Apenas uma foto
amarelecida enfeitava a lápide.
Era um desses túmulos
grandiosos, espécie de mansarda tétrica, plantada entre construções de porte
similar. Alameda de jambeiros, frondosos como a gozar da fertilidade daquele
solo. Piso de paralelepípedos irregulares, chão coalhado de frutos; alguns
estourados ou graciosamente corroídos como se tivessem levado apetitosas
mordidas. A tal paz dos cemitérios estava ali. Era aquilo. Paz em meio à
ambientação lúgubre que serve de cenário pras coisas mórbidas. Lodo. Colunas de
hera. Plantações rasteiras. Flores e restos mortais de coroas funerárias. Tocos
de vela na base dos túmulos, uma ou outra acesa. Crucifixos por toda parte.
Palavras escritas em placas que não parávamos para ler; sabíamos da redundância
comum dos escritos.
Era uma tarde de nada a
fazer. Andávamos apenas.
Até os raios de sol se
escondiam timidos por trás da ramagem densa do arvoredo.
Andávamos pela parte do
campo santo onde os túmulos mostravam certa suntuosidade. Se cemitérios fossem
locais de visitação turística esses seriam os atrativos; cova rasa não tem
charme algum. Construções em mármore, granito, puxadores de metal amarelado ou
em bronze, imagens de nosso senhor crucificado também em metal amarelado,
anjinhos, vasos para flores, castiçais para velas no dia dos finados, cruzes,
cruzes, cruzes.
Olhávamos as fotos dos
desencarnados pra passar o tempo da tarde modorrenta.
A imagem da foto que agora
olhávamos e esplendor do túmulo eram monumentos à suntuosidade da senhora morte
em alguns casos.
Sabíamos da geografia do
cemitério. Do apartheid social e econômico que separa os homens até na hora da
morte. Do lado periférico, sabíamos das covas rasas, dos tumulozinhos baixos de
cimento cru e cruzinhas de madeira, do tempo de permanência de cada corpo na
fria morada, dos deslocamentos da cova para os ossários verticais, do sebo das
velas que se acumulava formando pequenas montanhas enegrecidas, das margaridas
murchando...
Os túmulos em geral se parecem
como extensões indesejadas das casas habitadas em vida pelos finados. Extensão
de barraco da ralé é cova rasa. Prolongamento físico de mansarda é mausoléu,
esnobes até no vocábulo. Ademais, efeito visual e simbólico do poderio exercido
pelo clã a que os idos pertenceram quando andantes.
Paramos em frente aquele
portal, território dos limites simbólicos entre as duas faces da existência.
Não haviam escritas palavras sobre o figura da foto. Nada. Nenhuma frase
inspirada que lhe recomendasse a alma. Havia um nome, claro. E um sobrenome
nobre creditado aquele senhor na foto oval rococó. Túmulo de família, sinal
exterior de nobreza. Havia um banquinho. Sentamos ali como fazem vagabundos e
parasitas em seu ócio permanente, enquanto esperam e dialogam com o vácuo que
se forma em torno de suas existências.
O
senhor da foto, um desses amulatados que passa por caucasiano, apresentava-se
bem vestido. Um rosto de traços fortes, a boca escondida por um respeitável bigode
(desses que ninguém mais ousa usar), símbolo de masculinidade e poder
patriarcal. Sabíamos do nome nobre, pois ele se perpetua por aí em postos da
burocracia palaciana, mas não conhecíamos a figura. Arquitetamos para ele,
então, uma fantasia biográfica, baseados malandramente em nossos pré-conceitos
e na projeção miasmática que o ambiente sugeria.
- Que figura, hein! O que deve ter
feito da vida?
- Sei lá! Usineiro, fazendeiro, empresário...
- É, deve ser por aí. Político,
talvez...
- Quem sabe, com essa cara de rufião
de cabaré rsrsrsrs!
- Talvez tudo ao mesmo tempo. Talvez
até simplesmente um playboy, viveu e morreu nababescamente, jamais deu um prego
numa barra de sabão, talvez tenha conhecido a Europa, um bon vivant, enfim!
- É... deve ter desencaminhado, a
força, um monte de raparigas.
- Tem cara também de quem se envolveu
com as letras.
- Provavelmente registrou memórias
comezinhas em livro bancado pelo dinheiro público. Historiador de província
provavelmente. Deve ter algum título esquecido com sua assinatura. Devia tirar
onda de estudioso e amante das artes. Deve ser eternizado por aí em alguma
Academia.
- Sei lá. Patrono de uma porra
qualquer aí.
- O povo dessa época é chegado a um
soneto, um verso romantóide ou parnasiano. Arrotam erudição enciclopédica e
produzem memórias para manter a lenda familiar. Infelizmente a lenda não é
lenda. São factóides, isso sim. Capitalizados e reproduzidos.
A
tarde correu. Não se demorou com as nossas viagens especulativas. Guarda Belo
passa e avisa que o horário de visita acabou.
De saída, quando o fitamos
mais uma vez, o fantasma do retrato parecia rir por trás da bigodeira. Ria de
nós. Um riso de faceirice e escárnio pelo nosso vão exercício de dissecação de
caráter e ironias do frágil elemento vida. Saímos pela alameda rumo à saída
pensando no poder igualitário que, aos fins, tem a terrinha de cemitério onde
ninguém pode criar latifúndios.
por Edson de França
Um comentário:
Kkkkk...
Perceba o esforço das grandes lápides a impedir que a tenra relva desses lugares reencontre a luz do sol.
Mas, realmente, a terrinha simplesmente trata de igualar a tudo e a todos...
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