segunda-feira, 30 de março de 2015

Fogo amigo em tempos de selfie mania

A expressão “fogo amigo” remete-nos aos cenários de guerra, aqueles em que um guerreiro fatalmente “distraído para a morte” é abatido por um bólido qualquer, disparado por um companheiro de farda. É difícil, senão impossível, identificar as razões motivadoras do fogo amigo, afinal o alvo de quem se podia pegar um depoimento esclarecedor, está mudo para sempre. Sepulcralmente encerrado em seu papel de vítima do acaso. Ops! Falei acaso? Pode ser que a coisa também não seja tão pacífica assim. Reflitamos.
No máximo, pode-se listar duas ou três possibilidades fortes para a fatídica ocorrência. Primeiro, por descuido. Há sempre, em todo exército que se preze, a figura do vacilão; aquele que cuida displicentemente de seus afazeres mais básicos e, em meio à guerra, é capaz de descansar os dedos tensos no gatilho da arma. Segundo, por tensão ou zelo extremo. Na guerra, veem-se fantasmas ou sugestões psíquicas de presença inimiga; isso desperta no soldado um estado de tensão vigilante e sentidos de autodefesa permanentemente acesos. Basta uma sutil assombração e lá vai bala.
Finalmente, sadicamente falando, investiguem-se os casos de intenção homicida. Essa é a arena do amigo da onça. Não cogitemos aqui especular as possíveis motivações (aqui é uma crônica e não um tratado), mas ao menos duas possibilidades hão de ser consideradas. Por uma neurose detonada pelo estado de guerra, onde matar tenha se tornado uma necessidade, uma ordem superior emanada sabe-se lá de que esfera.
Ou, por uma arenga qualquer que o sniper tenha tido com aquele desavisado alvo, na difícil convivência da caserna. Uma terceira via nos levaria à pratica do divertimento puro e simples, ao prazer mórbido que motiva gentes a infringir dores físicas ou psíquicas em outrem. Não importa a causa. Ao final, estará um corpo estendido no chão, uma alma penada a mais para se acostar ao túmulo do soldado desconhecido. E, em alguns casos, com o remorso do atirador, caso tenha atirado por inapetência emocional.
Após quatro enfadonhos parágrafos, hão de me perguntar o que essa zorra toda tem a ver com o titulo. A rigor, o fato de que a via internáutica criou uma espécie de fogo amigo que, com todas as suas sutis nuanças virtuais, tem um efeito bem real na vida das pessoas. Não são poucos os casos de imagens geradas por amigos em potencial, reais ou virtuais, que após viralmente distribuídos, agem como uma espécie de morte social para as vítimas.
A via internáutica serve como território grandioso para o culto famigerado à personalidade. Da mesma forma que se fazem cultos à estética pessoal (em sua maioria, ridicularmente) por meio dos selfies, se promovem  exposições baratas do ridículo alheio e exibições ingênuas de candidatos a fama ou ao tiroteio do fogo amigo.
O caso da enfermeira do Samu, em Campina Grande, há dias atrás, foi o que levou-me a considerar essas possibilidades tão reais. A exposição despojada às lentes dos cinegrafistas amigos, levou aquela profissional ao questionamento, por parte de seus superiores e pela sociedade, de suas habilidades laborais e respeito ao ambiente de trabalho. Fogo amigo no mais extremo dos extremos.
Não nos cabe especular qual a motivação de quem postou a tal filmagem. Cabe em duas palavras: sacanagem e inapetência com o uso das tais redes sociais. As redes estão aí, ao alcance de todos e devidamente descomplicadas para espalhar coisas para o bem ou para o mal. Ela, atualmente, dá a medida da inabilidade, da displicência e do mau-caratismo das pessoas.
Há um tempo, pela fluidez do signo linguístico utilizado para compor boatos, a dança da moça levaria um tempo para chegar aos ouvidos de quem quer que seja, ainda assim, sob a imprecisão da historia repetida e do descrédito, cobria a aura dos boateiros de plantão contumazes. Hoje, tanto o anonimato criminoso como a notabilidade trocista possibilitam a materialização visual das produções da corte de fofoqueiros e, a velocidade com que eles se espalham, acaba manchando, quase sempre, créditos sociais adquiridos e traindo fatalmente estágios construídos de convivência.
Distribuir, por molecagem ou displicência, fotos ou filmagens de pessoas (amigos?) em despojada naturalidade é o fogo amigo mais cruel que se pode considerar em nosso tempo. Cruel porque, em verdade, mortifica a vítima, causando-lhe transtornos sociais irreparáveis. Isso, enquanto as hienas riem e os livres abutres da miséria alheia se protegem, finoriamente, por trás de suas lentes assassinas e usurpadoras de reputações.
por Edson de França
  


Nenhum comentário: