quinta-feira, 7 de julho de 2016

Inusitado desencontro na rede

Uma contava por volta dos 16, 17 anos. A outra engatinhava pelos cinco, seis anos. A diferença de idade, contudo, as aproximou. Primeiramente como uma espécie de adoção materno-filial de total consenso entre as partes. A diferença também não representou empecilho para que nascesse dali uma amizade, um pacto de atenção e proteção com todos os prenúncios e promessas de vida longa.
            Aí vieram os tradicionais enlaces sociais que acabaram rendendo um batizado de fogueira e, a partir dele, o estreitamento dos laços, desta vez até com uma forma de tratamento carinhosa. Tal afilhada, tal dinda. Depois, a participação na vida também se estendeu a testemunha e madrinhato do casório. Só faltou mesmo o apadrinhamento do primeiro rebento para selar os compromissos.
            O distanciamento, porém e em virtude das andanças e desencontros, afazeres e escolhas da vida, foi se estabelecendo. Mas, essa determinação da vida é dada de forma tácita. Afastamo-nos naturalmente dos amigos e familiares. Não nos afastamos por desavenças ou abandono, mas por injunções da vida corrida que vai canibalizando os laços e afetos.
            Mas, se a proximidade não era uma constante, a chama mantinha-se acesa e os avistamentos esporádicos e mais a energia que fluía à distancia fazia crer que a velha amizade cumpria os legados de longevidade e parceria cúmplice. Tudo ia bem e até aparecer, bem em meio a bela amizade, a raiz dos contatos, das malversações e das intrigas modernas: a rede social.
Nos tempos que correm é sempre surpreendente reencontrar amigos, fazer novos e estabelecer contatos diários com pessoas de perto e até de longe do conhecimento presencial. As velhas amigas se reencontraram numa busca casual por um dessas ferramentas básicas de exibição e comunicação e, também, como um ingrediente mavioso de contatos imediatos. À força de um simplório click todas as distâncias parecem ser superadas.
Acontece que para estar na rede o tempo todo é preciso desocupação e ter a disposição um bom suporte de internet. Sem isso, muitas palavras direcionadas a outrem podem ficar vagando no limbo ou só serem vistas em situações favoráveis. Mesmo sendo nossos smarts suficientemente promíscuos, do tipo que se deitam em qualquer rede, nem sempre temos o tempo e a habilidade de ver toda verborreia que nos enviam diretamente ou que nos interessam de alguma forma. Imagine, então, responder a todas.
Uma das amigas da estória – presumivelmente a mais nova – passava horas na frente da tela mantendo contatos com deus, o mundo e a madrinha. A dinda, porem, não estava a disposição da rede todas os minutos necessários para receber e responder os petardos da amiga. Nem, muito, menos dispunha de um suporte full time de internet. Tudo compreensível para quem desembarcou na atualidade diretamente da era das cartas e carteiros. Mas, para quem parece ter nascido na era da máquina, a falta de atenção contingencial soa como uma afronta. Uma dessas de romper enlaces e provocar brigas.
Não sei se essa anomalia atende por um nome, mas se coubesse um diria ser a síndrome da mão única, uma patologia moderninha. Algo semelhante à mão estendida que não encontra o cais seguro de outra mão para ancorar. Ou pior, a saudação que não encontra eco a chamada desesperada que não cata um interlocutor. A frustração pela perda da palavra emitida, nos casos mais graves, pode gerar acessos de ira extrema, com capítulos tragicamente hilários de torrentes de impropérios e tomadas bruscas de satisfação e chamadas ao terreiro com a faca entre os dentes.
Ou seja, a não resposta passa a figurar como uma descortesia a mais no repertório dos contatos e laços sociais.
Foi em um desses acessos que a afilhada, após alguns petardos perdidos, perdeu a compostura. Armou-se com o supra sumo do seu repertório de baixarias e ressentimentos, redigiu longa missiva e clique-se: mandou um spit fire virulento para quebrar todos os resquícios da velha amizade. A intenção, ao que parece, era não deixar nem os caquinhos da afeição.
Não sei precisar se alguma coisa sobrou da amizade. Se da estrutura longamente construída restou algum migalha de respeito. O que sei é que, pela virtualidade se constroem amizades e, ironicamente, através da incompreensão humana sobre a carência informática do “outro”, o esfacelamento das amizades está ali. A ridícula distância de um desumano, judicioso e gélido click.
por Edson de França        



 



quinta-feira, 2 de junho de 2016

A gente não quer só comida!!!

