sábado, 12 de maio de 2012

Dias de Lobo


O melhor momento do dia é quando as línguas descansam. Ensimesmados, conseguimos rememorar pequenos flashes (a maioria insignificantes) da novela que se passou em 8, 10 horas de vida ativa. Conseguimos, enfim, ruminá-los...

É que andamos exasperados, perambulamos, muitas vezes a esmo, falamos (muitos de nós, por obrigação do ofício, é bom que se diga), comemos a comida suspeita da rua, cruzamos praças, avenidas, ruelas, becos e (des) respeitamos sinais... observamos as paisagens e os passantes, vamos ao banheiro alguma vezes atender solicitações naturais e inadiáveis. Estivemos, durante uma jornada, de frente e de banda pra pessoas, pensamos, formulamos lógicas, nos exprimimos, fomos bem ou mal entendidos, nos exasperamos por coisa pouca, paramos, tomamos o Prozac amigo, atenuante como os colegas da rua. A pressão sobe, desce, oscila, trepida, lembrando um velho elevador que range e ameaça a tudo exterminar com um baque pras profundezas do poço. A fronte arde em fogo diante do sol. Fomos consumidos, consumimos. Consumimos-nos, lobos de nós.

Volta para casa (diria bar, se todos nós fossemos da confraria da cerveja). Lugar que nos cabe sem reserva. Lá, encasulados, bem dentro de nós (como o eu caçador de mim da música do Milton) buscamos, ou perdemos tempo tentando, encontrar o eu maior e melhor que aquele que projetamos. Fingimos acreditar que ele existe e pode, a qualquer hora mostrar sua face surpreendente.

Recolhemos céleres, as ferramentas dos deveres sociais que nos prendem ao cotidiano. Baixamos o pano do circo. Limpamos a cara.  Ensaiamos outros enleios. Voltamos, enfim, ao barco que nos conhece como capitão. Verificamos as amarras, largamos o leme. Brincamos de atirar e puxar a âncora no mar de dentro. Pensamos. Viajamos por azuis, imensidões. Horizontes tão conhecidos, tão próximos, distantes...

O desafio é esquecer o dia. Ou algumas partes dele. Talvez as mais desgastantes. Deve-se guardar dele o delírio significativo para reutilizá-lo num passo errante dos próximos capítulos. Se houver, é bom que se diga!

Quando enfim chegar o novo dia (por uma pratica reincidente) nos sentiremos como um outro ente. Do batéu que plana sereno, das ondas alisadas, das nuvens espalhadas para despontar um sol brilhante e amigo da pele, do céu azul que artisticamente pintamos, dos ventos que acalmamos e dos peixes que domamos pra puxar a caravela, pouco ou nada teremos. Viraremos, outra vez, submarinos forçados a submergir no mar de fora. Da pressão até suportável, da brisa amena que nos acolheu, desceremos ao cenário belo e insalubre do cotidiano. Voltaremos a compor capítulos da lenda tornada visível, palpável e, sobretudo, criticada, degradável.

Convenceram-nos que desse embate diário dependeremos sempre para garantir sobrevivência. A fotografia ¾ envelhecida no belo quadro social. O trabalho, as horas, os compromissos, as discussões, os malentendidos, a guerra de egos, os interesses legítimos versus os interesses escusos, as indiferenças, essa hipocrisia. Até onde aguentará nossa carcaça?

Chamo aos Homens de submarinos por entendê-los “artificialmente” construídos para as pressões do mar de lá fora. Onde tem-se que ser lobos quando bobos, irônicos quando lesos, hipócritas onde a hipocrisia é moeda corrente. Palavras secas (ou ressecadas numa goela rouca), medos insanos, sentimentos dúbios, tics pra lá de nervosos, tibiezas enraizadas, recalques, autoritarismos recorrentes, “simpatias de giz” para ocasiões gélidas, aceitação resignada e crente nas regras do jogo. Alternamos humores, modulamos a voz para engolirmos e cuspirmos cururus, apressamos os passos, desconfiamos da destreza do chofer, aguardamos o passo em falso do passante ao lado, rimos nervosos, damos esmolas como piedosos cristãos. Assistimos de dentro da cena o rondó desse tempo de desperdício de talentos e vontades.

Em momentos do dia, porém, nos miramos telegráficos, monossilábicos, mesmo quando a crônica nos invade e pede para se esparramar numa folha em branco.

- Hulk!... gelada, por... favor!

Simplificando. Bastaria uma palma fechada e um indicador apontado para o alto, para o entendimento e o silêncio de oratório que o fim de um dia nos cobra.

por Edson de França