A primeira aparição que utilizaram
para nos assustar, quando crianças, foi o Bicho Papão. Debaixo de várias
roupagens. Ou disfarces. Entes que podiam ser inspirados tanto em personagens
de fábulas como lobisomens e vampiros ou ainda ganhar representação real nos
andarilhos maltrapilhos que perambulavam pelas ruas do bairro.
Dia desses me surpreendi ao localizar, num dos episódios do seriado
Chaves, uma versão mexicana popularesca do Velho do Saco, malvado ancião raptor
de crianças. Assim percebi que a globalização cultural antecipou em décadas a
propalada globalidade econômica. Pelo menos em termos de artimanhas paternas
para controlar, pelo susto, seus irrequietos rebentos.
Os miúdos do grupo escolar eram acossados pela suposta aparição da Mulher
de Branco nos banheiros. A personagem
(pela descrição de quem chegou a vê-la) trajava uma vestimenta branca como os
moribundos dos hospitais e loucos dos hospícios da época e se tornava mais
assustadora por chumaços de algodão apostos nas narinas. Aqui não posso
precisar se a invenção devia-se a criação de adultos ou das próprias crianças
em puro exercício de fabular com a imaginação.
Pela vida a fora, contudo, fomos nos acostumando com outras fantasmagorias,
cujo objetivo mais superficial era nos fazer tremer. Arrepiar os cabelos, por
assim dizer. Toda nossa cultura ocidental é marcada fortemente por esse
quesito. Descubro em Gilberto Freire, por exemplo, uma Cabra Cabriola das ruas
de Olinda, do abecedário do povo da zona da mata emerge uma Cumade
Fulozinha, senhora dos redemunhos dos quintais descampados. São mitos
engenhosamente criados pela cultura popular. Cumprem uma função prática e somem
nas brumas do imaginário. Isso quando não são desmitificados e, perdendo a
mística, passam a não mais fazer sentido.
Em todos eles, porém, há que se notar uma mesma nota. Eles não surgem do
acaso. Todos eles têm uma representação transplantada do real que vemos. Uma
espécie de inspiração. Um jogo entre o consciente e o inconsciente. Em sendo assim,
esses personagens são íncubos recheados por nossas crenças, nossas visões de
mundo, nossos preconceitos...
Os personagens incorporam, por assim dizer, nossos racismos. Procura-se
um travesso saci ariano por aí a fazer artes. Nossas fobias sociais. Há relação
entre mendicância, a senilidade, a pedofilia e o trabalho infantil? Nossos
medos. Há morte, há doença, há o abandono, há a loucura. Por esse prisma de
visão sistêmica só nos resta concluir que, perto dos bichos que nossa mente
social coletiva é capaz de criar, o bicho papão não passava de um velhinho
desgarrado que pedia um pedaço de pão pra viver mais um dia entre seus
fantasmas e nossas pressuposições.
por Edson de França
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