sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Mentes “espertas”, escritores fantasmas

 

Engana-se quem pensa que a inteligência artificial é coisa recente. O que temos atualmente, como ideia de inteligência remota, é só um modelo mais aperfeiçoado, tecnologicamente avançado, robótico, virtual de um velho mecanismo. Modelo de “descanso da mente” e exploração de talentos invisíveis. Talentos até nomeáveis, mas funcionais, anônimos, sem rosto e sem alma.

O modelo de sistema preexistente, era muito mais rústico, envolvia corpos e sobretudo mentes. Mais uma vez, até nomeáveis, mas de preferência funcionais, anônimas e silenciosas e fustigadas remotamente. Não quero sair por aí acusando a toa, mas penso que boa parte da produção de autores, entre consagrados e meias-bocas, deve-se à “exploração” desse expediente da engenharia produtiva de construção de obras.

Lembro-me que uma das críticas mais contundentes ao “Xangô de Baker Street”, best seller do inesquecível multi-artista Jô Soares (1938 - 2022), era ser ele fruto direto do trabalho de uma falange de ghostwriters. Penso que a crítica, cujo um dos papéis é encorajar a leitura, contribuiu em muito para restrições à obra por parte dos leitores mais exigentes. Serviu, inclusive, para criar ilhas de suspeição à unânime aceitação do humorista.

Não encontro, no momento, qualquer outra acusação de “conspiração dos escritores fantasmas” de tal monta. Se as houvesse em profusão, seria movimento capaz de derrubar dos andores uma porrada de “laureados empreendedores” das artes literárias. De roldão, iriam autores autobiográficos, grandes personalidades, todos sendo expostos em suas “limitações” relativas à “escassez de tempo, inabilidade com as letras ou falta de paciência”.  

Ao contrário do que possa parecer “ghostwriter”, o escritor fantasma, é uma profissão reconhecida. Muitos se dão bem nela, sendo regiamente pagos pelas páginas, assim como pelo silêncio e, sobretudo, imprescindível anonimato e confidencialidade, que fazem parte do arranjo. O problema é que além das margens dessa formalidade cavalheira, há uma série de projetos sendo gestados à base dos trabalhos anônimos que, em certos casos, nem sabem para o que estão contribuindo. 

Na produção musical do passado, boa parte das contribuições artísticas, destacando-se as partidas de músicos e produtores, eram adequadamente nomeadas. Hoje, nem tanto. Até o nome dos autores é omitido. Ao contrário do cinema, por exemplo, onde a mínima participação merece um lugarzinho nos créditos, a produção artística não quer se notabilizar como rede e, sim, como uma façanha genial de um único nome.

Produtos como o jornalismo, por exemplo, são resultantes das redes de informação que, por sua vez, são baseadas em contribuições anônimas em prol de uma, também anônima, apresentação final. Pouca coisa no jornalismo ganha uma rubrica pessoal. Jornalismo não é literatura, se a entendermos enquanto trabalho com a “realidade” por meio do concurso de “redatores” especialmente qualificados para o feito.

Obras literárias de fôlego devem ser atribuídas ao gênio inventivo e laborioso de um artista. Não há dúvidas e questionamentos sobre esse ponto. As leio. Obras menores - sobretudo de cunho auto-elogiatório - guardo meus receios. Não há dúvida que para faze-los vir a luz, é necessário o concurso de várias mãos (ou mentes). Funcionais, anônimas, virtuais, remotas, mau pagas ou exploradas em seu voluntariado tácito. Dinheiro público, inclusive, muitas vezes financia diretamente esses arroubos geniais. Difícil é alguém se dispor a ler os capítulos da obra Frankenstein resultante. 


por Edson de França 


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Apreciações depreciativas in loco

  


Geralmente guardo boas lembranças dos lugares por que passei. Se os motivos para tal não se mostram tacitamente, tento construí-los. Viver é precioso e breve, conhecer lugares é enriquecedor. Como cantaria Ze Ramalho, antes de lavar as “pepitas de fogo”, na maleta leva-se as “figuras do mundo”. Lugares, mesmo os mais feinhos, preservam sítios, energia e ternas emoções humanas. Aliás, só estas últimas que podem desestabilizar um projeto de construção de boas e mais permanentes memórias afetivas. Só energias bem negativas podem manchar uma experiência imersiva nos ambientes. 

