“Esquecidos” para ele
queria significar “desmemoriados”. Na falta de uma palavra melhor, seu Antônio
usava essa inversão lingüística para nomear a nós, crianças que o rodeavam. Em
sua visão cabocla éramos os esquecidos de uma “cultura brasileira” em geral.
Cultura que, para ele, reunia elementos mitológicos e épicos da historia
brasileira, causos e reclames religiosos, lições de educação moral e cívica e
episódios contemporâneos lidos sob uma ótica particular de horror e
discordância. Um caldeirão regado a boas fábulas e trilha sonora da melhor cepa
musical brasileira da época de ouro.
No rosário nativista de
seu repertório, cadeira cativa para Cascatinha e Inhana, Tonico e Tinoco,
Teixeirinha, seu Lua e outros poucos. Entrementes, cusparadas da mais pura repugnância
para um cabeludo que mandava tudo pro inferno e outro que dizia
ter nascido há dez mil anos atrás. Dizia ele, ser aquela um tipo de
composição, a do maluco beleza, que tinha muita letra e pouca música. Mal sabia ele que tais contradições estéticas
se achavam muito bem arranjadas dentro dos conceitos contemporâneos daquele maluco
genial. Mas isso era uma
discussão teórica muito sofisticada, a época, para ser discutida entre jovens
aprendizes e aquela baraúna de saberes enraizados.
Independente do alcance e
da profundidade das análises, Seu Antonio, funcionário mediano de banco, homem
aparentemente de pouco estudo, tinha lá suas razões. Éramos realmente
“esquecidos”. Desmemoriados de dados e fatos de uma cultura brasileira, até mesmo
de data recente. Uma geração inteira que,
paulatinamente, através de escolhas e, sobretudo, da deseducação e da
ignorância foi perdendo referenciais e passando para as subseqüentes o fetiche
do novo. Não adiantava brigar contra essa razão. As gerações impetuosas são
amantes excessivas da novidade, do culto às ondas novas e modismos de seu
próprio tempo.
Quando os “lekes, lekes,
lekes” e “lepo, lepos” invadem o dial em todas as freqüências radiofônicas
atualmente temos só a ponta mais escandalosa desse iceberg. Bato o pé dizendo
que, apesar de compreender a necessidade do balanço das gerações, considero uma
tendência a-estética esse modismo. A-estético que não pode ser considerado como
anti-estético. Este último é movimento, ousadia de intromissão e releitura; o
outro é sinal de ausência de qualquer coisa apreciável. Duvido que alguém
ouvindo e repetindo os trinados de pseudo-forrozaicos possam um dia criar o
mínimo senso estético.
Sou amigo das
desconstruções. Não acho que temos que reproduzir até o infinito fórmulas
prontas e testadas em nome da permanência da “qualidade”. Nada disso. Acho que
é preciso avançar, descobrir novas fronteiras, estabelecer novos fronts. Para
não se sentir nu, sem cobertor e ao relento, é preciso saber onde se pisa.
Enfrentamos campos minados, mas não temos que perder membros e razão nessa
empreitada.
Lembro-me claramente do
purismo de seu Antônio. Ria dele na época e hoje talvez até discuta suas
razões, mas alimento um respeito imensurável pela sua lembrança e pontos de
vista. Achava-o uma espécie de Quixote, de um tipo específico que, em vigília
permanente, alertam os navegantes do presente para esse mar de passado que é
berço, que é arco a nos lançar para a senda do futuro.
por Edson de França
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