A discussão que se seguiu ao intempestivo desaparecimento do Ministério da Cultura atraiu-me por alguns posicionamentos. Pontos esses que não se apaziguaram em mim nem com o súbito reaparecimento do mesmo.  Primeiro, a comemoração que se seguiu por parte superlativa dos apoiadores do governo interino como se o ministério representasse um sumidouro voraz de recursos, ações escusas e investimentos fúteis e, segundo, a malhação raivosa dos artistas sob os apupos de “vagabundos” ou aproveitadores infiéis dos recursos públicos. Pensei, cá com meus botões, no teor das ideias que poluem a cabeça dessa gente e de que fontes elas se alimentam.
Primeiramente, sem entrar no mérito da imprescindibilidade (ou não) de uma pasta voltada a cultura, acho extremamente ignóbil uma pessoa que se passa a denegrir a arte e os artistas. Penso seriamente que isso revela uma mentalidade de classe que vê inutilidade na produção cultural por não entendê-la (afinal, para isso tem-se que ter capital, pasmem, cultural) e que vê no investimento na cultura um desperdício.
É o caso, por exemplo, de uma excelência oligofrênica, representante de uma legião demoníaca (que por aqui é partido), que vi na Tv que, durante uma sessão do senado, demagogicamente (isso se lia na carantonha), dizendo que os investimentos da Cultura deveriam ir pra saúde (tudo bem ele tinha cara de burro mesmo!).
Penso que esse ódio assim destilado é uma particularidade da elite brasileira que já identifico a uma porrada de tempo. Nossas elites dirigentes tem a cultura como um bem a ser exibido como souvenir. Então é mais fácil para eles irem à Europa e voltar regurgitando “cultura” e exibindo fotos e fatos dessas incursões do que perceber que “produção cultural” não se faz só com vontade, talento e voluntariado. A mesma coisa que se dá em termos de educação, níveis de civilidade e urbanismo.
Fala-se das praças maviosas da Europa, da educação e civilismo dos americanos. Decanta-se as ruas limpas, a integridade dos monumentos públicos, a excelência das universidades, os níveis elevados de avanço científico, da introdução dos avanços tecnológicos na vida cotidiana, dos avanços sociais e da participação do povo na vida pública, do nível cultural e artístico das bandas de lá e por aí vai.
Por aqui, entretanto aplica-se outra lógica e nada do que se vê e idolatra-se lá fora parece merecer uma versão tupiniquim. Copia-se, isso sim, os modismos descartáveis, mas tem-se dificuldade de perceber a ação estratégica que seria investir em bens culturais mais permanentes. E esse é o mal dos postos de mando que, infelizmente, são ocupados por entes oriundos de famiglias cuja mentalidade não ultrapassa os limites do corolário de crenças de sua classe e descendência. Usa-se quase sempre o discurso de tarefa difícil e de povo indócil demais, sem a mínima sensibilidade para essas coisas.
A cultura, como deu a entender dia desses um senador gagá daqui de nós quando interrogado sobre seus planos para cultura, seria a revitalização de festas démodé de padroeira e quermesses. Uma prova cabal que de cultura, nossos políticos não entendem nada. Para a maioria cultura se faz com mulambos, migalhas assistencialistas e amadorismo, tipo as pecinhas montadas em escolas de ensino fundamental por diligentes professorinhas.
É impossível gente desse nível de mentalidade perceber o universo educativo, socializante, formador, participativo e financeiro do mundo das produções culturais. De como ele faz circular significativos valores econômicos e de como através da circulação de bem simbólicos e bem produzidos garante-se o deslocamento de pessoas e o consumo nos centros de excelência cultural.
Não vou afirmar, me repetindo, que um ministério da cultura seja tão indispensável. Não saberia avaliar isso. Mas não é entendo é um país que tem carências em todos setores da Cultura, desde a manutenção dos monumentos históricos até a circulação e disponibilização do acesso aos bens culturais, possa prescindir de especialização e especialistas dedicados a esse setor e, muito menos, que artistas sejam considerados vilões numa estrutura que eles só ajudam a entender e criar níveis de criticidade bem maiores.
Não quero afiançar que não haja distorções. Claro que há, como em todos os setores da vida brasileira – políticos e de administração pública, sobretudo. Mas, se é para discutir distorções, abramos a caixa preta da máfia branca, por exemplo, e de como ela se locupleta, por séculos, dos favores públicos, inclusive saqueando o sistema. Se vamos nessa direção, que façamos Raios X geral e irrestrito para localizarmos onde moram os vagabundos. No mais, aproveite o tempo desperdiçado na dificílima tarefa de elaborar um discurso falacioso e vá ao teatro, ao museu, assista uma manifestação popular, vá a uma feira livre para ouvir o cantar dos chapeados, leia um livro, ouça uma canção, entenda-a e reverencie a alma criadora.

