terça-feira, 24 de maio de 2016

O rei da praça


Numa das ultimas vezes que o vi, ele dava cambalhotas no meio da rua, entre sua praça e a barraca de Diassis. O burrinho de cana barata, estrategicamente protegida do sol e das investidas dos sócios de carraspana, dava-lhe o combustível necessário para compor a cena tragicômica. No curto intervalo do trânsito, entre a passagem de um carro a outro, ele meio que encostava o ombro no chão e compunha um arremedo de catrâmbias para uma plateia entre extasiada e aflita pela exposição gratuita da decadência humana.
O público circunstancial de transeuntes sorria. O rei da praça fazia as estripulias para divertir o público permanente de comerciantes, taxistas e contumazes dos bares.  Os parças de cana e sina soltavam piadas e incentivavam. O bufão sem fantasia se esforçava para diverti-los, arriscando-se, pacote bêbado, naquela performance suicida.
Chico, assim era conhecido, se intitulava o rei da praça. Era nas fronteiras bem delimitadas daquele logradouro, que ele parecia encontrar seu lar, seus domínios. Além de tudo, a sobrevivência, a dignidade do trabalho pelos favores prestados aos comerciantes do local em troca de uma dose, um resto de comida, uma peça rota de vestir, uma caixa de papelão, uma latinha de alumínio para vender.
A praça do rei não passava de uma área pública desocupada que foi ganhando contornos de praça a partir da intervenção dos moradores. Comerciantes se instalavam, alguém plantava algo e o rei vigilante fazia uma espécie de guarda intensiva, diuturna e amorosa.
 Logo pela manhã, quando os moradores saiam pros seus trabalhos, encontravam o rei da praça varrendo o local. Se parassem para ouvi-lo certamente notariam que, muitas vezes, ele não juntava coisa com coisa. Falava sozinho, enfronhado no meu mundinho, se dirigindo num linguajar estranho as figuras reais e imaginárias. Algumas vezes pedia uma ajuda, chamando por nomes que ele guardava ou inventava.
Uma coisa, entretanto, soava bem audível para quem quisesse ouvir: “Eu sou o rei da Praça”.
A quem parasse para ouvi-lo, ele falava da família. Falava de brigas com a mulher, com os filhos, de pobreza e expulsão de casa. Contava do cotidiano dos frequentadores da praça e das acontecências. Se ganhava um móvel ou objeto de casa, corria para arranjar um transporte e conduzia o bem para a casa que ele dizia ter, porém que nunca informava o local.
Parecia ter uma deferência especial por quem o ajudava de alguma forma, ou ao menos dava a impressão de considera-lo além da figura pública do pária e alvo das brincadeiras de mau gosto. Desses lembrava nomes e repetia ao que parece para não esquecer, contava suas peripécias e grandezas, ria das piadas e executava os pedidos que acaso lhe fizessem como quem serve a um deus pagão. Era quando exalava um ar de agradecimento e submissão.
À noite, num nicho formado entre duas barracas, com papelões e tecidos, o rei improvisava a cama. Dormia com os cachorros que guarneciam seu sono, não deixando que ninguém se aproximasse. Outra vez, compondo o cenário, lá estava a garrafinha plástica de parati fazendo companhia para atravessar a noite fria.    
Nunca mais vi o rei da praça. Não sei o destino, se é vivo, morto ou se eternizou, como acontece aos moradores da rua, que sobreexistem entre a decadência e a insanidade. Talvez, com a perda progressiva do reino, devido a ocupação desregrada dos espaços e a debandada natural de seus personagens, ele migrou para outra herdade. Foi para tomar conta, ser o rei e recompor, a seu modo, toda a escala da nobreza a massa plebeia do seu reino.
Hoje, quando atravesso a praça, escuto seu chamado “Ô, baiano!”. Paro, escuto outra vez na sua conversa arrevesada, assisto atento seu desfile de personagens e situações. Quando me vou, escuto bem claro às minhas costas: “Baiano, eu sou o rei da praça!”
por Edson de França      
           

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