terça-feira, 31 de dezembro de 2024

E 2024 se despede

2024 se despede. A retrospectiva - aquele expediente jornalístico que serve para rememorar os dramas e comédias do ano que passou - há de nos contar um mínimo do que se foi. Baseando-se sempre, óbvio, no que a imprensa veiculou ou se esmerou em dar destaque, segundo seus particularíssimos filtros e lentes. 

A vida é bem maior do que nos conta os jornais, e a imensa parte dela jamais vira notícia de jornal. O que seduz a mídia é, por assim dizer, uma mínima parte, uma pontinha minúscula do iceberg. A mídia explora os detalhes sórdidos, aqueles que digerimos numa conversa informal ou, fraternalmente, tentamos evitar.

A dinâmica social é muito superior ao que capta os nossos sentidos hiper teleguiados da dinâmica moderna. Nossa pele exposta nos perrengues da vida capta mais dos processos da existência do que é capaz de dizer nos jornais. A imprensa pontua, em sua retrô, aquilo que foi episódico e o que potencialmente garante cenas de próximos capítulos. Aquilo, melhor dizendo, que foi digno de nota, anotação ou escândalo.

Nesse campo, geralmente, as arenas mais propícias à geração de próximas cenas são a política e a ciência & tecnologia. O resto, as redes sociais já se encarregam de propagar o escolho que vira notícia e é matéria propensa a descer esgoto abaixo.

Ambas - a C&T e a política - são nichos da atividade humana que podem inspirar estabilidade, serenidade e boas novas, num primeiro instante. Contrariamente, podem se travestir em façanhas que redundam desconfianças coletivas, caos social, sob bafejos dos anacronismos, reacionarismos e ideologias nefastas.

No campo da C & T o ano vai deixar as descobertas, para o bem ou para o mal, dos usos da inteligência artificial. A preocupação da Justiça Eleitoral durante o último pleito com a prática é sinalizador do hecatombe que elas podem causar. A “pessoa comum e a pessoa” rara precisa estar atenta a seus destinos. Mas não para por aí.

Hora pra outra foi possível ouvir poemas musicados por arranjo e voz da Artificial Inteligence, a IA. Eu, por exemplo, que não aprendi a harmonizar meus desafinados, me senti compositor. No ano que vem a peleja continua. Segue o bonde.

Por outro lado, o desenvolvimento automobilístico é quase coisa antiga. A expectativa é quanto ao aperfeiçoamento das máquinas da Tesla e Elon Musk nas rédeas do Departamento de Eficiência Governamental do Tio Sam. Trazendo inovações, por exemplo, na extinção do combate à mentira nas redes sociais. 

Outra das promessas de continuidade polêmica para o próximo ano, com perspectivas de aprofundamento é “brain rot”. Essa foi a palavra do ano, saída diretamente das especulações dos analistas dos caminhos da relação Homem x Redes Sociais. A perspectiva de continuarmos emburrecendo, ou melhor dizendo, apodrecendo os neurônios é magnífica. 

Reza a lenda que andam testando vacina contra o câncer e outra que garante o nascimento de dentes. Cenas dos próximas quadras desse poema infindo. 

O mundo infelizmente continuará sob guerras e anacronismos. Cães raivosos por toda parte querendo reescrever a história. Putins, Netanyahus, Zelenkis, Mileis, Maduros e Bashar Óleo Salada ainda andarão por aí  

No plano piloto nacional, aguarda-se a posse de novos dirigentes municipais e parlamentares mirins. Expectativas limitadas a a granel por toda a parte. Na arena dos cachorros grandes, o Congresso continuará em briga pelas emendas do orçamento secreto, herança de um zumbi escroto que ocupou a presidência dias atrás, o terrorismo da mídia e da Faria Lima quanto aos rumos da economia, a peleja pelo uso ou não dá câmera nos uniformes dos “civis, gentis, carinhosos e aficionados pela transparencia” agentes de nossas polícias. 

O ano em que “Que show da Xuxa é esse?” virou meme, aconteceu um revival dos anos 80. Essa moda que nunca acaba - relembrar aureos tempos passados, com toques de nostalgia -, é sinal de que quem nasceu por lá, ou atravessou a era, chega a zona das rememórias: passou dos quarenta com louvor. 

Por fim, por mais um ano, a maior enrolação do mundo foi a tal da internet pública. Se alguém conseguiu acessar a Internet em um evento, ponto de ônibus ou “geladinho” do transporte público mande notícias. Nos vemos em 2025.


por Edson de França 

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sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

De foda-se ligado

 

Penso que uma ótima limpeza nas redes sociais começaria com um dê-se à "César ao que é de César", em outras palavras, ser radical e sanguinário para com os limitados e impostores, valorizando estritamente só aquele, aquela ou aquilo que o mereça realmente. 

