sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Ofícios extremos

O picadeiro do grand circo da vida é pontuado por elementos contrastantes. Compomos, ao nosso estilo, um circo mambembe sob o olhar raivoso das intempéries. Sobrevivemos com uma variedade impressionante de faces e ofícios que, estranhamente, parecem depender uns dos outros, para afinal propor a harmonia caótica do dia a dia. Em tudo há uma estranha simbiose, é preciso que um pólo exista e se insurja para permitir a existência do outro. Algo assim como um acordo tácito, chulo e mal amarrado entre protagonistas e almas periféricas. Assim como na geografia da terra a montanha faz par grotesco com a planície e o charco com a caatinga, em flagrante contraste; na geografia social representamos papéis extremados.

No espetáculo do circo suburbano, a fantasia de chita puída, os palhaços, as bailarinas de “vida fácil” dupla, os músicos desafinados, a bateria furada, o violão de quatro cordas e o desgracioso apresentador fazem par com o menino remelento e paludo que nutre, a si e às lombrigas, de algodão-doce ou aquele pestinha ranheta que zomba, apupa e joga frutos de “carrapateira” nos artistas. Palhaços todos, ao final das contas, cobaias de um experimento que jamais será dado a se entender completamente.

É preciso que hajam Genis, naturalmente putas, sempre desfilando no passeio público para receberem a bosta e as pedras dos comuns. Sempre santos, anônimos, e talvez, felizes por sua condição periférica. E Carolinas, para verem a vida passar na janela. Sempre santas. Sempre comuns, insossas, e de língua ferina. Manequins para as vitrines e passantes basbaques para apreciá-las. Gente para ocupar as casas de vidro e mãos para manipularem as pedras. Corredores abnegados e desocupados para falarem de como aqueles ficam de shorts. Garotas para posarem para Playboy e onanistas para espermeabilizarem as páginas da revista.

O carro do ano e a lata velha para permitirem a comparação por parte dos esnobe dos puristas. Falando nisso, é preciso conviver-se com carolas e desbundados. O que seria de um sem o outro? De apolíneos sem dionisíacos? Capitalistas sem explorados. Comunistas e consumistas radicais. Colunismos sociais e ralés. Perdulários e sovinas. Realezas e prebeísmos. Bregas e chics. Bregas bons e chics ruins. Atividades e passividades. Genes dominantes e seus irmãos, os recessivos. Bebuns e sóbrios.

Filhos da mãezinhas zelosas e filhos da puta que os pariu. Leitores de obra inteira e adoradores de orelhas... de livros, diga-se de passagem. Gente capaz de produzir, com sentido, inumeráveis parágrafos e rastejantes limitados por duas linhas e onomatopaicas gargalhadas. Homens e protótipos de homens, falo em termos de personalidade. Homens heteros de raiz, sexualmente falando, e, amiúde, boiolismos, androginias e outras manias mais. Homossexuais e viados. Viados e frescos.

Sabidos e bestas, macunaimicamente falando. Espertos e idiotas. A luz e a escuridão. O preto e o branco. O opaco e o furtacor. O prostático e o urologista. O fiofó e o dedo do proctologista. O amorfo e o cristal. O cristão e o satanista, o fiel e o incréu. Jesus e Pilatos. Judas e Jesus. A alma santa e o espírito de porco.

Assim em tudo na vida, no grande picadeiro. Tudo no seu lugar, eqüidistante, fazendo páreo cego para alguma anomalia, ou, tão somente, outra palavra sobre o caos. Tudo no seu lugar cumprindo “fiel obrigação” (obrigado pelo verso, irmão Hesse) nesse espetáculo de luzes e sombras, textos e entrelinhas, fala e silêncio, notas e pausas, protagonismos e coadjuvâncias, enfim, palco e platéia. Platéias ativas e passivas, entendidas ou parvas.

O bem e o mal. Nunca tão bem, nem nunca tão mal. Sigamos pelas alamedas da DIALÉTICA, onde um estado explica a existência do outro, num romance pra lá de astral. “Assim como deus, parabéns o mal” (obrigado, grande , por mais essa conspiração interestelar). Deidades e cães-miúdos. O oco do pau e a santa para ocupá-lo. Tom e Jerry. Picapau e Leôncio. O picapau e a madeira para picar. O papel em branco e a lauda preenchida. Pedras que rolando viram gente, pois “gente é outra energia diferente das estrelas” (brigado, mano Caetano) e gente que nem tentando há de chegar lá.