 Também, por não militar na crítica especializada em indicações turísticas, não me afino com o ato de produzir comentários para consumo massivo. Procuro restringir meus comentários ao minúsculo grupo de “pareceiros”. Sem poesia ou ingênua indignação nem crônicas eu dou ao deleite de produzir. Já fui a lugares maravilhosos e terríveis, em companhias de caráter variados, mas procurei sempre transcender e as avaliações aleatórias jamais foram muito longe do raio de ação de minha trupe.

Falando nisso, nunca fui a Coxixola. Acredito porém que ela deva se parecer com outras tantas cidades desses rincões anordestinados. Pequenas, humildes, de paisagens bucólicas e famélicas, sem muitos traços do “desenvolvimento” das metrópoles desengonçadas em meio a letreiros, cheiro de gasolina e arranha-céus da intolerância. Lugares aqueles aliás cuja paisagem e modos de vida emprestaram o sal e o suor para a inspiração de poetas e músicos que moldaram o gênero forró. Sei, graças ao grande irmão Google, que o município situa-se no Sertão do Cariri Ocidental, ostenta a posição 3 entre as menores cidades do estado e exibe orgulhosa o título de “pequena notável”. 


Irônico, um ser pertencente a uma banda “presumivelmente forrozeira” ir à rede (anti)social criticar o cenário encontrado naquele sítio. Fez, como é comum hoje em dia, mal uso do recurso, assim como faz dos palcos em que pisa. Desagradou ao paladar do moço que anda a angariar fama e recursos das prefeituras de lugares em situação similar. Se bem que o forró estilizado da banda não tem nada a ver com esses lugares. É urbanizado, limitado e enganoso estéticamente, feito um neon de casa de recurso periférica. 

Comentários depreciativos do tipo, se consumidos em pequenos círculos, tem vida curta: são engendrados, se materializam e saem de cena sem gerar lembranças ou causar maiores danos. No máximo alguns risinhos, entre aderentes e reprovativos dos circunstantes. Para uma platéia indistinta e ávida por “preciosidades ridículas”, ela serve como gracejo em grande escala, cliques, afagos no ego e mais alguns followers. Mas, por pela dimensão da publicidade, pode acabar mobilizando o tribunal da rede, sob a acusação de exposição pública, xenofobia, intolerância, racismo e outras indelicadezas e delitos mais. Para grandes façanhas, enormes reprovações. 

Nesses casos resta aos envolvidos virem a público pedir desculpas. O fato porém é que o vídeo do “mau feito” repercute bem mais que as “mal explicadas”. O fato em si passa a ser réplicas, ganhando características quase indeléveis. A desculpa, não. Será vista como um ato de fraqueza e relegada ao patamar das poucas visualizações. Alguns muitos nem se darão ao trabalho de ver, enquanto a simples menção do tal vídeo provocador numa conversa dispensa a visualização e ganha uma repercussão imparável. 

Há gente que foi a Paris e não viu nem curtiu a tal “cidade luz”. Alguns foram a Veneza e só trouxeram nas retinas a sujeira dos canais e, provavelmente, o cheiro. Muitos passarão por Coxixola e lembrarão para sempre da placa de “Coxixola existe. É aqui.” Comentários a respeito de ratos de esgoto nas ruas da capital francesa não diminuíram o mito ou os atrativos dela. Veneza, nem sendo engolida pelo mar, deixará de exalar o ar romântico que a notabilizou. Quanto a Coxixola, a pobre, continuará vivendo sua rotina, despertando interesses simplistas e passando ao largo do comentário que diz mais do erro de cálculo e apreciação da pessoa que o proferiu que daquele núcleo morada de orgulhosos munícipes. 


por Edson de França 


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Situação análoga à escravidão


A
forte expressão é utilizada pela mídia cada vez que as autoridades de fiscalização do trabalho desmantelam uma senzala contemporânea. Em pleno século 21, eras a distância do chamado período escravocrata, elas (r)existem como uma chaga social. Para a imprensa a expressão é apenas um clichê apelativo; para aqueles com alguma sensibilidade, trata-se de um verdadeiro escárnio diante dos avanços da civilização. Estes mesmos que incluem entre suas principais bases a democracia, o respeito irrestrito aos direitos humanos e o combate às vilanias.