Em miúdos, acatar só o que deixe um mínimo traço positivo para nosso consumo, deleite, up grade de conhecimento ou orientação sadia. Que não signifique tão somente uma mera, fatal e suicida perda de tempo.

Primeiramente, afirmo sem medo, porque a grande maioria da fauna da rede é composta por esnobes e prepotentes limitadíssimos em prosa, em verbo e em poesia de existência. Portanto, não devo seguir quem se promove ao extremo, sem me entregar o que ousa prometer. 

Por outro lado, os aleatórios, todos nós que exercemos a “cidadania” por meio da Internet, devemos ser olhados com suspeição. Fora nossos próximos de convívio e tete-a-tete, a quem sempre podemos encarar, aqueles outros sem berço, terço, glórias mínimas a contar, versões ou explicações críveis devem ser sumariamente ignorados.

Se a lição queridinha é "ligar o foda-se". Fodam todos. 

Em tempo. Acho que o espaço é livre e aberto à participação. Advogo que todos, indiscriminadamente, devem estar plugados. Mas consciência e coerência, infelizmente, não nasceu pra qualquer um. Os amostradinhos e sem noção, como em qualquer outra façanha, tentam ocupar a cena e encher o saco. Chatos só se entendem com pentelhos. Portanto. Desembarquem da minha genitália. 

Escrevo crônicas - assim como as escreveram Rubem Braga, Rachel de Queirós, Paulo Mendes Campos, Walter Galvão, Vinícius de Morais, Antônio Maria, Machado de Assis, Carlos Drumond de Andrade, Clarice Lispector, Bráulio Tavares, João do Rio, Nelson Rodrigues, Nathanael Alves, Fernando Sabino. 

Assim como ainda escrevem Gonzaga Rodrigues e Bráulio Tavares e tantos outros mais. Não me comparo, contudo, escrevo sem a mesma maestria, gênio, fôlego ou inspiração. 

Penitencio-me pela absoluta falta de talento. Só escrevo. O que não me serve para desfilar junto a esse batalhão. Junto a eles, nem ousar ostentar a farda de recruta. Muito menos ostentar alguma medalha por um ou outro sucesso extemporâneo.

Compus um parágrafo remetendo aos grandes da crônica nacional para dizer, em forma de conclusão: se qualquer um deles tivesse um blog, taquí um cronista/leitor que os seguiria. Sabe porque? Porque gosto do gênero, primeiramente. Segundo, pela altura de suas vozes, pelo alcance de seus pensamentos, pela genialidade de sua escrita, pela intromissão poética nas tranças aleatórias do cotidiano. Coisa, essa última, totalmente em desuso nestes tempos de cronistas vazios. 

Atravessamos um deserto de sequidão de ideias aproveitáveis e profusão de pensamentos e línguas aligeiradas. Todos detém o “lugar de fala” como numa feira livre, mas o produto apregoado não detém qualificativos para um consumo apreciável. Vivemos, isto sim, uma era de ocasionais tiktokers, cujo shape físico ou movimento involuntário da mente são mais que suficientes para startar likes. O que não é suficiente é o peso das ideias proferidas. O hábito de consumir esse mix de “mitagens”, nos acompanha desde longe.  

Aprendemos, desde os anos 70, a valorizar nulidades. Penso que os EUA começaram bem antes de nós com a “pedagogia aplicada” patrocinada pela TV. A massividade promovida pela inserção da telinha no cotidiano, facultou a construção de “mitos”. Mitos da novela, atores “exclusivamente” talhados para a TV, jornalistas queridinhos e super-stars da música ligeira: cardápio que fomos obrigados a engolir na fonte e consumi-los por meio de todas as mídias complementares. 

Claro que neste cenário haveria de surgir alguns “influencers do absurdo”, todos acometidos da “Síndrome do Idiota Confiante”. Sistematizada em 1999, a síndrome explicaria o comportamento de “pessoas que ignoram a própria ignorância e se sentem extremamente confiantes sobre si mesmas, ainda que sem motivos reais para isso carecem de autocrítica incapacidade de conhecer suas incompetências e incapacidade de reconhecer a competência de outras pessoas”.

Seu modus costuma intentar “invalidar seu interlocutor seja por meio de deboche, ofensas ou por respostas tão absurdas que "mitam. Quanto maior a falta de conhecimento, maior será a demonstração de confiança”.