Esse também é o cenário da produção cultural de algum sentido, ou até daquela de sentido algum. É assim com quem milita na imprensa com a opinião (este ofício de segunda categoria). Sempre sujeito a riscos, ou melhor dizendo, produção salutar de antagonismos. Primeiro, o desafio de produzir periodicamente artefatos minimante instiganttes para mentes abertas. Estas um dia agradecem do alto de sua sapiência e discrição.

Depois, cara, por vezes lambuzada de óleo de peroba, e coragem para expor os artefatos – muitas vezes vergonhas - naquele limiar entre a ousadia e total falta de senso do ridículo. Uma bestagem quixotesca. Uma corda bamba enfim, um fio, um pescoço para uma corda, um algoz e um cadafalso. Por ultimo, o risco máximo de servir de sparring ocasional para meia dúzia de egüinhas mal amadas exercitarem a única faceta apreciável de sua exuberante natureza animal que é distribuir coices aleatórios.

por Edson de França

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A construção dos santos

O Homem vive de fabulações. Gosta mesmo é de mitificar e mistificar. O domínio da razão não nos afastou dessa mania de imemorialística ancestralidade. Nem mesmo a leitura materialista da sociedade que questiona a deidade foi capaz de superá-la. Precisamos como cães sedentos, de deuses, totens e santos enfronhados no cotidiano. Precisamos de pitonisas, de oráculos a quem recorrer, quando o futuro nos aparenta incerto ou o peso da vida amarga testa nossa capacidade de resistência. Sugere ser essa uma determinação inexorável, um elo inquebrantável entre o que arde de primitivo em nós e a moldagem psicofísica do homem contemporâneo.

Isso nos parece admirável quando analisado do ponto de vista de fenômeno social e antropológico. Mas essa mesma manifestação mostra sua face ridícula, material, caso queiramos assim denominar, quando desmembramos friamente as unidades componentes do ritual de nascimento dos tantos santos que infestam nosso cotidiano. Quando isolamos cada um dos elementos constitutivos da construção dos santos, os separamos, e criticamente apreendemos nomeadamente cada um deles, surge uma face pouco comum da santidade: os santos são invenções manipuláveis da mente dos homens e, socialmente, são impostos para o consumo de fiéis. Mas sempre envolvem, para sua existência, um teatro mágico de alegorias e pantomimas bem humanas, bem terrenas.

A construção dos mitos (de oráculos, pitonisas, mães dinás, xamãs, advinhos, santos e etc), socialmente aceitos, dá-se, sobretudo, na esfera dos poderes, implícitos ou escandalosos, que reúnem indivíduos e instituições. Trata-se de poder pela manobra da opinião publica (maestralismo social e ideológico) e pela visibilidade (egolatria) de alguns poucos espertos. Na real, um exercício natural dos homens que, internamente, se reveste de rituais de empoderamento permanentes de indivíduos, grupos e instituições.

O poder, ou empoderamento, se dá na soma de alguns elementos que se complementam como passos marcados de um ritual de sociabilidade. Ao primeiro deles podemos conceituar como “arquitetura primordial de uma causa”, que é tão somente a captação (na maioria das vezes, oportunista) de um fenômeno, de apelo popular, em sua maioria (mas podendo ser oriundo das elites), sobretudo, no tocante as questões que envolvem a fé. A conseqüente embalagem desse índice serve para consumo de uma massa que, por sua vez, não deve questionar validades.

O segundo trata-se da “busca pela legitimidade”. Este se caracteriza pela violenta busca a captação da boa vontade da opinião publica. Não adianta ter um ícone consumível nas mãos, se a população questiona; é preciso quebrar resistências, mostrar o que há de “real” no fenômeno. Para isso, um documento probatório de uma instituição reconhecida (uma universidade, uma instituição cultural ou o que valha) serve bem ao propósito de estabelecer o consenso. A simbiose entre homens e instituições, leigos e especialistas, oportunistas e ingênuos da fé, eventos de comunicação pública e ocupação de espaços na mídia fazem parte do modus operandi em torno do princípio da legitimidade.

Assim se fortalecem os cultos aos santos. A fé é um dos monumentos mentais da humanidade mais manipuláveis. O santo, coitado, já desencarnado, não pode dar a palavra final nos destinos de sua memória. Nem pedir que o esqueçam. Que o deixem em paz. Nem negar seus milagres. Tudo acaba mesmo é na esfera humana. E onde há o humano, há geração de valores – valores psíquicos, em alguma parte; em moeda corrente, na maioria das vezes - oportunismo, malversação, construção de mitos consumíveis. Pura, simples e profanamente.

por Edson de França