por Edson de França




terça-feira, 24 de maio de 2016

O rei da praça


Numa das ultimas vezes que o vi, ele dava cambalhotas no meio da rua, entre sua praça e a barraca de Diassis. O burrinho de cana barata, estrategicamente protegida do sol e das investidas dos sócios de carraspana, dava-lhe o combustível necessário para compor a cena tragicômica. No curto intervalo do trânsito, entre a passagem de um carro a outro, ele meio que encostava o ombro no chão e compunha um arremedo de catrâmbias para uma plateia entre extasiada e aflita pela exposição gratuita da decadência humana.
O público circunstancial de transeuntes sorria. O rei da praça fazia as estripulias para divertir o público permanente de comerciantes, taxistas e contumazes dos bares.  Os parças de cana e sina soltavam piadas e incentivavam. O bufão sem fantasia se esforçava para diverti-los, arriscando-se, pacote bêbado, naquela performance suicida.
Chico, assim era conhecido, se intitulava o rei da praça. Era nas fronteiras bem delimitadas daquele logradouro, que ele parecia encontrar seu lar, seus domínios. Além de tudo, a sobrevivência, a dignidade do trabalho pelos favores prestados aos comerciantes do local em troca de uma dose, um resto de comida, uma peça rota de vestir, uma caixa de papelão, uma latinha de alumínio para vender.
A praça do rei não passava de uma área pública desocupada que foi ganhando contornos de praça a partir da intervenção dos moradores. Comerciantes se instalavam, alguém plantava algo e o rei vigilante fazia uma espécie de guarda intensiva, diuturna e amorosa.
 Logo pela manhã, quando os moradores saiam pros seus trabalhos, encontravam o rei da praça varrendo o local. Se parassem para ouvi-lo certamente notariam que, muitas vezes, ele não juntava coisa com coisa. Falava sozinho, enfronhado no meu mundinho, se dirigindo num linguajar estranho as figuras reais e imaginárias. Algumas vezes pedia uma ajuda, chamando por nomes que ele guardava ou inventava.
Uma coisa, entretanto, soava bem audível para quem quisesse ouvir: “Eu sou o rei da Praça”.
A quem parasse para ouvi-lo, ele falava da família. Falava de brigas com a mulher, com os filhos, de pobreza e expulsão de casa. Contava do cotidiano dos frequentadores da praça e das acontecências. Se ganhava um móvel ou objeto de casa, corria para arranjar um transporte e conduzia o bem para a casa que ele dizia ter, porém que nunca informava o local.
Parecia ter uma deferência especial por quem o ajudava de alguma forma, ou ao menos dava a impressão de considera-lo além da figura pública do pária e alvo das brincadeiras de mau gosto. Desses lembrava nomes e repetia ao que parece para não esquecer, contava suas peripécias e grandezas, ria das piadas e executava os pedidos que acaso lhe fizessem como quem serve a um deus pagão. Era quando exalava um ar de agradecimento e submissão.
À noite, num nicho formado entre duas barracas, com papelões e tecidos, o rei improvisava a cama. Dormia com os cachorros que guarneciam seu sono, não deixando que ninguém se aproximasse. Outra vez, compondo o cenário, lá estava a garrafinha plástica de parati fazendo companhia para atravessar a noite fria.    
Nunca mais vi o rei da praça. Não sei o destino, se é vivo, morto ou se eternizou, como acontece aos moradores da rua, que sobreexistem entre a decadência e a insanidade. Talvez, com a perda progressiva do reino, devido a ocupação desregrada dos espaços e a debandada natural de seus personagens, ele migrou para outra herdade. Foi para tomar conta, ser o rei e recompor, a seu modo, toda a escala da nobreza a massa plebeia do seu reino.
Hoje, quando atravesso a praça, escuto seu chamado “Ô, baiano!”. Paro, escuto outra vez na sua conversa arrevesada, assisto atento seu desfile de personagens e situações. Quando me vou, escuto bem claro às minhas costas: “Baiano, eu sou o rei da praça!”
por Edson de França      
           

