sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A construção dos santos

O Homem vive de fabulações. Gosta mesmo é de mitificar e mistificar. O domínio da razão não nos afastou dessa mania de imemorialística ancestralidade. Nem mesmo a leitura materialista da sociedade que questiona a deidade foi capaz de superá-la. Precisamos como cães sedentos, de deuses, totens e santos enfronhados no cotidiano. Precisamos de pitonisas, de oráculos a quem recorrer, quando o futuro nos aparenta incerto ou o peso da vida amarga testa nossa capacidade de resistência. Sugere ser essa uma determinação inexorável, um elo inquebrantável entre o que arde de primitivo em nós e a moldagem psicofísica do homem contemporâneo.

Isso nos parece admirável quando analisado do ponto de vista de fenômeno social e antropológico. Mas essa mesma manifestação mostra sua face ridícula, material, caso queiramos assim denominar, quando desmembramos friamente as unidades componentes do ritual de nascimento dos tantos santos que infestam nosso cotidiano. Quando isolamos cada um dos elementos constitutivos da construção dos santos, os separamos, e criticamente apreendemos nomeadamente cada um deles, surge uma face pouco comum da santidade: os santos são invenções manipuláveis da mente dos homens e, socialmente, são impostos para o consumo de fiéis. Mas sempre envolvem, para sua existência, um teatro mágico de alegorias e pantomimas bem humanas, bem terrenas.

A construção dos mitos (de oráculos, pitonisas, mães dinás, xamãs, advinhos, santos e etc), socialmente aceitos, dá-se, sobretudo, na esfera dos poderes, implícitos ou escandalosos, que reúnem indivíduos e instituições. Trata-se de poder pela manobra da opinião publica (maestralismo social e ideológico) e pela visibilidade (egolatria) de alguns poucos espertos. Na real, um exercício natural dos homens que, internamente, se reveste de rituais de empoderamento permanentes de indivíduos, grupos e instituições.

O poder, ou empoderamento, se dá na soma de alguns elementos que se complementam como passos marcados de um ritual de sociabilidade. Ao primeiro deles podemos conceituar como “arquitetura primordial de uma causa”, que é tão somente a captação (na maioria das vezes, oportunista) de um fenômeno, de apelo popular, em sua maioria (mas podendo ser oriundo das elites), sobretudo, no tocante as questões que envolvem a fé. A conseqüente embalagem desse índice serve para consumo de uma massa que, por sua vez, não deve questionar validades.

O segundo trata-se da “busca pela legitimidade”. Este se caracteriza pela violenta busca a captação da boa vontade da opinião publica. Não adianta ter um ícone consumível nas mãos, se a população questiona; é preciso quebrar resistências, mostrar o que há de “real” no fenômeno. Para isso, um documento probatório de uma instituição reconhecida (uma universidade, uma instituição cultural ou o que valha) serve bem ao propósito de estabelecer o consenso. A simbiose entre homens e instituições, leigos e especialistas, oportunistas e ingênuos da fé, eventos de comunicação pública e ocupação de espaços na mídia fazem parte do modus operandi em torno do princípio da legitimidade.

Assim se fortalecem os cultos aos santos. A fé é um dos monumentos mentais da humanidade mais manipuláveis. O santo, coitado, já desencarnado, não pode dar a palavra final nos destinos de sua memória. Nem pedir que o esqueçam. Que o deixem em paz. Nem negar seus milagres. Tudo acaba mesmo é na esfera humana. E onde há o humano, há geração de valores – valores psíquicos, em alguma parte; em moeda corrente, na maioria das vezes - oportunismo, malversação, construção de mitos consumíveis. Pura, simples e profanamente.

por Edson de França

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