segunda-feira, 23 de março de 2015

A ignorância letrada

Puta com os destinos administrativos do Brasil Varonil, a Maga Patalógica, alcunha jocosa de uma de minhas vizinhas, distribuía impropérios aos governantes de então e revirando os olhos para um ponto indefinível lá nos céus, dizia para D. Zefinha: “Isso é o marchismo, Zefa! É o marchismo!!!” Assistente privilegiado da cena prosaica e ingênuo navegante das literaturas sócio-políticas, imaginava que a tal culpa cabia ao machismo que imperava na sociedade e que, além de responsável por manter a integridade conhecida da personagem, ainda era culpado pelos desmandos administrativos do país, senão do mundo.
Areia pelos compartimentos da ampulheta depois, pude perceber que a culpa pelos problemas eram dirigidas ao marxismo, vocábulo que a minha expert em política tinha captado, en passant, em uma graduação expressa em geografia que não a capacitava a ter noção, se vivia dentro ou em cima da bola azulada, se a África era um continente ou um país ou em qual posição cardeal básica ficava o litoral brasileiro. A questão de fundo, porém, não se reduzia à pronúncia enviesada da máxima sociológica, mas a apropriação do termo para definir a conjuntura e embasbacar a “gente simples” com um pretenso conhecimento. Além, é claro, de alimentar as relembranças e a idolatria da personagem por um certo pessoal de farda.
Esse comportamento, contudo, não é uma particularidade da Maga em outros tempos... Ao contrário, a via internáutica que nos transporta não serviu para criar mais bem pensantes. Aperfeiçoou, sim, a formação e o aculturamento dos “ignorantes letrados”. Uso essa expressão com doses generosas de sadismo, porque acho que para a empáfia dos “inteligentes de última hora”, não há outro remédio que o gelo do artigo para apagar a fogueira particular das vaidades.
Circulam por aí, uma porrada de espécies e subespécies de ignorantes letrados. Minha pesquisa informal, contudo, detectou inicialmente 04 tipos. A primeira delas, chamei de “pocket book”, aqueles que se formam (ou ganham um lustro mínimo) por via das edições de bolso, as compilações, sem jamais conseguir consumir algo no original. Esses até são o mais conscientes de suas limitações e, por humildade, geralmente não andam por aí mostrando seus dentes de asno. Cometem, alguma vez, uma gafe ou outra, mas se contêm.
A segunda espécie é a da osmose axilar, posto que desfilam exibindo opúsculos, por vezes, até originais, mas não ultrapassam a leitura das orelhas. Pena que estas não lhe sirvam de adorno craniano. A terceira é a formação aforismática. Por ela, os insignes ignorantes leem frases soltas, por vezes desconexadas de seu contexto original. Leem, decoram e destilam frases feitas com uma autoridade de quem digeriu o Manual de cara de pau (Manual do cara de pau, é fácil falar difícil, de Carlos Queiroz Telles) na íntegra.
Por último, talvez a mais danosa das espécies, os da oitiva desatenta. Aulas de sociologia, antropologia geralmente são enfadonhas, porque os mestres não têm paciência de descer de seus andores ou esperar que as eclusas do conhecimento aproximem alunos mal-formados das condições de navegação em águas absolutamente niveladas. Esse comportamento que se repete em outras disciplinas como a matemática, permite a formação da espécie oitiva desatenta. Entre a má fomação e a desatenção, o cara vai pegando, pelo rabo, trechos desconexos da fala do professor e depois sai a propagar, rouba ideias de A, B ou Z, faz uma omelete indigesta e as usa, como se suas fossem.  
Todos esses comportamentos de formação (ou de vícios de formação) perpassam e distorcem questões como o “marchismo”, citado no início da crônica. A ignorância total quanto às ideias do alemão Marx – poucos que utilizam suas teses, hoje, realmente leram-no no original. Daí atrelar a culpa pelos problemas do mundo ao marxismo é fácil e falacioso. As ideias marxianas, quando lidas com a parcimônia necessária, mostram uma forma de ver o mundo, a evolução histórica através da construção das riquezas e da exploração do trabalho. Um método, enfim, que objetivamente permite observar a vida, alongar o olhar sobre as nuanças mais explicitas ou mais obscuras da formação da sociedade.
Assim como uma cartilha dos magos capitalistas que ensina os caminhos da capitalização, da administração de pessoas, coisas, e o escambau que sirva à exploração e a competição arraigada entre os homens, só. Culturalmente, contudo, ideias marxianas (ou apenas o termo marxismo), servem aos avatares da ignorância letrada, destituídos de qualquer autoridade intelectual, para denominar movimentos políticos e basear suas conclusões mindinhas, seus pré-conceitos, suas revoluções de fancaria e alienação.
Não acuso, claro, os ignorantes como iletrados. Letrados são, sim. Porém, apenas chegaram rastejando ao letramento. De resto, são boas doses de achismo e arrogância, os quais não tem vergonha de distribuir a torto e a direito.
por Edson de França


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