A concepção da senzala “moderna” se utiliza de uma estratégia que une pobreza e necessidade econômica, submissão e servidão com vistas à exploração do trabalho. Quem não leu Karl Marx ou se empanturre do medo insano do “fantasma do comunismo", talvez jamais vá entender as categorias presentes na construção da riqueza capitalista, na qual o “trabalho”, a força do braço, é elemento fundamental. Por isso mesmo ser artigo tão cobiçado por espertalhões e exploradores inumanos.

Por esse prisma quem compra a “força de trabalho” em contrato, leva além do corpo, a saúde, os ânimos, a administração do tempo e dos destinos do infeliz “vendedor”. Ademais, para o processo ser lucrativo, quanto maior disponibilidade dela no mercado e quanto menos depender de investimentos mais compensatória é. Mão de obra barata é fundamental para a saúde do sistema. Se beirar o “custo zero” e o “animal de força” ficar “devendo à casa”, o ouro dos dentes do algoz chegam a reluzir.

A estratégia escravista moderna, no caso explícito das senzalas desmanteladas, é bem assim. Sabendo da penúria porque passam exércitos de homens por esses brasis a fora, eles saem à caça. Os muitos que alimentam o “sonho miúdo” de ter um emprego, ganhar algum para matar a fome, sentir-se útil e, sobretudo, cumprir a missão de dignidade cristã são os alvos. Uma vez seduzidos, são retirados de seu ambiente natural sob a promessa de trabalho e remuneração compatível com seus esforços e esperanças.  

Retirados de seu habitat, os voluntários começam a sentir na pele literalmente a situação de degredo. O trabalho escravo na contemporaneidade se revela como trabalho forçado, jornadas acachapantes, condições degradantes de vida e moradia e, finalmente, a servidão por dívidas. Esse caso de limitação de liberdade é o que mais, escandalosamente, a equipara a escravidão clássica. 

Os casos das senzalas que mancham os processos produtivos de alguns ramos, sobretudo do chamado agribusiness, são escandalosos quando noticiados. Amiúde, utilizam-se de certa sutileza pro ardil de constranger economicamente e, consequentemente, limitar a liberdade de locomoção do trabalhador. Falamos até aqui de similares das clássicas “senzalas”, não é? E você aí, já vislumbrou os condicionantes, ou cordéis, que te confinam nas senzalas a céu aberto, iludido do desfrute dessa tal liberdade?

Liberdade é um termo controverso. Quem é realmente livre diante de qualquer sistema econômico? No sistema do capital é fato que quanto mais pobre for a alma mais condicionada estará à servidão. Quanto mais tentado a “pertencer” ao mundo, por meio do abuso da sede por bens de consumo, mais escravo se torna. Para simples aquisição de alguns bens denotatórios de “pertencimento” à sociedade vende-se a alma, a consciência e dá-se docilmente os pulsos aos grilhões. A cada propaganda de TV com ofertas e vantagens em empréstimos ou assédio de financeiras a funcionários públicos sinto a presença sutil da sujeição humana. Grilhões palpáveis prendem as mãos, os imateriais amarram e distorcem a mente.


por Edson França

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terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Que “cachorro” é esse?

 

          Popularmente costuma-se atribuir a palavra cachorro àquela pessoa  que faz lambança. Foi infiel, faltou a um compromisso, cometeu alguma desatenção, foi indelicado com as “migas”, “migos” ou parentes e lá vem o adjetivo pouco elogioso de “cachorro”, no sentido de “cão dos infernos” mesmo. 

Enfim, “cachorro” quer dizer aquele/a que fez “cachorrada”, ou seja, espalhou sujeira em atitude similar a dos porcos, aqueles que se refestelam na lama e parecem sair felizes. Pelo lado humano, atitudes de arrogância, soberba e desrespeito ao próximo também entram nessa categoria.

