Muita gente deve ter dado risadas com uma
piada das latas que traçava um hilário comparativo entre um inferno de ilustre
nação e o nosso. A anedota, para quem não conhece, narra o dilema posto a duas
almas recém- desencarnadas em sua chegada ao salão celestial: a escolha entre o
diabo e a caldeirinha das duas nações.
A graça ficava no fato de que, na hora
da triagem condenatória, caso escolhesse o inferno brasileiro, o infeliz era
obrigado a comer três latas de excrementos por dia, enquanto ao “felizardo” do
inferno rico caberia a mixaria de uma lata diária. Piadas que envolvem excrementos
tem o estranho poder de provocar risadas espontâneas.
A religiosidade na entrega das latas
nas duas filiais das hostes do capeta era o diferencial. A graça e a picardia
da estória em si. A embalagem e entrega do produto de indigesto consumo no
inferno americano era pontualíssima. Nele, uma lata diária era uma lata diária.
No nosso, ao contrário, se revelava um
pouco de nossa balbúrdia estrutural. Um dia faltava lata, num outro faltava
merda e, na maioria dos dias, quem não comparecia ao expediente do trabalho
sujo era o entregador. Moral da história: melhor era viver no inferno
brasileiro, pois comer merda ainda vá lá, a regularidade é que é phoda.
As anedotas como esta revelam
enormidades sobre nossa capacidade de rirmos de nós mesmos. A seu modo, revelam
um potencial de autocriticidade mordaz.
Por outro, parecem exaltar virtudes em
pontos onde somos visivelmente deficientes. Algo como se afirmar que as coisas
abaixo nas terras brazilis estão fadadas a serem assim mesmo. E que, portanto, conformados,
é bom encaixarmos essa situação em nossa mentalidade mediana, rirmos e apenas
sermos conscientes de nossas mazelas.
Revela, por fim, infelizmente e
sobremaneira, a cruel totalidade de nossas falhas estruturais e estruturantes.
O inferno lá descrito é nossa imagem no espelho. Cagados e cuspidos, nem na
entrega rotineira da ração malcheirosa conseguimos ser eficientes. Nesse ponto,
diria que a piada estaria completa caso enaltecesse também nosso papel de
mazeladores.
A piada dos infernos deveria nos servir
para gerar indagações. A princípio, bem ou mal, dispomos de estruturas de
serviço, de gerenciamento, de participação, de locomoção. Dos mecanismos de
elaboração de politicas públicas às estruturas de pavimentação de ruas e
logradouros, passando por serviços de saúde, educação e segurança. Temos a
estrutura, a lei, os planos, o material humano, as ações cotidianas.
Se temos tudo isso, o que nos faltaria,
então? Acho que além do riso autocrítico temos que rever a noção e extensão de
nosso inferno. Dos enlatados à base de esterco humano que somos instados a
engolir como ração diária e que produzimos sistemática e profusamente.
Tomemos o exemplo de nossas cidades,
independente da de seus limites extensão, diante das chuvas de fim de verão.
Atoleiros, calçamentos revirados, alagamentos em bairros “nobres”,
deslizamentos em bairros pobres, surto de dengue e chikungunia, filas de
crianças e idosos em postos de saúde, atendentes mal-humorados e médicos mal
formados e sem sensibilidade social e humana.
Por aqui, convenhamos, falta a cobrança
mínima de regularidade por parte dos entregadores de nossas sagradas latas
diárias. A falta-nos a seriedade, falta-nos governança, falta-nos o equilíbrio
dinâmico de consertar as coisas antes que se tornem metatásticas, falta-nos
participação e cobrança.
Infraestrutura de vias, estrutura de
transporte público, inoperância das empresas que administram serviços básicos
como água e saneamento básico. Sem contar, claro, com a indefinição de
responsabilidades. Federação, Estado, prefeituras, diretamente ou via
autarquias, não tem uma cartilha definida de responsabilização. O jogo de
empurra serve ao propósito de minorar a urgência urgentíssima de certas
providencias.
Se formos perguntar, porém, a algum
responsável, fatalmente eles creditarão a culpa a São Pedro e sua incontinência
pluvial. O tempo e a hora de atuação não são respeitados por aqui. No final,
sobra para nós a impressão de que se um dia falta o conteúdo da lata, noutro a
própria lata e em outros o entregador falta ao trabalho é que nós, sem
percebermos, vivemos é mesmo dentro da lata compondo, junto com conteúdo, um
cenário de situações indigestas, e penosamente compartilhadas.
por Edson de França
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