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Catecismo dos reclamões

Com o tema comporia um fado. Imprimiria tristeza na melodia, na armadura musical, no acompanhamento e na interpretação. Na letra, exortaria meus fantasmas em reclamações pelos amores perdidos, pelas nostalgias da casa da infância mãe e, como tema incidental, enxertaria trechos de minha pequena visão de vida e a impossibilidade de pôr-me em lugar dos que atingi com meus desatinos. Estaria composto, então, o fado dos reclamões, uma elegia festiva aos comportamentos mesquinhos e aos comentários desabridos e impensados.
Com certeza me perguntariam o porquê do fado. Respondo que não caberia, para o caso, a entoação de um frevo, uma bossa ou um mágico samba. Creio que não e exponho minhas razões.
O frevo dá alegria nas pernas, reclamões são parasitas por excelência; a bossa é muito sofisticada e contida para ser subutilizada como ícone para lamentos muitas vezes estridentes e monocórdicos como a cantiga da perua (de pió a pió); o samba conduz alegria e tristeza abraçadas num mesmo guarda sol musical. Os reclamões, enfim, não são alegres, nem tristes, nem poetas, nem proativos, nem utopistas, nem arautos da esperança. São só reclamões por natureza e oficio, nada mais.
            Acompanho com muita atenção os comportamentos (os meus, então, bem de perto; por dentro e cercanias, inclusive) e os comentários que o ser humano é capaz de engendrar inconscientemente, isto é, sem pesar a extensão de seus comentários, nem a autocrítica necessária ao processo de emissão de opiniões. E, muitíssimo menos, o conhecimento histórico que facultaria profundidade às análises conjunturais. E, afinal, o que eles entenderiam por conjuntura?
As redes sociais permitiram a generalização do exercício da opinião. Há algum tempo, a opinião dos famosos é a média do nível da mentalidade nacional, pela exploração exagerada dos canais por parte das celebridades de plantão.  Hoje, ela se tornou a ágora dos anônimos e instalou-se, de vez, a balbúrdia. Nos grupos profissionais, associativos e comunitários, nos comentários destilados em perfis pessoais e nos blogs vai se compondo o perfil atual dos opinantes e, por ironia, vão se expondo as bases da emissão de opiniões.
Infelizmente, conheço de perto um monte de gente que utiliza as redes sociais para destilarem seus sofríveis pontos de vista. Infelizmente, porque, conhecendo-os, posso aquilatar por que processos eles construíram o nível mental que andam por aí usando. Infelizmente, por que o pensamento exposto não reflete um arcabouço articulado de ideias.  Apenas um mix de ideias arrevesadas, fruto de algum interesse frustrado ou decadência de algum título nobiliárquico, que eles vão destilando feito as prédicas de um velho e seboso catecismo.