Vivemos atualmente, contudo,  a idade dos pets. Ou, melhor, a era da ascensão de animais ao nível da parentela, com lugar harmoniosamente arranjado na árvore genealógica das famílias. Nunca a civilização viveu tamanha paixão pela companhia animal. De todas as espécies, vale ressaltar. 

Importaram até este denominativo para redesignar os antigos bichos de casa. Com a patente de pet, incluí lagartixas e simpáticas osgas que conservo em minha jurisdição na categoria “estimação”, por afinidade e tacitamente.

Dentre os pets, contudo, havia de ser o cachorro (o bicho, muito além do adjetivo) o mais preferido. Nunca se criou e se cobriu o animal de tantos cuidados como agora. Portanto, desde logo, utilizar a palavra cachorro significa agredir à constituição familiar.  Classificar qualquer sujeira como “coisa de cachorro”é quase desrespeitar um membro das famílias, um ente bem próximo. 

Por essa via, os dogs atualmente encaram um processo de assepsia corporal tão rigoroso que disputam, em pé de superioridade até, com os bebês da espécie humana. Análise de pedigree, banho, tosa, estética, manicure, plano de saúde, creches e dog walkers (passeadores) são alguns dos mimos com que se acariciam a pele, o organismo e o ego dos dogs. 

Há cães andando por aí com um ar de superioridade e grau de entojo ímpares para seus pró


prios pares e humanos menos aquinhoados.  

Para o ambiente privado, os lares, os pets são adestrados a se privarem das necessidades básicas de qualquer animal. Há um mercado de provisão a esses cuidados. Tapetinhos, terrinhas especiais e tais servem para condicioná-los a manter a limpeza interna das residências. Ironicamente, o mesmo comportamento não é replicado, contudo, quando os pets são levados aos espaços de convivência, onde seus prestimosos tutores os levam a passear. 

Pelas convenções de urbanidade não escritas, os donos deveriam ser responsáveis imediatos pelas sujidades que seus animais fazem nas calçadas e praças. Mas não é exatamente assim que ocorre normalmente. 

O homem supostamente atingiu um estágio mental superior ao desenvolver atenção, cuidar e ser solidário aos de quatro patas. N motivos explicam essa tendência. Aplacar os efeitos da solidão, dos estresses da convivência humana, institucional e das depressões, por exemplo. Contudo, na maioria das vezes, esse mesmo HOMEM faz questão de ignorar o sentido da coletividade e, mais, da solidariedade, quanto a questão limpeza em vias públicas. Flagrante desrespeito aos de sua própria espécie. 

Não é difícil encontrar, espalhados por calçadas e passeios públicos, o fruto digestivo dos pets. É da natureza dos cães evacuarem livres, trata-se de um apelo insustentável e inadiável. Por outro lado, apanhar o produto do chão, para manter a limpeza pública e contribuir para a saúde e integridade dos pés e calçados dos passantes, é tarefa de tutor ou pai de pet. Não é fácil ao caminhante andar ziguezagueando entre fezes.

O cachorro definitivamente não tem culpa. É mais uma vítima dentro desse processo de convivência. No final, ultra-asséptico animal acaba sujando mais que os legítimos donos da rua, os vira latas, por pura e inconsequente negligência de seus donos. 

A contribuição mínima do cidadão para a limpeza da cidade seria evitar lançar resíduos nas vias. Não adianta pleitear cidades limpas e glamourizar locais onde tal ocorre, se não cuidar do seu próprio quintal. E nem tudo é dever do poder público. Cada cidadão tem que usar do mínimo de consciência para fazer sua parte. Praças, por exemplo, são recintos onde crianças brincam e se divertem, muitas vezes de pés desnudos. Há lugar para pet nesses espaços, claro, mas não para suas fezes.

