Muitas
vezes, enquanto fazíamos o trajeto Patos/João Pessoa, Marcone Palmeira me
contava das curiosidades da sua intensa vida de motorista. Eram tantas e cada
uma mais hilária que outra. Uma que guardei na memória era que ele falava dos
patrícios que se aventuravam estrada a fora para ganhar a vida no sul. Matutice
e ignorância identificavam comportamentos dos personagens do relato, típicos
chistes de quem levava a esperança no embornal e a necessidade de se adaptar na
marra a novas formas de convivência.
A
São Paulo de então era o universo a ser conquistado, com oportunidades e
maravilhas tecnológicas e é claro que essa investida continha algo de cômico,
de dramas, de frustrações e até, creia, de histórias bem sucedidas. Dizia
Marcone, em uma de suas histórias, que um dos troféus mais sugestivos de
ascensão era voltar para visitar os parentes trazendo um potente rádio de
pilha. Isso mesmo, um simplório rádinho de pilha, novidade da tecnologia da
época.
Era
curioso, segundo Marcone, ver antenas de rádio escapando, em série, pelas janelas
do ônibus, com uma pá de gente em processo de sintonia mecanizada. Penso no
pandemônio que isso causava. Uma verdadeira Torre de Babel de ondas
desencontradas, um culto pândego às ondas de Hertz. Giros rápidos e
descontrolados dos cordéis do dial capturar uma onda média qualquer. Coisas de
uma época, de um atraso que sugeria ingenuidade, fé e tiradas folclóricas.
Esse
quadro, contudo, durante algum tempo sugeria um mau gosto tremendo, uma breguice
tamanha que ninguém queria ser pego portando um radinho de pilha, esse ente que
virou coisa de empregada doméstica e torcedor de geral em clássico de quinta
divisão.
Teoricamente,
do tempo-rei das histórias de condutor de ônibus de Marcone para os dias
atuais, a condição civilizatória sofreu mutações. Ora, mudamos? A configuração
de mundo mudou. Ainda há êxodo de matutos rumo aos grandes centros? Há. Ainda
há dificuldades de aceitação e dramas de adaptação deles as novas realidades?
Há. Mas há, por outro lado, talvez pela massificação de mensagens, um acesso
maior a educação, um consumo de informação mais qualificada e, sobretudo, uma
acessibilidade ilimitada a tecnologia de comunicação e troca de mensagens.
Mas
o doloroso e reconhecer que o tal processo civilizatório entre nós sofre
retrocessos terríveis. Sobretudo, no comportamento social. Talvez não sejamos
capazes ainda de determinar as causas, mas podemos especular algumas como o
aumento exagerado da população, índices educacionais que não crescem na
proporção desejada e não atingem o grosso da patuléia e o consumo de informação
qualificada informadora e formadora que não encontra campo fértil entre a
população. Sobra-nos apenas o consumo de bens de consumo instantâneos como os
celulares. Esses últimos são, em realidade, o motivo da crônica.
Celulares
são signos da acessibilidade comunicativa nos nossos tempos. Se ontem o
telefone fixo era objeto de adoração e sinal de prosperidade, o celular é o
signo da moderna face do aparelho individualizado, da liberdade comunicativa e
de acesso rápido a recursos de informação e entretenimento. Mas também se torna
uma praga quando alguns dos seus recursos são utilizados de forma
exageradamente desrespeitosa, selvagem e bárbara.
Telefones
celulares são, nas mãos da patuléia ignara, os rádios de pilha dos anos idos.
Com um requinte extra. Os rádios de antanho reproduziam programas e um
repertório variado. Ouvia quem tinha alguma afinidade com o tocava ou com a voz
dos locutores. E era, sim, uma novidade para uma gente tão carente de
informação e acesso a alguns bens. A liberdade dos rádios de pilha hitech faz
com que eles se tornem veículos autóctones e gerenciáveis, modulados na maioria
dos casos pelo mau gosto dos ouvintes.
São comportamentos
bregas, retrocessos que denunciam nossa modernosidade e nossos atrasos pontuais.
Primeiro por reduzir toda tecnologia disponível no aparelho a mais simples de
suas funções e outra por exalarem cafonices sob rótulos imprecisos como os “estilizados”
da vida. Além, é claro, da calhordice social que desce junto com o suor, no
momento em que essa sub-espécie de DJ quer a todo custo socializar, sobretudo
em ambientes públicos tipo ônibus, seus gostos musicais duvidosos de sofrível
estética.
Não!
A tentação é grande mas não vou encerrar essas crônica citando uma frase de
forte efeito poético-autocrítico. “Ainda somos os mesmos e vivemos...”. Não
vivemos como nossos pais, nem como os anordestinados retirantes em seu culto
particular à tecnologia. Eles ainda tinham a desculpa de serem introduzidos, a
fórceps, nas megalópoles onde tudo era novidade e espanto, tendo saído de uma
sociedade rural, arcaica, provinciana e semi-escravista. Não é definitivamente
o nosso caso. Somos nossos pais em alguns aspectos, mas muito e muito piorados
em educação, respeito e toques básicos de civilidade.
por Edson de França
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