistema se pode falar de herança política a não ser nas monarquias? - é riqueza, patrimônio, e como tal tratado. Negócio, portanto, gerenciado sob bases bem pouco esclarecidas para uma maioria que cede, gratuita e democraticamente, aos membros da nobreza, assim tacitamente formada, o direito de representá-la nas instâncias de mando do país.
O processo se dá mais ou menos assim. A arena política é dividida em grupos com vários membros e extensões variadas. Formam territorialmente potentados, a que nossa sociologia cabocla denomina de currais. Mas são donos também de uma espécie de território psíquico, permanentemente (re) construído, que instala e legitima sua condição real no pensamento coletivo. Os limites de ação do grupo vão das camarinhas das mansardas às ruas dos povoados chinfrins, passando claro por acentuadas incursões em instituições e órgãos públicos dos quatro poderes e empresas privadas. É portanto uma ação tentacular, um estilo livre de famiglia.
Famiglia, falemos assim, porque não é composta exclusivamente de membros consangüíneos diretos – apesar de estes serem os naturalmente aptos para as sucessões -, mas de parentes, semelhantes, aderentes e agregados de todos os matizes. Uma espécie de hierarquização, com distribuição de títulos de nobreza que incluem marqueses, duques, condes, no primeiro escalão. Fracassados e lascivos barões, no segundo. Damas de companhia, anões de festa, cavalariços e diligentes serviçais para varrer e jogar a sujeira debaixo do tapete, num terceiro nível, e assim por diante até lá embaixo.
Cada grupo político tem o seu cacique. O morubixaba ganha peso pela eleição ou sucessivas eleições. Se atingir uma cargo alto vira o chefe supremo e passa a mandar. Cria uma curriola de sectários, um vassalato nobre com direito a proximidade física e cultivo de ânsias de disputa. Depois, granjeia uma horda de bajuladores, aliados, baba-ovos, xeleléus e outros impronunciáveis e os mantém a custa de promessas ou generosos presentes, empreguinhos na administração pública, por exemplo. A maioria desses fiéis seguidores sonha em um dia montar sua própria famiglia e obter uma projeção política e é essa promessa divina que eles acalentam sob o travesseiro nas noites insones. Dificilmente conseguirão. Seu destino, na hora da precisão, quando se tornam verdadeiramente visíveis, é virarem laranjas, bodes-espiatórios ou bois de piranha quando a casa cair ou a fossa encher.
Ah, na democracia monárquica todos têm as mesmas oportunidades. Todos podem posar para a foto. Contanto que saibam qual papel lhes cabe na trama; se baronete, duque, bufão ou bobo da corte. Tem espaço até pra patuléia, mais uma vez, contanto que ela se vista de trapos e comporte-se enquanto a corte desfila (não pode, nem em sonho, dizer que o rei está nu!). Saiba, por fim, bater palmas e assoviar alegre e abestadamente com a língua enterrada entre os dentes.


por Edson de França

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Democracia monárquica

“Eu vejo o futuro repetir o passado/
Eu vejo um museu de grandes novidades.”
(Cazuza – O tempo não pára)

A monarquia brasileira morreu de inanição faz eras, porém uma análise do quadro político brasileiro (não sei dizer se em outras democracias o mesmo acontece, mas posso falar pelo que vejo no nosso terreiro) nos revela que os hábitos da velha nobreza palaciana ainda sobrevivem. Tudo como de antanho. O velho ramerrão entre palacianos e paupérrimos súditos de vossas majestades continua vigente, mesmo que travestido de uma meicape modernosa.
Monarquia denota sucessão sanguínea. Nela, os rebentos sabem da sua condição de reis em potencial desde crianças. São os marcados, os escolhidos. Caminham pelos corredores e camarinhas dos palácios aprendendo ali, no leito das manias senhoriais, todos os desvãos do poder. O que envolve a intriga, o jogo de interesses, a boa ou má vontade do soberano sobre seus serviçais e súditos. É com esse aprendizado nas mãos que o escolhido assumirá o poder um dia.
Na nossa condição contemporânea, lideranças não são espontâneas. Alguma temporã pode até despontar por acaso, contudo, dificilmente conseguirá entrar e se manter nos panelões aristocráticos que compõem os núcleos de nossa democracia monárquica. Falta-lhes, talvez, pitadas de sangue azul nas veias, ou mesmo leves êmbolos de azul de metileno circulando pelo corpo. O espocar de lideranças por essas bandas obedece a princípios particulares. E são muito bem detectáveis para além das capitais, mesmo que este seja um principio naturalmente impregnado n’alma brasileira de Porto Alegre a Gado Bravo.
O Nordeste, não é de hoje, já teve seu condicionamento sub-desenvolvimentista soberbamente explicado pelas ações perniciosas de sua casta de políticos, nossa monarquia mirim. São as “permanências”, das quais nos deu noticias um dia o professor Gilvandro Sá Leitão Rios, catedrático em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba. Às permanências, detectadas pelo professor, ousamos denominar tão somente de “continuidades maléficas”, mesmo sob a égide inegável da “mutabilidade” que tinge a condição moderna em que vivemos. Vivemos um tempo mutante, porém sob a imperiosidade de renitentes e incômodos lugares-comuns.
Políticos que “representam” feudos, ou melhor dizendo, ao meu olhar armorial, cidades-reinos ou principados de suntuosidades e decadências, onde a ignorância, passividade e tibieza participativa da população em geral convivem com estratégias de poder de potenciais experts do poder de mando. Famílias (ou seriam clãs, famiglias?) mantém como parte do sustentáculo de seus círculos uma relação incestuosa com os poderes centrais e adjacências. Daí não importa a letra do ferro com quais elas marcam seu rebanho. Qualquer um brasão manterá sempre o mesmo modus operandi: uma continuidade que passa pela ritualística ascensão ao poder e a entrega ritual do cetro para entes preparados (?) para sucessão. Ou tão somente, para uma continuidade... de erros.

por Edson de França
Iniciamos com o texto Democracia Monárquica uma nova fase deste Blog. Além das poesias que marcaram o eixo de existência deste veículo nos últimos anos, a partir de agora ele incorporará as crônicas produzidas pelo autor e trará de volta os comentários sobre o cotidiano da mídia, da imprensa e de toda essa incrível, sofrível e, por vezes discutivel, vida e toda cultura que envolve seus (des) caminhos.