São falsos profetas: sabem professar, mas não têm a mínima ideia sobre o que estão falando. Lamentavelmente, esses idiotas confiantes vem se proliferando de forma endêmica nas redes sociais: é o palco perfeito para ganhar um público incauto e acrítico que acaba acreditando no subgênero de conhecimento – público este que, antes das redes sociais, ficava restrito a meia dúzia de desavisados.


por Edson de França 



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Mentes “espertas”, escritores fantasmas

 

Engana-se quem pensa que a inteligência artificial é coisa recente. O que temos atualmente, como ideia de inteligência remota, é só um modelo mais aperfeiçoado, tecnologicamente avançado, robótico, virtual de um velho mecanismo. Modelo de “descanso da mente” e exploração de talentos invisíveis. Talentos até nomeáveis, mas funcionais, anônimos, sem rosto e sem alma.

O modelo de sistema preexistente, era muito mais rústico, envolvia corpos e sobretudo mentes. Mais uma vez, até nomeáveis, mas de preferência funcionais, anônimas e silenciosas e fustigadas remotamente. Não quero sair por aí acusando a toa, mas penso que boa parte da produção de autores, entre consagrados e meias-bocas, deve-se à “exploração” desse expediente da engenharia produtiva de construção de obras.

Lembro-me que uma das críticas mais contundentes ao “Xangô de Baker Street”, best seller do inesquecível multi-artista Jô Soares (1938 - 2022), era ser ele fruto direto do trabalho de uma falange de ghostwriters. Penso que a crítica, cujo um dos papéis é encorajar a leitura, contribuiu em muito para restrições à obra por parte dos leitores mais exigentes. Serviu, inclusive, para criar ilhas de suspeição à unânime aceitação do humorista.

Não encontro, no momento, qualquer outra acusação de “conspiração dos escritores fantasmas” de tal monta. Se as houvesse em profusão, seria movimento capaz de derrubar dos andores uma porrada de “laureados empreendedores” das artes literárias. De roldão, iriam autores autobiográficos, grandes personalidades, todos sendo expostos em suas “limitações” relativas à “escassez de tempo, inabilidade com as letras ou falta de paciência”.  

Ao contrário do que possa parecer “ghostwriter”, o escritor fantasma, é uma profissão reconhecida. Muitos se dão bem nela, sendo regiamente pagos pelas páginas, assim como pelo silêncio e, sobretudo, imprescindível anonimato e confidencialidade, que fazem parte do arranjo. O problema é que além das margens dessa formalidade cavalheira, há uma série de projetos sendo gestados à base dos trabalhos anônimos que, em certos casos, nem sabem para o que estão contribuindo. 

Na produção musical do passado, boa parte das contribuições artísticas, destacando-se as partidas de músicos e produtores, eram adequadamente nomeadas. Hoje, nem tanto. Até o nome dos autores é omitido. Ao contrário do cinema, por exemplo, onde a mínima participação merece um lugarzinho nos créditos, a produção artística não quer se notabilizar como rede e, sim, como uma façanha genial de um único nome.

Produtos como o jornalismo, por exemplo, são resultantes das redes de informação que, por sua vez, são baseadas em contribuições anônimas em prol de uma, também anônima, apresentação final. Pouca coisa no jornalismo ganha uma rubrica pessoal. Jornalismo não é literatura, se a entendermos enquanto trabalho com a “realidade” por meio do concurso de “redatores” especialmente qualificados para o feito.

Obras literárias de fôlego devem ser atribuídas ao gênio inventivo e laborioso de um artista. Não há dúvidas e questionamentos sobre esse ponto. As leio. Obras menores - sobretudo de cunho auto-elogiatório - guardo meus receios. Não há dúvida que para faze-los vir a luz, é necessário o concurso de várias mãos (ou mentes). Funcionais, anônimas, virtuais, remotas, mau pagas ou exploradas em seu voluntariado tácito. Dinheiro público, inclusive, muitas vezes financia diretamente esses arroubos geniais. Difícil é alguém se dispor a ler os capítulos da obra Frankenstein resultante. 


por Edson de França 


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Apreciações depreciativas in loco

  


Geralmente guardo boas lembranças dos lugares por que passei. Se os motivos para tal não se mostram tacitamente, tento construí-los. Viver é precioso e breve, conhecer lugares é enriquecedor. Como cantaria Ze Ramalho, antes de lavar as “pepitas de fogo”, na maleta leva-se as “figuras do mundo”. Lugares, mesmo os mais feinhos, preservam sítios, energia e ternas emoções humanas. Aliás, só estas últimas que podem desestabilizar um projeto de construção de boas e mais permanentes memórias afetivas. Só energias bem negativas podem manchar uma experiência imersiva nos ambientes. 

 Também, por não militar na crítica especializada em indicações turísticas, não me afino com o ato de produzir comentários para consumo massivo. Procuro restringir meus comentários ao minúsculo grupo de “pareceiros”. Sem poesia ou ingênua indignação nem crônicas eu dou ao deleite de produzir. Já fui a lugares maravilhosos e terríveis, em companhias de caráter variados, mas procurei sempre transcender e as avaliações aleatórias jamais foram muito longe do raio de ação de minha trupe.