por Edson de França 

quinta-feira, 19 de maio de 2016

A vez da opinião desqualificada

Dos debates em salas de aula aprendemos, sob toda a tensão gerada pela provocação dos nossos mestres mediadores, abalizar as opiniões emitidas. Talvez pela condição tête à tête das pelejas na ágora e pelo caráter “teórico-científico” empregado, tinha-se um respeito naturalizado pelos próprios brios e, sobretudo, pelo dos outros. Tinha-se medo da vergonha pública, mesmo em grupo tão pequeno.
Acalorava-se algumas vezes, é bem verdade. Noutras vezes, alguém era flagrado na mais pura ingenuidade dos intentos, incorrendo em posicionamentos simplórios e diatribes estabanadas. Alguns eram fãs do achismo aberto, baseando suas opiniões basicamente na altura dos seus umbigos. Outros, como eu, tímidos quase pusilânimes, eram expectadores... talvez por extrema timidez, talvez por incapacidade de formulação, talvez por puro desconhecimento, talvez...
A emissão de opinião pode ter duas origens. Surgem do conhecimento e da análise, o que dá segurança e dificuldades de contestação; ou brotam da “segurança” adquirida pela ilusão do (pouco) saber ou pelo exercício banal e gratuito da língua de pau dos palradores. No ultimo caso, a responsabilidade pela opinião e a estabilidade dos argumentos são elementos ausentes na equação.
Assistimos nos últimos tempos, em muito motivado pela onipresença das redes sociais, o exercício público e massivo da emissão de opinião. Digo em muito, porque defendo a tese de que tal volume e nível de mentes opiniosas e respectivos produtos conceituais sempre existiram. A rede só fez expô-los e, ao mesmo tempo em que uns perderam a vergonha; outros, ladinamente, utilizam-se dos véus para emitirem juízos tortuosos sob a grossa couraça do anonimato.    
Não que isso seja mal. Ao contrário, representa a multiplicidade saudável dos posicionamentos. O porém é que, acompanhando a horda opinativa, desfilam a inexperiência, a má fé, a precocidade dos apressadinhos, os interesses escusos, a falta de visão analítica e outros males parecidos dessa odiosa família.
Tirou-se da vitrine, em muito, a opinião dos profissionais da imprensa e acadêmica que, por décadas, foram hegemônicas, venderam a falácia da categoria do produto enquanto, teoricamente, “faziam muitas cabeças” e orientavam pensamentos e comportamentos coletivos. Essa era foi superada.
Hoje, contudo, tanto a opinião dos colunistas como a opinião do desavisado parecem se fundir ou seguir a mesma lógica. O amadorismo, atrelado a falsa impressão de ciência que querem impor, parece ser a marca mais gritante da opinião em nossos dias. Doutos de toda ordem ou de porra nenhuma se assemelham. Poluem o debate público, querem impor suas razões a ferro e fogo, tem a mente voltada para o dirigismo manipulador, caçam incautos prosélitos e, enfim, se esmeram cada dia mais no superficialismo das formulações desabridas, descabidas e pobres de teor analítico.

por Edson de França 

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Encefalograma dos velhacos

Esbarramos com eles todos os dias. Não há a principio uma descrição universal que os identifique. Cada um tem particularidades físicas definidas. Os meus, feito Proteus, me aparecem de todos os jeitos (e defeitos), portando sempre adereços que facilitam, de longe, sua identificação.
Se acaso (utilizando todo breu e sadismo do meu humor) descrevesse os atributos físicos, pantomímicos e enumerasse os acessórios indispensáveis da composição das personas, certamente todos identificariam num estalo de quem falo. Tornaria-os transparentes e, seus chistes, muito cristalinos.  Talvez, por isso, fosse acusado de comportamento antiético. Porém nada me impede de descrever, caricaturamente, aquele que parece ser o estado de espirito que eles destilam por aí. Melhor até, a patética composição humana, psíquica e existencial do espécime.
Velhacos e calhordas. Cada um deles, independente da idade, zelam pouco pela integridade. São, naturalmente, dados a expedientes pouco honestos. Parecem sempre estar montando algum ardil para se dar bem. Criam situações, envolvem terceiros em seus planejamentos e, de preferencia, tem um radar atento para flagrar incautos e enredá-los em sua malha de trevas. Na maioria das vezes, porém, usam uma entidade divina para justificar seus atos. Vendem iluminação.
Na realidade, ao que me consta, eles são dotados de dois neurônios apenas. Unidades que não executam o processo natural de sinapses. Não se articulam para formar um todo coerente. Cada um deles age por si, independentemente da vontade o outro.
Um, vesgamente, avalia o mundo e captura-o, com todas as deturpações possíveis, para servir de lastro à formatação dos pontos de vista com que tenta ser a palmatória do mundo. Deles partem as análises mais engenhosas e críticas mais ferinas, centrados na mais pura má fé e os projetos mais grandiosos, com um potencial de ilusão imenso.  
O outro, objetivo e capcioso, não oferece ao portador espécie nenhuma de auto-crítica ao seu parasitismo endêmico. Enxergam na vida uma materialidade só. Um queijo atirado às ratazanas, onde a elasticidade do estômago e o tamanho da dentuça estabelecem as regras da convivência.
Agem por todos os períodos do ano. São epidêmicos em todos os quadrantes. Mas, quando os períodos eleitorais se aproximam, os seres bi-neuroniais sentem sua atividade cerebral atingir a excitação máxima. Se olhares em volta, devem ter alguns acampados perto de tua casa.

