quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Recortes animados da memória

            - Pêdo, tu vai querê pão de mi?
A voz miúda de D. Joana Graú ganhava momento de agudíssima estridência, quando perguntava a Seu Pedro, opinião sobre o cardápio da janta. Era o momento em que ela ocupava a boca da cena bucólica de fim de tarde, assumia a fala. Brilhava corpo e voz, com autoridade e a segurança de sua tímida desenvoltura.
O cenário, a seu modo, era belíssimo.
Entre a casa principal e o apêndice que servia de moradia ao casal, nos fundos do terreno, se distribuíam plantas frutíferas – lembro-me de uma goiabeira e de uma pinheira que ali moravam -, arbustos medicamentosos – xaxambá, hortelã, capim santo, cidreira... -, flores nobres e daninhas – uma roseira soberana e rosetas sem-vergonhas de malmequer (comida para a criação de preás e lebres). No terreno baldio, ao lado, bananeiras, mangueiras e coqueiros contribuíam com sua parte para a montagem de um cenário latino americano como uma alegoria, uma referencia suburbana aos labirintos da alma latino-americana, tão bem descritos por Gabriel Garcia Marquez.
            Havia um caminho entre as duas moradias.
Uma vereda levava da cozinha da casa grande ao quichó do casal; no percurso, graças a providência da base alta e laje de uma fossa, formava uma espécie de assento coletivo que servia de banco para as histórias de seu Pedro com os piás, a conversa de d. Zefa, a locatária, com d. Graú, e a cachaça de seu João com alguns amigos de sina. Era a um tempo confessionário das mulheres, festança para os homens grandes, encantamento para as crianças e, algumas vezes, nos momentos da total  redução da energia telúrica vital, de abandono e ensimesmamento. 
Havia um clima de suburbana e festiva afetividade.
 Dissemos era tarde e, naquelas tardes, havia uma confluência feliz de situações. Além da preparação da janta que ocupava as mulheres e moças das casas, os meninos haviam chegado da escola, os patriarcas do trabalho. Os animais se recolhiam; galinhas nos poleiros naturais e improvisados nos galhos das fruteiras, a ração dos bichos pequenos já tinha sido servida. Os humanos faziam, então, a prévia festiva do descanso noturno e aproveitavam essa hora para descarregar as últimas energias gastas durante o dia. Cansaço, frustações, preocupações e esperanças...
- Pêdo, tu qué pão de mi?
 Jamais havia ouvido falar em “pão de mi” (traduzindo: “pão de milho, na nossa esnobe mania de dar sentido ao falar popularesco). Pão de milho era o velho e bom cuscuz nordestino, à base de farinha de milho, água e água. D. Joana Graú, com seu linguajar caiçara e sua sabujice de esposa dedicada, representava a simplicidade e a naturalidade da vida dos arrabaldes. Pedaço de universo particular, recorte bucólico da vida onde íamos, meninos, pari passu, costurando nossas experiências sensoriais de  mundo.      

por Edson de França    


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