segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Retrocessos civilizatórios




Muitas vezes, enquanto fazíamos o trajeto Patos/João Pessoa, Marcone Palmeira me contava das curiosidades da sua intensa vida de motorista. Eram tantas e cada uma mais hilária que outra. Uma que guardei na memória era que ele falava dos patrícios que se aventuravam estrada a fora para ganhar a vida no sul. Matutice e ignorância identificavam comportamentos dos personagens do relato, típicos chistes de quem levava a esperança no embornal e a necessidade de se adaptar na marra a novas formas de convivência.
A São Paulo de então era o universo a ser conquistado, com oportunidades e maravilhas tecnológicas e é claro que essa investida continha algo de cômico, de dramas, de frustrações e até, creia, de histórias bem sucedidas. Dizia Marcone, em uma de suas histórias, que um dos troféus mais sugestivos de ascensão era voltar para visitar os parentes trazendo um potente rádio de pilha. Isso mesmo, um simplório rádinho de pilha, novidade da tecnologia da época.
Era curioso, segundo Marcone, ver antenas de rádio escapando, em série, pelas janelas do ônibus, com uma pá de gente em processo de sintonia mecanizada. Penso no pandemônio que isso causava. Uma verdadeira Torre de Babel de ondas desencontradas, um culto pândego às ondas de Hertz. Giros rápidos e descontrolados dos cordéis do dial capturar uma onda média qualquer. Coisas de uma época, de um atraso que sugeria ingenuidade, fé e tiradas folclóricas.  
Esse quadro, contudo, durante algum tempo sugeria um mau gosto tremendo, uma breguice tamanha que ninguém queria ser pego portando um radinho de pilha, esse ente que virou coisa de empregada doméstica e torcedor de geral em clássico de quinta divisão.
Teoricamente, do tempo-rei das histórias de condutor de ônibus de Marcone para os dias atuais, a condição civilizatória sofreu mutações. Ora, mudamos? A configuração de mundo mudou. Ainda há êxodo de matutos rumo aos grandes centros? Há. Ainda há dificuldades de aceitação e dramas de adaptação deles as novas realidades? Há. Mas há, por outro lado, talvez pela massificação de mensagens, um acesso maior a educação, um consumo de informação mais qualificada e, sobretudo, uma acessibilidade ilimitada a tecnologia de comunicação e troca de mensagens.
Mas o doloroso e reconhecer que o tal processo civilizatório entre nós sofre retrocessos terríveis. Sobretudo, no comportamento social. Talvez não sejamos capazes ainda de determinar as causas, mas podemos especular algumas como o aumento exagerado da população, índices educacionais que não crescem na proporção desejada e não atingem o grosso da patuléia e o consumo de informação qualificada informadora e formadora que não encontra campo fértil entre a população. Sobra-nos apenas o consumo de bens de consumo instantâneos como os celulares. Esses últimos são, em realidade, o motivo da crônica.
Celulares são signos da acessibilidade comunicativa nos nossos tempos. Se ontem o telefone fixo era objeto de adoração e sinal de prosperidade, o celular é o signo da moderna face do aparelho individualizado, da liberdade comunicativa e de acesso rápido a recursos de informação e entretenimento. Mas também se torna uma praga quando alguns dos seus recursos são utilizados de forma exageradamente desrespeitosa, selvagem e bárbara.
Telefones celulares são, nas mãos da patuléia ignara, os rádios de pilha dos anos idos. Com um requinte extra. Os rádios de antanho reproduziam programas e um repertório variado. Ouvia quem tinha alguma afinidade com o tocava ou com a voz dos locutores. E era, sim, uma novidade para uma gente tão carente de informação e acesso a alguns bens. A liberdade dos rádios de pilha hitech faz com que eles se tornem veículos autóctones e gerenciáveis, modulados na maioria dos casos pelo mau gosto dos ouvintes.
São comportamentos bregas, retrocessos que denunciam nossa modernosidade e nossos atrasos pontuais. Primeiro por reduzir toda tecnologia disponível no aparelho a mais simples de suas funções e outra por exalarem cafonices sob rótulos imprecisos como os “estilizados” da vida. Além, é claro, da calhordice social que desce junto com o suor, no momento em que essa sub-espécie de DJ quer a todo custo socializar, sobretudo em ambientes públicos tipo ônibus, seus gostos musicais duvidosos de sofrível estética.
Não! A tentação é grande mas não vou encerrar essas crônica citando uma frase de forte efeito poético-autocrítico. “Ainda somos os mesmos e vivemos...”. Não vivemos como nossos pais, nem como os anordestinados retirantes em seu culto particular à tecnologia. Eles ainda tinham a desculpa de serem introduzidos, a fórceps, nas megalópoles onde tudo era novidade e espanto, tendo saído de uma sociedade rural, arcaica, provinciana e semi-escravista. Não é definitivamente o nosso caso. Somos nossos pais em alguns aspectos, mas muito e muito piorados em educação, respeito e toques básicos de civilidade.  
por Edson de França

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