Em minha rua, em uma pracinha defronte a endereço de alto padrão, o desleixo atingiu o ápice: por lá, agora a decoração horizontal de fezes ocasional, um poste sustém, por dias seguidos, qual árvore natalina, uma porção de saquinhos com o conteúdo fétido da ação intestinal dos pets é fruto da preocupação parcial do humano com o lixo que produz

Ficam lá à espera de uma mão anônima - um abnegado e incomodado vizinho ou um agente público de limpeza, a guisa de anônimo elemental  - que venha dar destinação final aos dejetos. O homem evolui decerto, seus comportamentos sociais contudo não evoluem. Então, quem é o cachorro nessa história, afinal?


por Edson de França  


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Rostos memorizáveis


Em tempos relativamente antigos, por ali pelos 70’s, nossa cultura midiática foi pródiga a produzir rostos marcantes. Tal qual ocorria com os “caras” do futebol que ilustravam figurinhas colecionáveis, os ídolos do cast televisivo - predominantemente da Globo - também contribuíam com suas efígies para álbuns coloridos. Deleite e disputa para os fãs mais sectários. 

Acredito que os álbuns, ao lado das revistas de fofocas, vendiam como água. Pelas periferias, até quem não tinha televisão em casa, era tomado pela febre de consumo de novelas, galãs e galoas. na tela ou nas figurinhas e posters. Os primórdios das telenovelas - em pleno período de popularização da TV - foi impulsionado por esses pequenos artifícios que faziam parte da construção das “celebridades” de então, contribuindo para que uns poucos caíssem nas graças do povo.

Eram rostos memorizáveis e a estratégia marketeira servia para alavancar carreiras e propagar as produções em que os artistas estivessem atuando. Garantia de sucesso imediato e longevidade na carreira. Coisas que, se foram fundamentais à época, atualmente revelam-se totalmente ultrapassadas. Nostálgicas e estranhas, por assim dizer, às sensibilidades de recepção e ao engajamento midiático modernos.

Naqueles tempos em que, como diria Gilberto Gil, “o mundo era pequeno porque a terra era grande”, parecia haver apenas uma meia dúzia de “artistas” de primeira linha circulando por aí. Aqueles, claro, cujas imagens mereciam perpetuar-se na memória afetiva dos telespectadores. Uma geração cujos remanescentes não querem hoje saber além dos seus 80 e poucos anos. Os outros, eternos aspirantes ao estrelato, passavam ao largo desse circuito privilegiadíssimo.

Tudo aquilo porém amarelou, virou scena antiqua. Virou-se a página e uma nova história passou a ser contada. Um tempo de fisionomias fugazes, personalidades líquidas e cultura fast food ultraprocessada e insípida se insurgiu.  Os álbuns de artistas de outrora são, hoje, relíquias relativas a uma época datada da cultura pop que devem, se muito, valer alguns centavos numa lona de páginas desgastadas em uma calçadinha qualquer. Valem menos que uma coleção amarelada da Digest. 

Na vitrine atual, excelentes atores e artistas em geral dividem o caldeirão da onipresença pública com os bons, os oportunistas e os influencers, além, claro, de anônimos a dar com o pau e toda uma gama de dublês de tudo. Muita gente atua, canta, dança, sapateia, faz comédia, vende simpatia e jogos de azar e, ainda, administra as aparições diárias nas redes sociais. Gente demais. Num mercado de exposições rápidas, para consumo e descarte imediato, não há mais a imperiosidade de uma memória afetiva para rostos, vozes e talentos referenciais. Nada mesmo que mereça servir à composição de um álbum de figurinhas.

“Um dia, todos terão direito a 15 minutos de fama”. O comentário do artista americano Andy Warhol, ventilado ainda nos anos 60, nunca foi tão cabível. Soa, atualmente, como uma profecia realizada. São incontáveis os rostos em disputa pelos tais minutinhos. Arrisco até a dizer que esse tempo poderia ser recalculado. Não cabem mais 15 minutos para cada um/a aspirante a foto da capa. Quem quiser expor seus talentos, não importa a magnitude, no mundo artístico prepare-se para enfrentar a volubilidade do mercado.  

Onde um influencer sem caráter de base ou talento adicional qualquer, pode auferir, em pouco tempo, mais reais que um artista real poderia adquirir uma carreira regular e minimamente marcante. A ponto de poder ilustrar as páginas de um álbum de recordações.

