sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Os insensatos corações e a madureza cultural

Exigir autonomia intelectual imediata de um povo talvez seja demais. Há condições objetivas que não recomendam esse tipo de postura. Uma hora há que se pensar nas tão sagradas questões de escolhas pessoais, gosto estético essas coisas; noutra, pesemos os níveis de escolaridade e acesso à diversidade de produções culturais. Num Brasil pouco dado ao exercício da democracia no campo cultural, então, a coisa se configura no mínimo como uma tarefa para Hércules e Sísifos.

Historicamente, produção cultural de algum vulto, num processo maquiavélico de posse e usufruto, sempre torna-se privilégio de apaniguados e teoricamente iniciados. E isso empresta um ar de nobreza a quem detém, presumivelmente, a possibilidade de acesso aos bens culturais de qualidade e a aura de ilustração e pose assumidamente esnobe para quem detém a capacidade de compreendê-los. Parece até que os bens culturais não sejam, em sua essência, patrimônio de toda a gente. Somos excludentes e cruéis em termos de fruição cultural. Por incrível que possa parecer nossa mentalidade monárquica forja cultura para consumo de elites até mesmo quando essa manifestação emana dos meios populares.

Ao povão resta a novela. Essa espécie de folhetim popularesco, onde os intelectuais vão espreitar a essência da alma brasileira e a lacraia suburbana procura formas atuais de vestir-se e comportar-se, é uma febre nacional. Durante seis longos meses, religiosamente, o Brasil consome novelas em pelo menos quatro horários distribuídos ao longo dos dias. A novela agenda o papo das cumades, o look das adolescentes, a libido dos marmanjos e o vocabulário dos triviais da rua há mais de meio século. A primeira telenovela, em 1951, sob o sugestivo nome de Sua vida me pertence.

Não está na novela, enfim, o problema. Como gênero dramático, ela incorpora a tradição narrativa do teatro popular e a representação intensiva do cotidiano de uma coletividade. Enfim, ela mergulha, flagra e configura o imaginário de um povo num determinado recorte de tempo. Nisso a novela cumpre o seu papel. O problema nosso é a repetição, o “mais do mesmo”. A fórmula de nossas novelas caduca a olhos vistos. Onde poderia existir a ousadia, mora uma acomodação residual que acomete a produção novelística de um chatíssimo estado de estagnação temática e representativa.

Ou seja, cada vez mais a novela revela-se como um “lugar comum”, incapaz de dar – ou ao menos propor - novas cores ao pensamento nacional. O pensamento médio de um povo se alimenta de ações provocativas. O contato com novas linguagens, novas formas narrativas e temáticas é que sempre motivou o salto cultural, mesmo quando a mudança provoca choque num primeiro instante. Não é o que acontece por aqui. À fidelização conseguida junto ao público, responde-se com uma clicherização violenta. As mudanças, se é que há, se processam a passos muito lentos como uma desconsideração aberta à inteligência e a paciência do povo.

A novela (assim como outras produções televisivas, a exemplo dos reality shows) é um produto cultural embalado pela mídia para consumo de um público médio. Publico médio, teoricamente, medido pelo grau de escolaridade (cabeças com poucas horas sala de aula são prato feito prum escritor de novelas!), nível de consumo (grana para consumir merchands é sempre bem vinda!) e disponibilidade (quem tem realmente o que fazer não assiste novelas!). A escolha do seu alvo não leva em conta, claro, níveis de bagagem cultural. Sabemos que maiores níveis de educação e cultura habilitam as pessoas ao inconformismo e a busca permanente quando não pelo novo, minimamente pelo que instiga, pelo que é capaz de lançar novas luzes sobre as interpretações do mundo.

Não vou afirmar que novela é um gênero que agoniza. Longe disso. Somos um povinho bem mediano (teleotários, se assim quiserem entender) que adora as tramas levadas ao ar pela Rede Globo, nossa roliúde da teledramaturgia. Existindo público, portanto, a sobrevivência está garantida. Só acho simplesmente que toda ditadura, mesmo estética, deve ter um pólo antagônico. Algo que sinalize aos ideólogos e produtores de bens culturais que há gente do outro lado do aquário e não cabeças dispostas a dizer sim. Se não temos a madureza cultural suficiente para fazer escolhas mais elaboradas, ao menos que as fórmulas repetitivas dos nossos produtos culturais massivos sejam questionadas em seus clichês, lugares comuns e besteiróis a preço de realidade.

por Edson de França