A composição urbana de nossas cidades, em sua porção mais suburbana, é pra lá de caótica. Ela, flagrantemente, acaba revelando a face mais dolorosa de nossa condição socioeconômica. Enquanto nas regiões mais centrais e nobres das urbes, a tendência é que os aglomerados humanos sigam uma lógica de organização, nos arrabaldes impera a informalidade e o aproveitamento irracional dos espaços exíguos. Por lá, o “puxadinho” é quase uma instituição, uma particularidade típica dos “morros mal vestidos”.
Para quem não sabe do que fala o cronista é preciso
recorrer à sociologia e à antropologia dos andarilhos urbanos – os
flaneurs - para captar em
essência o fenômeno. “Puxadinho” é, a rigor, a saída encontrada pelos abandonados
da sorte para abrigar uma grande quantidade de pessoas em certo lugar. Sabendo
da sentimentalidade humana natural dos pobres, não é difícil intuir que,
destituídos dos bens materiais que desumanizam e geram o desapego, só lhes
resta manter os parentes, aderentes e agregados próximos. É uma espécie de
solidariedade, de simbiose (às vezes, com veias de parasitismo, mas deixemos o
caso para outra crônica), da celebração ritualística dos laços afetivos.
O “puxadinho” é filho da necessidade. Ela resolve,
informalmente, nosso déficit habitacional. É a alternativa dos pobres de toda
ordem para organizar e abrigar seus rebentos primais e, consequentemente, os
nascituros desses rebentos. Quando me referi ao flaneur lá no alto, é que
foi flanando, em um período de atividades inúteis, como recenseador, que
aportei em alguns “cortiços” suburbanamente formados a base de “puxadinhos”. Um
puxadinho (ou puxadinha) sempre acaba puxando outro até virar uma série, um
acampamento sujeito à miséria endêmica e às atividades mais promíscuas.
Em um terreno de, em média, de 300m², localizado dentro
do triângulo formado pela trinca da Beira Molhada, Ninho da Perua e Bola na
Rede, seu João Apolinário ocupava a casa
da frente. Palmas e “ô de casa” não foram precisos. Seu João ocupava uma
cadeira de balanço, as pernas rugosas, pés rachados e meio sujos descansavam
displicentemente dependurados, feito esculturas de tocos de arvores decrépitas.
A corrulepe jazia inútil aos pés do homem de 55 com aparência de, pelo menos,
dez anos a mais.
Recebeu-me
com a formalidade dos humildes. Comuniquei-lhe o nome e a missão e ele se
prontificou a prestar as informações que eu necessitava. Mandou “puxar o banco” espécie de escultura
rudimentar, esconcha, produzida pelas astúcias de um aprendiz de marceneiro. Ofereceu
café e se dispôs a responder às perguntas do questionário básico: nome,
sobrenome, cônjuge, descendentes, moradores da unidade e coisas do tipo.
Falou-me da composição familiar da casa “grande”. Mulher, filhos, netos,
sobrinhos de longe que em sua casa encontravam abrigo. Entre um dado e outro,
histórias da vida, experiências vividas e comentários genéricos sobre os mais
variados assuntos.
Antes
de a entrevista chegar ao fim, havia uma pergunta que interrogava ao líder da
casa se o terreno era ocupado por outra habitação. Aí foi que descobri a
magnitude do cortiço que ocupava aquela área. Pela lateral direita da casa
principal, um corredor com musgos na parede e lodo no solo levava a outro mundo,
um quadro pintado com cores berrantes e lúgubres, sob as astúcias literárias de
Aloísio Azevedo e uma atmosfera musical múltipla e perturbadora.
Um
casario mal-ajambrado, estacas fincadas por todo canto, arame farpado se
confundindo com fiação elétrica improvisada de uma casa a outra, varal de
roupa, roupas estendidas, uma profusão de meninos de todas as idades e
mulheres, placas de fossa pontuando o terreno... Só ali consegui recensear
cerca de 45 almas. Antes de me despedir, missão cumprida, ainda recebi um
convite para voltar no final de semana pra “tomar uma”, na inauguração de mais
um puxadinho. Era uma recepção ordinária para um pródigo desgarrado que estava
voltando do sul. A “puxadinha” já estava em pé e o rebento desgarrado também
acamparia no terreno do pai até deus mandar bom tempo.
por Edson de França
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