quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Sobre a poluição humana

Sou de um tempo onde, dentre as recomendações aos passageiros de coletivos urbanos, destacavam-se duas. “Fale com o motorista somente o indispensável” e “Proibida a utilização de aparelhos sonoros no interior deste veículo”. Afora as informações gerais sobre limites de lotação, passageiros em pé e sentados, preço da passagem, dedetização do veículo nada mais era necessário. A viagem seguia em paz. Se bem que, vez por outra, um operador do sistema ou uma paquera entrava pela porta da frente e ocupava os degraus da porta em alguma conversa atravessada com o condutor... Não se ouviam aparelhos sonoros, não sei se pela falta deles ou pela força de lei da recomendação escrita.
Eram outros os tempos. Penso que as cidades não agonizavam com o inchaço populacional, tinha-se poucos automóveis circulando pelas vias, não haviam, enfim, o ruge-ruge a  correria em busca do vil metal dos dias que correm. Bem diferente dos tempos de agora, onde o nome coletivo cai apropriadamente nos limites da nossa conturbada convivência. Coletivo é sinônimo de viver junto e, por extensão, é significado de balburdia, desrespeito, insanidade, violência, competitividade, incivilidade. Por hoje, basta de sinônimos. O que nos cabe convir é que proximidade de indivíduos gera confusão e gravíssimas diferenças de pontos de vista.
Com muitas idas e vindas comecei a me incomodar com o cigarrinho que alguns insistiam em tragar, numa época em que o fumo era um dos “esportes” preferidos dos brasileiros. À época, era um hábito ainda tolerável. Não sei se pelo incômodo coletivo ou pela descoberta e consciência da melevolidade do cigarro para os passivos inalantes e para os pacholas fumantes, surgiu uma nova placa nos coletivos: a ilustração de um cigarro com um X informava policialmente “proibido fumar no interior deste veículo”(Lei nº 110 de 25/06/93). A lei era informada e o cigarrinho foi, aos poucos, sendo banido do interior dos veículos. 
Novos ajustes vieram em seguida com novos reclames, postos ali por força de leis ou de novos ataques a convivência andante dos busões. “Lei do troco” e “Estudante apresente a sua carteira de estudante quando solicitado” para evitar as inevitáveis confusões entre cobradores e passageiros. “Sorria você esta sendo filmando” para garantir a segurança dos passageiros na era dos assaltos a coletivos. O ônibus urbano passou com o tempo, também, a ser considerado veículo de propaganda in-door e out-door. Eventos religiosos, produtos variados e até projetos poéticos encontraram ali seu nicho publicitário.
O ônibus está para lá de integrado na paisagem urbana. São eles o espaço da convivência mutante em tempos de urgente e indispensável mobilidade. Convivência mutante e passageira que, a cada giro das catracas do tempo, tem que ser revisitada para introdução de novas normas. Novos dias, novos panoramas humanos, novas urbanidades e até as novas tecnologidades introduzem novíssimos hábitos. A ciência da civilidade, por esse prisma, é algo também em movimento sob ameaças naturais de evolução e retrocessos.     
Tornaram-se irritantemente comuns em nossos dias o uso indiscriminado de tecnologias de reprodução de som. Pra todo canto que você se desloque, dentro do ambiente urbano, intermunicipal ou interestadual, é sempre possível ter-se a paciência ultrajada pela ação de dijeis amadores munidos de celulares e limitados princípios de civilidade, bom senso e respeito ao sossego alheio.  
De volta à prancheta das regras de convivência. Outros caminhos têm que ser traçados, ou melhor, repisados. Caímos mais uma vez na velha questão da educação para a cidadania e a civilidade, nossa eterna litania dramática. Outra vez parece ser necessário investir na reeducação de usuários e esse é um processo desgastante. Outra vez, é preciso de leis. E elas existem. Lei estadual (Lei Estadual número 9.977, de 2013, da Assembléia Legislativa da Paraíba) e leis municipais. Basta a fiscalização e a coibição.
O que não se esperava jamais é ter que, outra vez, reativar o velho reclame de proibição de aparelhos sonoros nos coletivos para coibir os excessos sonoros das espaçosas hienas urbanas que, ao expor ao mundo seus indigestos gostos musicais, trazem embutidos boas doses de afronta e barbarismo.

por Edson de França


segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O seletivo paternalismo estatal



