domingo, 23 de setembro de 2012

A realidade e o imaginário





            A primeira aparição que utilizaram para nos assustar, quando crianças, foi o Bicho Papão. Debaixo de várias roupagens. Ou disfarces. Entes que podiam ser inspirados tanto em personagens de fábulas como lobisomens e vampiros ou ainda ganhar representação real nos andarilhos maltrapilhos que perambulavam pelas ruas do bairro.
Dia desses me surpreendi ao localizar, num dos episódios do seriado Chaves, uma versão mexicana popularesca do Velho do Saco, malvado ancião raptor de crianças. Assim percebi que a globalização cultural antecipou em décadas a propalada globalidade econômica. Pelo menos em termos de artimanhas paternas para controlar, pelo susto, seus irrequietos rebentos.
Os miúdos do grupo escolar eram acossados pela suposta aparição da Mulher de Branco nos banheiros.  A personagem (pela descrição de quem chegou a vê-la) trajava uma vestimenta branca como os moribundos dos hospitais e loucos dos hospícios da época e se tornava mais assustadora por chumaços de algodão apostos nas narinas. Aqui não posso precisar se a invenção devia-se a criação de adultos ou das próprias crianças em puro exercício de fabular com a imaginação.
Pela vida a fora, contudo, fomos nos acostumando com outras fantasmagorias, cujo objetivo mais superficial era nos fazer tremer. Arrepiar os cabelos, por assim dizer. Toda nossa cultura ocidental é marcada fortemente por esse quesito. Descubro em Gilberto Freire, por exemplo, uma Cabra Cabriola das ruas de Olinda, do abecedário do povo da zona da mata emerge uma Cumade Fulozinha, senhora dos redemunhos dos quintais descampados. São mitos engenhosamente criados pela cultura popular. Cumprem uma função prática e somem nas brumas do imaginário. Isso quando não são desmitificados e, perdendo a mística, passam a não mais fazer sentido.
Em todos eles, porém, há que se notar uma mesma nota. Eles não surgem do acaso. Todos eles têm uma representação transplantada do real que vemos. Uma espécie de inspiração. Um jogo entre o consciente e o inconsciente. Em sendo assim, esses personagens são íncubos recheados por nossas crenças, nossas visões de mundo, nossos preconceitos...
Os personagens incorporam, por assim dizer, nossos racismos. Procura-se um travesso saci ariano por aí a fazer artes. Nossas fobias sociais. Há relação entre mendicância, a senilidade, a pedofilia e o trabalho infantil? Nossos medos. Há morte, há doença, há o abandono, há a loucura. Por esse prisma de visão sistêmica só nos resta concluir que, perto dos bichos que nossa mente social coletiva é capaz de criar, o bicho papão não passava de um velhinho desgarrado que pedia um pedaço de pão pra viver mais um dia entre seus fantasmas e nossas pressuposições.     

por Edson de França

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