por Edson de França


        

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Sem choro e sem vela

No episódio fatídico da malograda Copa do Mundo de 2014, assistimos a um impressionante comportamento remissivo e bem "a nossa cara". A lesa contagem regressiva para a almejada conquista do hexacampeonato mundial. Eram sete os passos que nosso treinador fazia questão de lembrar, a todo instante. Era o prólogo de cada partida. O ensaio tatibitate do êxtase, materializado num galope cabalístico.
O ato (ou a bravata, como queiram) era uma espécie de referência honrosa à moda criada por Mario Lobo Zagalo, durante a campanha do tetra, em 1994 (Diga-se de passagem, a conquista mais insossa de que se tem noticia na história dos mundiais. Tanto que acredito que ali os deuses vagabundos do futebol, desocupados que só eles, ali puseram as mãos e jogaram os búzios).
Nosso treinador embarcou na mesma onda e passou a destilar um mantra – uma forma de patuá vocálico - para atrair bons fluidos, creio. Eram os sete passos para a conquista, mas os deuses também vingativos do futebol injetaram câimbras nas canetas da “poderosa” equipe ali por volta do quinto, quando, para não fugir do cabalismo, sofremos uma derrota acachapante por gloriosos sete a um.
A referência aberta aos dotes advinhatórios e cabalísticos do “Velho Lobo” nos remete, sem escalas, a um dos nossos maiores problemas. Deixamos de lado muitas vezes a seriedade, a análise prática das coisas objetivas, e caímos no mundo das fabulações, como se toda conquista fosse dom divino e se sustentasse a base de forças extra-humanas ou do acaso das meizinhas, dos feitiços caseiros, das crendices e das superstições.
Nossos boleiros de bancada, por sua vez, recorrem ao baú dos tabus para vender a ilusão de vitória, como se isso valesse como passaporte fiel para atingir objetivos. Daí, a forma escolhida para antecipar um resultado satisfatório é ir ao baú da história para enumerar coincidências. Tomamos com esse comportamento muito gols. Um daqueles sete ao menos pode ser creditado nessa conta aí.
Foram sete gols. Rápidos, certeiros, mortais. Foram sete gols e a Seleção brasileira amargou o malogro do sonho do hexa campeonato. Foram sete gols construídos de forma até simples. Uma engenharia eficiente como um elevador da Thissen Krupp ou da Atlas Shindler.
Perdemos para uma seleção tida e alardeada como mecânica. “Os alemães tem cintura dura. Prá cima deles, fulaninho dos anzóis”, bradava um de nossos “queridíssimos” locutores esportivos. Saibas, porém, Macunaíma, que a mecânica casa-se integralmente com a tecnologia e esta, diretamente, com os conceitos qualificativos de eficiência e eficácia.
As peças dos Mercedes Benz ou dos Audis da vida, ao que me consta, não são feitos de geléia e, mesmo assim, quando postas em movimento, agem como equipe. A deficiência motriz de uma peça é sempre compensada ou complementada por outra. Ao final, a máquina mostra sua forma ágil, dinâmica, efetiva, vitoriosa. A máquina que queríamos ter, seja como protótipo de nossa eficiência, seja como seleção, né não?

