sexta-feira, 12 de julho de 2019

“Apreciando” a demolição

Foto by Juliano Espindola/RBSTV


A cidade se transforma. Passa por metamorfoses para jamais voltar ao estado anterior. Ainda pouco ali havia uma casa. Bem construída, aparência sólida; talvez uma família classe média tenha passado muitos natais, carnavais, aniversários felizes dos membros.
Talvez tenha feito parte dos sonhos de alguém. Projetada com carinho consumiu recursos, se enfeitou para servir de morada.
            Em minhas caminhadas muitas vezes passei defronte. Algumas vezes cheguei a ver um ou outro morador. Não sei que eram. Um bom dia prococolar em algum momento, creio, e seguimos nossos caminhos, destinos, sinas.
            A casa de dois pavimentos era uma das mais vistosas da rua...
            Não sei onde foram parar os moradores, há dias não via movimentação de alguém chegando ou saindo de suas dependências. Vi, porem, quando os outros chegaram...
            Durante a última semana, por uma excepcionalidade, meu trajeto de casa ao trampo obrigou-me a passar todos os dias em frente a casa. Tanto na ida como na volta foi o meu percurso  por isso fui testemunha da chegada dos operários.
            Segunda-feira. Por volta das seis da manhã, um utilitário deixou os homens em frente. Saltaram, descarregaram as ferramentas, examinaram o ambiente, o homem que parecia chefe-empreiteiro deus as ultimas ordem e partiu. Presumi a decadência...
            Na volta, já no lusco-fusco, observei a casa. Pareceu-me um crânio começando a descarnar. Faltava-lhe um olho, uma das duas janelas do pavimento superior há via sido extirpada. Dava para vislumbrar os vazios que iam se abrindo internamente.  
            Na sequencia dos dias a descarnação continuou. Dilapidaram o pavimento superior. Janelas, portas, esquadrias, telhas foram se amontoando pelos cantos do terreno. Escombros.
            Céleres, os homens cumpriam sua missão de delapidação. Parecia haver pressa em ver um terreno limpo, destituído de vida antiga, prenhe de vida nova. Na transformação das cidades é campo árido prá lembranças. Não há tempo para cultivar lembrança.
            Na sexta-feira não havia mais o muro. No terreno já plano e destituído de qualquer vegetação, metade do tronco de uma árvore que era o mimo do jardim jaz de pernas pro ar, raízes sem vida expostas ao ar. Resta um tico de entulho no canto do terreno, volume que talvez não de uma ultima carrada.
            Ali jaz. Acaso coubesse ao quadro uma referência musical, creio que um jazz cairia bem. Uma nota triste, sem expectativa de sequência, longa, dolorida. Adágio. Soa forte como estrondo e vai se dispersando pelo ar até o ultimo resquício, suspiro. O ar de pré-noite completa a solidez lúgubre do momento.
            Talvez segunda-feira, o leito descoberto será ocupado por outros homens. Uma outra musica, frenética, começara a ser composta.  Material de construção começará a ser encostado. Ao longo dos dias, uma outra vida se erguerá, ocupando o terreno nu.
            A cidade segue sua sina. Desnudando-se, transmutando-se, arranhando a paisagem, devastando, reerguendo-se. Outras vidas, quando do empreendimento pronto, comporão naquele espaço os seus enredos dentro da metamorfose urbana.

            por Edson de França  

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