sábado, 26 de novembro de 2011

Poema de passáro


Mais uma vez penduramos na varanda de casa um depósito de água açucarada; um arranjo de flores artificiais para atrair beija-flores. E eles vieram. Pelo menos, reconhecidamente, uns dois. Vieram e tornaram-se fiéis visitantes diários, exigindo das pessoas da casa o hábito, também fiel ao extremo, de manter o repositório de garapa sempre cheio. Sua presença natural, entre assustadiça e indiferente, ante o homem que por trás da tela do computador assiste ao seu bailado leve revela, mesmo a custa da artificialidade das flores de plástico, a convivência pacífica entre o homem, espantalho por natureza, e o pássaro.

A fidelidade dos beija-flores é-nos consentida tão somente pela religiosidade de sua presença, atraídos que são pela fonte doce das flores cotidianamente reposta por mãos zelosas. Pela simples manutenção desse acordo silencioso, tácito. Os seus companheiros (quase me esquecia de dizer que o arranjo de flores também atraiu pássaros de outras espécies), no entanto, além de colorirem o ambiente, ainda acham por bem trinar em frente a janela ou até mesmo dentro de casa. Despertando atenção sobretudo pela algaravia de suas tentativas de agarrar-se a flor suspensa.

É que os beija-flores, graças às suas habilidades aéreas inatas, conseguem abiscoitar as gotículas açucaradas com relativa facilidade. Seus pares, não. Irrequietos, pousando aqui ali, se equilibrando nos fios do varal de roupas, invadindo a casa aos bandos eles vão fazendo par com os beija-flores, sem disputa a primeira vista, em busca do néctar da amizade.

Dia desses como atrasássemos a reposição de água do reservatório, alguns afoitos passarinhos foram flagrados bicando as lâmpadas da sala em busca do repasto açucarado diário.

Duvido haver espetáculo mais belo que aquele quadro dinâmico de onde a vida transborda e penetra o olho enlevado e impassível do homem que o frui. Nada o supera. Mesmo que a flor seja artificial, o açúcar industrial e, nem ao menos, dimensionarmos que efeitos o composto de água e açúcar possa ter no metabolismo dos pássaros. (Alô, zoólogos, se tiverem uma resposta, qualquer senão, liguem ao cronista que só entende de juntar palavras e observar a natureza).

Frente a isso, com impassividade do espantalho escrevente, o cronista digere as notícias da semana: "Aves de arribação em processo de extinção" "Blitz do Ibama e da Polícia Florestal apreendem pássaros e animais silvestres em feiras livres". Faltam-nos as palavras. Outros homens-espantalhos, esses móveis e sanguinários, provocam a notícias.

Estão nas primeiras páginas dos jornais expondo sua obra. Outros, sob a mentalidade escravista e possessiva, querem capturar a beleza, querem auferir ganhos com a vida silvestre fragilizada. Práticas antagônicas que põe de lados opostos necessidades, apreciações e mentalidades. Expõem cruamente a diversidade de faces da natureza humana.

Pássaros. Prefiro-os livres. Assim como aprendi com Bashô, o poeta-rônin, a sublime e poética lição para o usufruto das flores no dia de finados. "Do jeito que estão", ou seja, majestosamente libertas e agarradas ao solo da boa terra, no campo, "devem ser oferecidas aos mortos". Os pássaros, cumprindo sua natureza irrequieta e errante, devem, tão somente livres, compor a elegia da liberdade.

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