Se o futebol ou aquele episódio em especial serve-nos de lição, que se fixe apenas uma. Somos uma gente dada fé e, através dela, tentamos superar nossa falta de empenho nos estudos, na pesquisa, no planejamento, na construção do conhecimento, na confecção das estratégias e na antecipação dos fatos. Fazemos muito esforço, é inegável. Mas largamos tudo, num piscar de olhos, ao sabor das improbabilidades dos acasos felizes. Somos assim no futebol, na politica e em vários outros quadrantes da vida mundana. Infelizmente.

terça-feira, 12 de abril de 2016

Diletantismo improdutivo

     
      Inquiri um novo amigo do peito e da mente para saber minimamente o que quer dizer a palavra diletante. Queria conhecer a palavra. Primeiramente por seus atributos semânticos formais e, num segundo plano, pelos qualificativos atribuídos a quem se autodenomina, é alvejado ou padece dos sintomas advindos de tal denominação.
Diligente, meu amigo Google (isso daria uma bela canção de Raul!), me apontou alguns qualificativos. Uns muito bons. Inclusive me considerei diletante pelos seus aspectos mais positivos, claro. Analisemos o que me soprou o parceiro.
1.   (Obsoleto) aficionado por música;
2.   (Extensão de sentido) amante das artes e literatura;
3.   quem se ocupa de um assunto por gosto, como amador, e não como especialista;
4.   quem muda com muita frequência o objeto das suas atenções (o que, muitas vezes, está associado à ociosidade); quem não mantém o foco em um assunto ao qual atribui prioridade (ou em poucos deles) e o(s) abandona antes de alcançar objetivos palpáveis.
Dessas quatro acepções, em pelo menos três me encaixaria. Assumiria, ou melhor assumo com orgulho os qualificativos descritos. Explico. Curto música sem limites, amo todas as formas de arte e cometo minhas literatices (eita, palavrinha pejorativa!) e me ocupo, como artífice, de alguns fazeres (gastronomia, poesia, música, serralharia e artes plásticas).
Como minha sobrevivência não me exige dedicação integral a nenhuma delas, posso me permitir brincar com essas expressões, distribuindo meus mimos e atenção a elas na hora em que bem quiser. Nada me é exigido nesse tocante, nem por quem está fora, me vê e me analisa, nem em minha consciência vaga. Deixei-me ficar por aí.
Contudo, pensando em algumas situações que envolvem pessoas e atos reprováveis, do ponto de vista profissional, apliquei à escandalosos comportamentos alheios a condição de diletantes. Ao abuso do exercício do dilentatismo como descompromisso e desleixo. Utilizei-a como sinônimo de entes desistentes e indecisos, porém mantive a dúvida quanto à precisão daquele vocábulo para o caso.
Mas este foi o motivo inicial da oitiva ao “pai dos burros” digital. Fiquei contente, após a saciar a curiosidade com o achado, de minha sagacidade verbal e resolvi digerir um pouco o conceito.
Pus a carapuça. Encontrei-me, nu, em algumas situações de desistência e indolência. Mas como toda auto-estima que se preza, acabei por me perdoar, deixando para o futuro uma análise mais impessoal de minhas diletâncias não doentias, sobretudo aquelas que, pela amplitude de alcance, acabaram por prejudicar pessoas ou os grupos profissionais em que me insiro.
O diletantismo, na sua pior acepção, é um vicio moderno, detectável com relativa facilidade nos meios profissionais. Em meio a idéia de competitividade nos negócios e, internamente, nos microcampos de trabalho, as pessoas se sentem impelidas a portarem-se efetivas e (oni) presentes. Pior, sugerirem competências que, na grande maioria das vezes, não passam de ensaios de fancaria.
Bem pior, porém, é constatar após rápida convivência que os adeptos dessa fraude profissional não passam de entidades rasteiras em conhecimento, em habilidades e, sobretudo, em competências para exercer com afinco aquelas atividades a que se propõe entusiasmadas num primeiro momento.
Por hábito, as pessoas passam a assumir (ou presumir) aptidões para atuarem nas mais diversas áreas e embarcam nos projetos sem a devida carga de humildade e sentimento de colaboração. Após as decepções naturais advindas de seu despreparo, saltam do barco, lavando as mãos, reclamando de deus e do mundo e, sobretudo, frustrados em seus desejos malfadados de se destacar, afinal era esse o seu intento inicial.  
Entendo profissionalismo como a capacidade de dominar uma área de atuação com a leveza dos aprendizes. Ou seja, nada de orgulho e, sim, ciência do oficio e a consciência de que não sabe muito, estando sempre apto a novos aprendizados. Além disso, certa habilidade para adaptar-se a mudanças com tato e positividade. Tudo, claro, com a plena ciência de que desistências por capricho ou inadaptibilidade prejudicam a produção grupal e maculam o ser enquanto profissional. Nada que condiga com o comportamento nocivamtente parasitário dos diletantes de carteirinha.
No mais, mudar é sempre necessário, preciso, vital, mas pular de posto em posto, sem gerar contribuições e imprimir marcas é a antítese dos competidores e empreendedores. É, em suma, um processo de auto-sabotagem que, por exercício deliberado e irresponsável, espalha malefícios e contamina todo o tecido das linhas produtivas, descaracterizando seus objetivos e metas.  
por Edson de França