Dia desses escrevi texto sobre a contribuição do Estado para a consolidação do “mito do intrépido capitalista inovador” (ver: http://patosonline.com/post.php?codigo=42377). É que na sociedade em que vivemos os laços entre a iniciativa privada e o Estado nem sempre estão claramente expostos e dificilmente ganham explicações plausíveis. São enlaces circunstanciais ocultos, que se manifestam numa esfera de poder e interinfluência a que pouquíssimos tem acesso e a grande maioria das pessoas nem conseguiriam entender. Sobrando aos circunstantes a impressão ilusória de que os grandes feitos da tecnologia e da ciência passam pela iniciativa heróica e altamente independente de visionários.
A relação entre a iniciativa privada e o Estado no campo do financiamento revela a “ajudinha” não revelada, leia-se dinheiro público, para empreendimentos particulares que nunca terão de todo a contrapartida necessária. Talvez (e só talvez) a contrapartida se dê numa porcentagem ínfima, e que nós não sabemos precisar, em termos de impostos ou sob as manobras marketeiras da “responsabilidade social” de empresa.
No caso do texto anterior, a narrativa se prendia a questão do fomento do Estado, seja inicialmente seja durante a escalada de ascensão, aos “inovadores” da C&T. Mas nossa ingenuidade corrompida não nos permite que achemos que esses liames se resumam a essa esfera. Se o poderoso Estado cede sua parcela de força para os “intrépidos inovadores”, por que não daria uma “forcinha” para outros ramos empresariais. Sobre esse ponto algumas perguntas e especulações marotinhas não fazem mal ao livre pensar. Ao contrário, são salutares e muito bem vindas.
A fisiologia da sociedade em que vivemos é complexa demais para se revelar em impressões apressadas. Nosso aparato intelectual, como analistas amadores, não dá margens para que possamos amealhar fatos, unir dados, ruminá-los e tirar conclusões próximas da realidade. Somos apressadinhos em nosso inconsistente poder analítico. É-nos mais confortável apoderarmos da crença na projeção exterior dos fenômenos.
Em um estado como o nosso, por exemplo, em que a dependência da sociedade em relação ao Estado é enorme, creio que as relações entre poder público e privado, se não escandalosas são no mínimo imorais. Desconfio de nosso capitalismo tabajara como desconfio da existência material dos anjos. Quando o financiamento não é direto, ele passa por expedientes sutis como a manutenção de empregos ou cargos próximos da vitaliciedade na máquina pública ou ainda, nesse caso muito mais sutil, que é nas manobras junto aos poderes nas esferas administrativas, judiciárias e executivas.  
    Sabemos que empreender é algo que demanda doses equilibradas de ousadia e coragem, a tal ponto que poucos têm essa característica nata em seu portfólio de vivências. Não existe espaço, porem, para covardia, arrogância ou preguiça. O empreendedor trabalha com uma margem de sustentabilidade cambiante. O empreendedor puro, caso exista, seria uma entidade próxima da natureza autóctone, independente, intrépida, capaz de montar seu próprio meio de sustentação e, dolorosamente, saber que toda e qualquer armação que faça sempre correrá riscos de ruir.
Convenhamos que grande maioria dos empreendimentos que proliferam em nosso meio não tem tais características como base. Estou sempre aberto a contestações, mas não arredo o pé. O dinheiro público alimentou, de forma direta ou indireta, alguns ramos da nossa economia. Não me perguntem com que moedas são construídas as grandes mecas comerciais, desde suas pedras fundamentais. Não me perguntem qual o moto propulsor das iniciativas na área médica, de saúde ou educacional por essas bandas. Não, não especulem o capital inicial de um monte de empreendimentos mirins que se espalham em sua volta, cujos chefes entram para o imaginário popular como insignes empreendedores.
O Estado é uma espécie de mecenas pouco dimensionado e compreendido. É mais fácil falar de sua inoperância e tomar isso como axioma, que compreender a penetração cuidadosa, cirúrgica e secreta que ele tem na vida “empresarial”. O estado não só arbitra, fiscaliza, cobra, maltrata com a cobrança excessiva de impostos. Ele exerce o seu papel de paizão por trás de filigranas burocráticas. Pelo menos para alguns, quem sabe intrépidos exploradores dos cofres públicos em prol de suas causas tão particulares e personalistas.

