segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Terrinha de cemitério



Apenas uma foto amarelecida enfeitava a lápide.
Era um desses túmulos grandiosos, espécie de mansarda tétrica, plantada entre construções de porte similar. Alameda de jambeiros, frondosos como a gozar da fertilidade daquele solo. Piso de paralelepípedos irregulares, chão coalhado de frutos; alguns estourados ou graciosamente corroídos como se tivessem levado apetitosas mordidas. A tal paz dos cemitérios estava ali. Era aquilo. Paz em meio à ambientação lúgubre que serve de cenário pras coisas mórbidas. Lodo. Colunas de hera. Plantações rasteiras. Flores e restos mortais de coroas funerárias. Tocos de vela na base dos túmulos, uma ou outra acesa. Crucifixos por toda parte. Palavras escritas em placas que não parávamos para ler; sabíamos da redundância comum dos escritos.  
Era uma tarde de nada a fazer. Andávamos apenas.
Até os raios de sol se escondiam timidos por trás da ramagem densa do arvoredo.
Andávamos pela parte do campo santo onde os túmulos mostravam certa suntuosidade. Se cemitérios fossem locais de visitação turística esses seriam os atrativos; cova rasa não tem charme algum. Construções em mármore, granito, puxadores de metal amarelado ou em bronze, imagens de nosso senhor crucificado também em metal amarelado, anjinhos, vasos para flores, castiçais para velas no dia dos finados, cruzes, cruzes, cruzes. 
Olhávamos as fotos dos desencarnados pra passar o tempo da tarde modorrenta.
A imagem da foto que agora olhávamos e esplendor do túmulo eram monumentos à suntuosidade da senhora morte em alguns casos. 
Sabíamos da geografia do cemitério. Do apartheid social e econômico que separa os homens até na hora da morte. Do lado periférico, sabíamos das covas rasas, dos tumulozinhos baixos de cimento cru e cruzinhas de madeira, do tempo de permanência de cada corpo na fria morada, dos deslocamentos da cova para os ossários verticais, do sebo das velas que se acumulava formando pequenas montanhas enegrecidas, das margaridas murchando...    
Os túmulos em geral se parecem como extensões indesejadas das casas habitadas em vida pelos finados. Extensão de barraco da ralé é cova rasa. Prolongamento físico de mansarda é mausoléu, esnobes até no vocábulo. Ademais, efeito visual e simbólico do poderio exercido pelo clã a que os idos pertenceram quando andantes.
Paramos em frente aquele portal, território dos limites simbólicos entre as duas faces da existência. Não haviam escritas palavras sobre o figura da foto. Nada. Nenhuma frase inspirada que lhe recomendasse a alma. Havia um nome, claro. E um sobrenome nobre creditado aquele senhor na foto oval rococó. Túmulo de família, sinal exterior de nobreza. Havia um banquinho. Sentamos ali como fazem vagabundos e parasitas em seu ócio permanente, enquanto esperam e dialogam com o vácuo que se forma em torno de suas existências.
            O senhor da foto, um desses amulatados que passa por caucasiano, apresentava-se bem vestido. Um rosto de traços fortes, a boca escondida por um respeitável bigode (desses que ninguém mais ousa usar), símbolo de masculinidade e poder patriarcal. Sabíamos do nome nobre, pois ele se perpetua por aí em postos da burocracia palaciana, mas não conhecíamos a figura. Arquitetamos para ele, então, uma fantasia biográfica, baseados malandramente em nossos pré-conceitos e na projeção miasmática que o ambiente sugeria.
- Que figura, hein! O que deve ter feito da vida?
- Sei lá! Usineiro, fazendeiro, empresário...
- É, deve ser por aí. Político, talvez...
- Quem sabe, com essa cara de rufião de cabaré rsrsrsrs!
- Talvez tudo ao mesmo tempo. Talvez até simplesmente um playboy, viveu e morreu nababescamente, jamais deu um prego numa barra de sabão, talvez tenha conhecido a Europa, um bon vivant, enfim!        
- É... deve ter desencaminhado, a força, um monte de raparigas.
- Tem cara também de quem se envolveu com as letras.
- Provavelmente registrou memórias comezinhas em livro bancado pelo dinheiro público. Historiador de província provavelmente. Deve ter algum título esquecido com sua assinatura. Devia tirar onda de estudioso e amante das artes. Deve ser eternizado por aí em alguma Academia.
- Sei lá. Patrono de uma porra qualquer aí.
- O povo dessa época é chegado a um soneto, um verso romantóide ou parnasiano. Arrotam erudição enciclopédica e produzem memórias para manter a lenda familiar. Infelizmente a lenda não é lenda. São factóides, isso sim. Capitalizados e reproduzidos.
            A tarde correu. Não se demorou com as nossas viagens especulativas. Guarda Belo passa e avisa que o horário de visita acabou.
De saída, quando o fitamos mais uma vez, o fantasma do retrato parecia rir por trás da bigodeira. Ria de nós. Um riso de faceirice e escárnio pelo nosso vão exercício de dissecação de caráter e ironias do frágil elemento vida. Saímos pela alameda rumo à saída pensando no poder igualitário que, aos fins, tem a terrinha de cemitério onde ninguém pode criar latifúndios.

por Edson de França

Um comentário:

Anônimo disse...

Kkkkk...
Perceba o esforço das grandes lápides a impedir que a tenra relva desses lugares reencontre a luz do sol.
Mas, realmente, a terrinha simplesmente trata de igualar a tudo e a todos...