Seu Otacílio chegou de mansinho, calado. Instalou-se no apartamento cento e três, térreo do Bloco dois e, provavelmente, dada à natureza bucólica e aos pendores agrícolas dos oriundos da roça, não agradou-se do cenário a sua volta. Árvores mal podadas, escassez de flores, aridez no solo dos jardins, ervas daninhas tão ou mais daninhas que a própria acepção da palavra. E tinha ainda pior: pessoas insensibilizadas, totalmente enfronhadas na quotidianidade, pisoteavam com desdém os menores e mais frágeis rebentos vegetais resistentes. Inclusive, as ervas daninhas.
Em um bloco de dezesseis unidades, habitados por famílias de médio porte, pessoas solitárias, adultos, crianças, velhos. Toda uma gama de gentes, convivendo. Talvez por uma dessas coincidências do destino (quem sabe muito mais escolha particularmente pessoal) calhou de seu Otacílio vir lá das bandas de Solânea ocupar um apê perto do chão, da terra, seu elemento de inspiração e diálogo permanente.
Paisagem concreta por demais. Blocos, blocos, blocos. 24 ao todo. Gaiolas para humanos. Todas sob a inspiração verticalizadora de nossa época, carente de terrenos e forjadora de novíssimos tipos de convivência e, ainda, insustentáveis políticas hodiernas de vizinhança. Restos de construção por toda parte. Cimento, barro, rebocal, cacos de madeira, tijolos. Metralhas. Restos de massa pronta e não utilizada que endureciam o chão, por onde escorreram os suores dos muitos Zé Piões que ergueram a micro-cidade Água Azul. Seu Otacílio chegou como proprietário de um lote enclausurado na disposição racional e limitadora do bloco, mas com alma, jeito e rusticidade típica dos serventes e construtores. Dos jardineiros, dos agricultores. Das pessoas cujo contato com a terra modifica a constituição física, a alma, a sensibilidade, o olhar. Olhou em volta, demarcou seu território. Pôs seu pendor laborioso a serviço de uma causa.
Começou a agir pelos fundos do Bloco, bem próximo a calçada de sua morada. Pés de planta brotaram. O verde inquietante instalou-se ousadamente sobre o terreno estéril. Seu Otacilio começou também a dialogar com as árvores, com as poucas espécimes vegetais resistentes. Quis saber de suas vidas, reconhecer-lhes as necessidades.
Com o pé de cajueiro - nossa cria e do qual não detectávamos, por pura falta de investigação e sensibilidade, o estado de prostração e animosidade que o abatia - estabeleceu belo diálogo e integração.
Perguntando-lhe dos motivos de sua inanição, executou uma anamnese vegetal e quase, humanamente, chorou ao descobrir que havia uma motivação exacerbadamente humana para o fenômeno: uma criança, provavelmente por brincadeira ou puro instinto predador de sua raça, golpeara o jovem e indefeso espécime vegetal. O golpe comprometera seu desenvolvimento, atirando-o num longo período de inatividade para cicatrização e convalescença. Otacílio assimilou as dores, agiu como curandeiro, cuidou - proteções extremas, forquilhas para erguer-lhes o porte, estrume na base, água todos os dias - rezou diligentemente pela sua recuperação.
Depois, mirou o jardim. Adquiriu plantas, plantou-as. Aproveitou algumas mal cuidadas que algum morador diligente havia plantado, mas jamais cuidado. Onde a terra era endurecida pelo cimento, amaciou-a, tornou-a fértil, semeou-a com plantinhas, flores. Em um episódio não muito raro na vizinhança, a menina-foguete do bloco ao lado despetalou, por pura pirraça, alguns das caras flores de Seu Otacílio. Prosseguiu, desfolhou outras tantas plantas. Otacílio reclamou, com razão. A partir desse dia, os pais da endiabrada e destruidora criatura, passaram a chamar o jardim de "mato", num muxoxo de repulsa e incompreensão. Tudo bem, assim caminha a humanidade, onde não tem-se pulso e brios para ensinar os filhos os verdadeiros valores da vida.
Seu Otacílio, cidadão brasileiro, é ainda portador de uma certa capacidade ancestral de conceder e preservar a vida que nosotros, cidadãos do novo milênio, vamos perdendo pouco a pouco. Mesmo sendo também dado às artes da construção como demonstrou depois, seu Otacílio, mantém a capacidade de criar, fazendo jarros que servem como berços e moradas para suas amadas plantas. Lidando, também, com materiais pesados e agressivos à natureza, mesmo assim, ele consegue consociá-las harmoniosamente com as frágeis plantas do jardim.
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