por Edson de França

Terrinha de cemitério



Apenas uma foto amarelecida enfeitava a lápide.
Era um desses túmulos grandiosos, espécie de mansarda tétrica, plantada entre construções de porte similar. Alameda de jambeiros, frondosos como a gozar da fertilidade daquele solo. Piso de paralelepípedos irregulares, chão coalhado de frutos; alguns estourados ou graciosamente corroídos como se tivessem levado apetitosas mordidas. A tal paz dos cemitérios estava ali. Era aquilo. Paz em meio à ambientação lúgubre que serve de cenário pras coisas mórbidas. Lodo. Colunas de hera. Plantações rasteiras. Flores e restos mortais de coroas funerárias. Tocos de vela na base dos túmulos, uma ou outra acesa. Crucifixos por toda parte. Palavras escritas em placas que não parávamos para ler; sabíamos da redundância comum dos escritos.  
Era uma tarde de nada a fazer. Andávamos apenas.
Até os raios de sol se escondiam timidos por trás da ramagem densa do arvoredo.
Andávamos pela parte do campo santo onde os túmulos mostravam certa suntuosidade. Se cemitérios fossem locais de visitação turística esses seriam os atrativos; cova rasa não tem charme algum. Construções em mármore, granito, puxadores de metal amarelado ou em bronze, imagens de nosso senhor crucificado também em metal amarelado, anjinhos, vasos para flores, castiçais para velas no dia dos finados, cruzes, cruzes, cruzes. 
Olhávamos as fotos dos desencarnados pra passar o tempo da tarde modorrenta.
A imagem da foto que agora olhávamos e esplendor do túmulo eram monumentos à suntuosidade da senhora morte em alguns casos. 
Sabíamos da geografia do cemitério. Do apartheid social e econômico que separa os homens até na hora da morte. Do lado periférico, sabíamos das covas rasas, dos tumulozinhos baixos de cimento cru e cruzinhas de madeira, do tempo de permanência de cada corpo na fria morada, dos deslocamentos da cova para os ossários verticais, do sebo das velas que se acumulava formando pequenas montanhas enegrecidas, das margaridas murchando...    
Os túmulos em geral se parecem como extensões indesejadas das casas habitadas em vida pelos finados. Extensão de barraco da ralé é cova rasa. Prolongamento físico de mansarda é mausoléu, esnobes até no vocábulo. Ademais, efeito visual e simbólico do poderio exercido pelo clã a que os idos pertenceram quando andantes.
Paramos em frente aquele portal, território dos limites simbólicos entre as duas faces da existência. Não haviam escritas palavras sobre o figura da foto. Nada. Nenhuma frase inspirada que lhe recomendasse a alma. Havia um nome, claro. E um sobrenome nobre creditado aquele senhor na foto oval rococó. Túmulo de família, sinal exterior de nobreza. Havia um banquinho. Sentamos ali como fazem vagabundos e parasitas em seu ócio permanente, enquanto esperam e dialogam com o vácuo que se forma em torno de suas existências.
            O senhor da foto, um desses amulatados que passa por caucasiano, apresentava-se bem vestido. Um rosto de traços fortes, a boca escondida por um respeitável bigode (desses que ninguém mais ousa usar), símbolo de masculinidade e poder patriarcal. Sabíamos do nome nobre, pois ele se perpetua por aí em postos da burocracia palaciana, mas não conhecíamos a figura. Arquitetamos para ele, então, uma fantasia biográfica, baseados malandramente em nossos pré-conceitos e na projeção miasmática que o ambiente sugeria.
- Que figura, hein! O que deve ter feito da vida?
- Sei lá! Usineiro, fazendeiro, empresário...
- É, deve ser por aí. Político, talvez...
- Quem sabe, com essa cara de rufião de cabaré rsrsrsrs!
- Talvez tudo ao mesmo tempo. Talvez até simplesmente um playboy, viveu e morreu nababescamente, jamais deu um prego numa barra de sabão, talvez tenha conhecido a Europa, um bon vivant, enfim!        
- É... deve ter desencaminhado, a força, um monte de raparigas.
- Tem cara também de quem se envolveu com as letras.
- Provavelmente registrou memórias comezinhas em livro bancado pelo dinheiro público. Historiador de província provavelmente. Deve ter algum título esquecido com sua assinatura. Devia tirar onda de estudioso e amante das artes. Deve ser eternizado por aí em alguma Academia.
- Sei lá. Patrono de uma porra qualquer aí.
- O povo dessa época é chegado a um soneto, um verso romantóide ou parnasiano. Arrotam erudição enciclopédica e produzem memórias para manter a lenda familiar. Infelizmente a lenda não é lenda. São factóides, isso sim. Capitalizados e reproduzidos.
            A tarde correu. Não se demorou com as nossas viagens especulativas. Guarda Belo passa e avisa que o horário de visita acabou.
De saída, quando o fitamos mais uma vez, o fantasma do retrato parecia rir por trás da bigodeira. Ria de nós. Um riso de faceirice e escárnio pelo nosso vão exercício de dissecação de caráter e ironias do frágil elemento vida. Saímos pela alameda rumo à saída pensando no poder igualitário que, aos fins, tem a terrinha de cemitério onde ninguém pode criar latifúndios.

por Edson de França