sábado, 20 de outubro de 2012

Lendo as cidades







            Quando se embarca num coletivo urbano pode-se ter certeza de uma coisa: não teremos pela frente, em termos de paisagem, um mundo uniforme. Você irá do primeiro ao terceiro mundo em questão de segundos, verá inferno e maravilhas nas tessituras da cidade em que mora ou que visita, passará pertinho da ineficiência administrativa e estreitará misérias e sub-humanidades em exemplos bem vivos. Verá, com certeza, poucas grandezas que encham olhos e peito de esperança.
            Nos percursos abertos para os transportes individuais geralmente as vias tem pavimento aceitável, ruas relativamente largas e exemplares de “desenvolvimento” no “bom gosto” da arquitetura das casas de moradia e comerciais. Mais curto, mais objetivo, mais cômodo. Nas vielas destinadas aos coletivos é onde o Brasil mostra sua cara como uma face deformada pela acne. Centímetros de pele sã dividem espaço com protuberâncias sanguíneas que imploram ungüentos e cuidados especiais.
            O Brasil carece ser estudado a frio. No tête-à-tête das ruas é onde se gesta a consciência de que há um trabalho a ser feito. Todo o conhecimento acadêmico com que se entope as veias das juventudes ávidas pelos empregos do futuro de nada servem se não conseguem estabelecer métodos de análise crítica sobre a plataforma social por onde pisam nossos insensíveis pneumáticos. Tal método deve morar primeiramente nos livros, claro. Mais é urgente que ele salte de lá, dialogue com a realidade e surja novo como conhecimento e propositura.
            Por nossas paragens moram resquícios de um coronelismo (hoje high-tech, repaginado, mas tão atrasado em sua lógica como ontem de manhã) e uma crença na determinação divinal das situações. O discurso de mudança só aparece como figura retórica no discurso político sazonal. Não está encarnada como meio de ação na cabeça nem na postura da maioria de nossas gentes. Assim sendo, todas nossas mazelas sempre aparecerão como naturais, cristalizadas, portanto, insolúveis.
            A paisagem caótica de nossas cidades parece não ser objeto de dissecação para estudantes em geral. E o cardápio, ao contrário do que possa se pensar, é amplo e oferecido gratuitamente. Desde as Letras (a grafia risível dos selves-selves, por exemplo, uma nova língua, uma interpretação popular, uma estratégia de resistência à invasão dos estrangeirismos e ao ar esnobe das classes que pensam dominar a língua?), a História (que critérios determinaram a ocupação urbana?) até o Planejamento urbano (Em que armários foram parar os planejamentos das vias de locomoção?) e a Engenharia (Construções feitas abaixo do nível da rua não acomodam homens-ratos que não resistiriam à primeira enchente?).          
                  As cidades mostram suas contradições como microcosmos de uma “realidade” brasileira reiteradamente reproduzida. Você verá obras monumentais, é certo, moradias dignas, é certo. Mas verá também universos insalubres, mal planejamento urbano, casario decadente pedindo demolição, arranjos arquitetônicos do improviso suburbano, estreitezas de vias e submoradias se amontoando numa babel contemporânea. A cara das nossas cidades, toscamente maquiada, se mostra para quem vê a partir da janela, na maioria das vezes empoeirada, de um coletivo urbano.

por Edson de França

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