Em tempos de relativa facilidade de acesso à exposição pública, o potencial colecionador de “figurinhas carimbadas” de ídolos ficou órfão. Com tanta cara, sempre nova, a disputar espaço em sua mente e coração, não há espaço de armazenamento suficiente para empilhá-los, nem altar, nem velas para alimentar qualquer culto. Com tanta demanda, é urgente consumir e descartar, de preferência com a superficialidade que move as paixões voláteis. 


por Edson de França 


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quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Status: incoerente

Seria demais exigir um mínimo que seja de coerência por parte dos influenciadores digitais. A natureza fluida e oportunista de seus “afazeres” impede o uso desse expediente. Loucos por fama e grana em geral não costumam incluir “fraquezas” em seus repertórios. E coerência, parcimônia, equilíbrio e senso de coletividade fazem parte desse rol de “fragilidades humanas”. 

Fragilidades humanas são bens “maturáveis”. Por “maturáveis” cabe entender que são frutos não apetecíveis ao paladar de apressados e imaturos. Só tednem a se desenvolver em quem viveu um  tanto e aprendeu um pouquinho da natureza controversa da existência. Só a alta sensibilidade nata, uma criação familiar e uma educação voltada a esses princípios, além dos ápices da idade da sabedoria, quando não viciados, é que as condicionam. 

Por seu turno, os influencers administram outros valores como a infalibilidade, o destemor, o “empreendedorismo” sem lastro, a visibilidade social ilimitada, o desenvolvimento e o cultivo de emoções liquefeitas. As regras formatadas para gerar os “bens sucedidos” no atual contexto histórico, pressupõe “pessoas fortes”, com “fortes” a significar competitivas, sanguinárias e oportunistas.  

A coerência não se alia a esses componentes dos “latifundiários" da comunicação atual, pois pressupõe autopreservação, cautela, consciência social e respeito pelo ser humano, individual e coletivamente. Parcelas consideráveis de influencers, content creators, coachs e aparentados não querem saber dessas “fragilidades humanas". Também não pensam em desenvolver a menor porção deles.  

Se colocar a cabeça de um semelhante na guilhotina tem seu peso em likes, projeção e dinheiro na caixa, eles certamente as colocarão. Se arrastar reputações alheias ao rés do chão redundar em sucesso, eles se esmeram. Além, é claro, da desorientação pública e indução ao consumo compulsivo de supérfluos, na qual eles são mestres.  O caso dos “joguinhos” que tomou conta do noticiário há uns dias é sintomático desse modo de agir. 

Os “tigrinhos” e “aviãozinhos” foram impulsionados, tornaram-se populares graças à influência dos “astros” nas redes sociais. Mesmo tendo consciência do potencial enganoso dos jogos, eles embarcaram de multiplicadores da ideia. “Que se lasque, quem quiser jogar”, pareciam pensar eles. Totalmente, vê-se despreocupado com as perdas desses mesmos que, com sua idolatria, mantém seus impérios. 


Derradeiras abaixo


1 - Publico esse texto no momento em que remoo grandes sucessos sucessivos sucessivamente sem cessar de influencers. O escrevi numa época em que a quatrocentona capital paraibana tão pudica, tão provinciana, se viu “abalada” diante de publicações libertinas produzidas por um influencer e seu harém de esposas. Descontando a parte de hipocrisia da sociedade, o resto é histeria para História. 


2 - Dias próximos, um influencer pernambucano foi ouvido pela justiça paraibana por conta de prática de direção perigosa numa das principais vias da capital. Saiu dizendo que a imprensa paraibana era um lixo. Crime da imprensa: repercutir as imagens do crime produzidas pelo exibicionista criminoso. No mínimo contraditório. Não é por isso - pela visibilidade - que eles se matam? Qual o erro da imprensa ao repercutir os malfeitos dessas “celebridades”?  