   

terça-feira, 5 de abril de 2016

Êta, mundo véi com porteira!!

De passagem pela frente da Tv, flagro um trechinho, uma chamada em verdade, de um folhetim global intitulado Eita, mundo bom. Nele um caquético comendador, interpretado pelo veteraníssimo Luiz Gustavo, encomenda a uma alcoviteira da terceira idade, ardiloso plano para atrapalhar o encontro romântico de dois jovens mancebos. Esse simplório recorte cênico, espécie de chamariz para a lesa assistência, é uma síntese da linha seguida pela produção novelística brasileira.
Afora isso, mesmo não sendo assíduo assistente da trama, sei que existem outras torpezas humanas como a busca desenfreada por uma relíquia que daria direito a uma fortuna e um rufião que arrasta uma tabaroa para a cidade grande, a emprega num dancing e consome seus ganhos. Enquanto, o tal mundo bom resume-se a um alesado rebento perdido que desfila sua ingenuidade oligofrênica novela à dentro. Provavelmente, outras relíquias da morte do caráter humano devem pontuar a produção daquela produção televisiva.  
Mas, é essa a risca, a cartilha de autores e emissões midiáticas. Religiosamente, o brasileiro médio tem acesso fácil e ilimitado a um desfile de tramas, maquiavelismos, mesquinhezas, egotrips exarcebados, puxadas de tapete e o que mais você puder imaginar em termos de torpeza e sordidez humana. As produções esmeram-se a reduzir o ser humano, a existência e o convívio social a um simples jogo de artimanhas em nome das vantagens pessoais, através do exercício do gozo, do escarnio, da humilhação e das lesões morais e físicas de um persona a outrem.
Há muito tempo que as tramas globais dividem os habitantes do velho planeta em duas categorias: os lesos, minimamente honestos e, por isso, pouco quedados e merecedores de vitórias; e os espertos (ou fortes), ladinos por natureza e caráter. Nem sempre, claro, esses últimos conseguem seus intentos – os autores, por vezes, reservam a suas crias malévolas finais infelizes e tropeços vexatórios -, mas a lógica que move a máquina cênica nivela a todos por baixo.
Não há um vilão só, a vilania atinge de 60 a 70 por cento dos personagens criados e, até os bonzinhos não escondem seus pecadilhos sórdidos.
A trama, como a própria carga semântica da palavra sugere, é composta por situações ardilosas que funcionam como ganchos para a assistência. É assim na arte literária, teatral e cinematográfica. É preciso enredar o público, levando-o a escolher um lado ou simplesmente apreciar a dança eufórica das personalidades em atritos e conchavos.
Cada uma das artes citadas, no entanto, guarda certo distanciamento do espectador ou leitor. Nelas, a intensidade do diálogo entre o texto, a encenação e o espectador é minorada por um exercício pessoal de reflexão. Creio que o mesmo não acontece no formato novela que, naturalmente, fustiga a mente com pílulas diárias e requerem a participação cativa, acrítica e em níveis de fidelidade patológica. Não sei dizer se isso é bom ou mal. Só sei, cá pra nós, se quiser encontrar “mundo bom”, não se enrede nos folhetins globais.
por Edson de França