3 - A intimação ou prisão de influencers por conta dos joguinhos, assim como de outras façanhas, não causa surpresa. A grande maioria não está aí para influenciar positivamente os indivíduos. Vendem, sim, um modelo de sociedade onde o individualismo, o consumo e a demonstração exterior de riqueza é o que conta, em primeiro plano. No vácuo dessa tendência,  seguem os preconceitos (contra pobres, inclusive), o capacitismo, a moral e a ética distorcidas e, finalmente, uma visão de sociedade totalmente descolada da realidade.  

 

por Edson de França

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quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Campanha instagramável

 



se vai atualmente a um restaurante ou bar que seja instagramável. Sendo o palavrão aí utilizado no sentido da escolha pelo local ser intensamente motivada por condições que garantam boas fotos para as redes sociais. Para montar esse menu pós-moderno, os empreendimentos se esforçam em montar cenários e ambientes que contentem as vontades de seus habitués. É imperativo. 

Cidades, logradouros e até santíssimas igrejas aderiram à modinha. As fotografias nunca falaram mais que trocentas palavras que agora. Registrar momentos e disponibilizá-los nas malhas da rede para consumo público faz parte do marketing pessoal em tempos de solidões sólidas e interesses sociais (in) questionáveis. 

Ser in é mostrar a rotina nas redes. De preferência fazendo presença em endereços da moda, munido de objetos que demonstrem alguma ostentação e em certas, e preferencialmente atrativas, companhias.   

Num mundo ditado pela projeção da imagem, regido pela ditadura da exposição extrema e pela fissura nas telas, chega até ser natural o expediente. Faz parte da estratégia de presença/existência social. Amadores selfies-mades ou perfis elaborados por profissionais, não importa. O que vale é ser persona arrendatária de algum quinhão, mínimo que seja, do latifúndio digital. 

No mais, é preciso alimentar as redes diariamente ou com alguma regularidade quase científica. É preciso sanar o apetite voraz de voyeurs, followers e stalkers mansos. Tanto faz que seja um grão entre os exércitos de anônimos, profissional influencer, artista ou político. 

Estes últimos são a bola da vez nas redes, afinal a campanha política está no ar. As redes são o marcapasso de corações e mentes, um território a ser explorado. Quem almeja manter ou ampliar sua penetração junto aos público tem que montar uma tendinha por lá. Munidos de ferramentas básicas como os tais cenários, domínio de linguagem apropriada e disponibilidade até para o ridículo humano fundamental.   

Mais que os cenários, porém, os personagens têm que ser instagramáveis, adotando de passagem qualificativos - entre formais, risíveis e pitorescos -  para elaborar suas aparições. Falar nem é preciso tanto. O discurso escorreito e inflamado ficou no passado. A era de ouro dos tribunos foi superada. 

Também não é necessário ter beleza e porte de galã da novela das 8. Nada disso. 

Os profissionais de social mídia, com seu olho clínico, exploram os cacoetes naturais da figura. Caso não os tenha, inventa-se. O importante dentro do manual das redes,  ao final, é mantê-lo diuturnamente ao alcance do olho do curioso espectador. 

Exposição controlada, obedecendo a horários precisos e racionais, linguagem despojada, conteúdo leve com pitadas de positividade, eis um esboço descompromissado de fórmula. Se puder matizar a postagem com alguma graça ou humor, então tá completo o feitiço. 

A ação (ou seria ambição) política migrou de vez para o mundo virtual. E de maneira tão intensa que a Inteligência Artificial já faz das suas, substituindo a prestidigitação natural do ser político por artifícios muito mais críveis. Ou melhor, ampliando-a. Os recursos da IA tornam qualquer discurso verbal inócuo, e podem atingir uma campanha ou um adversário muito mais ferinamente. 

Assim como faz um feio parecer bonito na foto; um chato, agradável;um aporófobo, empático social. Até tartamudos podem, num passe de magia, virar ases da oratória.  

Gestores, políticos já feitos e aspirantes  de maneira geral aderiram, de corpo e tentações, ao feitiço das redes. Não conheço o ementário dos cursos voltados ao Marketing Político, mas suponho que “usufruto das redes” faz parte do conteúdo programático. A campanha está em curso e, como nunca se viu, é hora de instagramar os candidatos. Depois de eleitos, claro, a farra continua. 


por Edson de França 

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