Falando nisso, nunca fui a Coxixola. Acredito porém que ela deva se parecer com outras tantas cidades desses rincões anordestinados. Pequenas, humildes, de paisagens bucólicas e famélicas, sem muitos traços do “desenvolvimento” das metrópoles desengonçadas em meio a letreiros, cheiro de gasolina e arranha-céus da intolerância. Lugares aqueles aliás cuja paisagem e modos de vida emprestaram o sal e o suor para a inspiração de poetas e músicos que moldaram o gênero forró. Sei, graças ao grande irmão Google, que o município situa-se no Sertão do Cariri Ocidental, ostenta a posição 3 entre as menores cidades do estado e exibe orgulhosa o título de “pequena notável”. 


Irônico, um ser pertencente a uma banda “presumivelmente forrozeira” ir à rede (anti)social criticar o cenário encontrado naquele sítio. Fez, como é comum hoje em dia, mal uso do recurso, assim como faz dos palcos em que pisa. Desagradou ao paladar do moço que anda a angariar fama e recursos das prefeituras de lugares em situação similar. Se bem que o forró estilizado da banda não tem nada a ver com esses lugares. É urbanizado, limitado e enganoso estéticamente, feito um neon de casa de recurso periférica. 

Comentários depreciativos do tipo, se consumidos em pequenos círculos, tem vida curta: são engendrados, se materializam e saem de cena sem gerar lembranças ou causar maiores danos. No máximo alguns risinhos, entre aderentes e reprovativos dos circunstantes. Para uma platéia indistinta e ávida por “preciosidades ridículas”, ela serve como gracejo em grande escala, cliques, afagos no ego e mais alguns followers. Mas, por pela dimensão da publicidade, pode acabar mobilizando o tribunal da rede, sob a acusação de exposição pública, xenofobia, intolerância, racismo e outras indelicadezas e delitos mais. Para grandes façanhas, enormes reprovações. 

Nesses casos resta aos envolvidos virem a público pedir desculpas. O fato porém é que o vídeo do “mau feito” repercute bem mais que as “mal explicadas”. O fato em si passa a ser réplicas, ganhando características quase indeléveis. A desculpa, não. Será vista como um ato de fraqueza e relegada ao patamar das poucas visualizações. Alguns muitos nem se darão ao trabalho de ver, enquanto a simples menção do tal vídeo provocador numa conversa dispensa a visualização e ganha uma repercussão imparável. 

Há gente que foi a Paris e não viu nem curtiu a tal “cidade luz”. Alguns foram a Veneza e só trouxeram nas retinas a sujeira dos canais e, provavelmente, o cheiro. Muitos passarão por Coxixola e lembrarão para sempre da placa de “Coxixola existe. É aqui.” Comentários a respeito de ratos de esgoto nas ruas da capital francesa não diminuíram o mito ou os atrativos dela. Veneza, nem sendo engolida pelo mar, deixará de exalar o ar romântico que a notabilizou. Quanto a Coxixola, a pobre, continuará vivendo sua rotina, despertando interesses simplistas e passando ao largo do comentário que diz mais do erro de cálculo e apreciação da pessoa que o proferiu que daquele núcleo morada de orgulhosos munícipes. 


por Edson de França 


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Situação análoga à escravidão


A
forte expressão é utilizada pela mídia cada vez que as autoridades de fiscalização do trabalho desmantelam uma senzala contemporânea. Em pleno século 21, eras a distância do chamado período escravocrata, elas (r)existem como uma chaga social. Para a imprensa a expressão é apenas um clichê apelativo; para aqueles com alguma sensibilidade, trata-se de um verdadeiro escárnio diante dos avanços da civilização. Estes mesmos que incluem entre suas principais bases a democracia, o respeito irrestrito aos direitos humanos e o combate às vilanias.

A concepção da senzala “moderna” se utiliza de uma estratégia que une pobreza e necessidade econômica, submissão e servidão com vistas à exploração do trabalho. Quem não leu Karl Marx ou se empanturre do medo insano do “fantasma do comunismo", talvez jamais vá entender as categorias presentes na construção da riqueza capitalista, na qual o “trabalho”, a força do braço, é elemento fundamental. Por isso mesmo ser artigo tão cobiçado por espertalhões e exploradores inumanos.

Por esse prisma quem compra a “força de trabalho” em contrato, leva além do corpo, a saúde, os ânimos, a administração do tempo e dos destinos do infeliz “vendedor”. Ademais, para o processo ser lucrativo, quanto maior disponibilidade dela no mercado e quanto menos depender de investimentos mais compensatória é. Mão de obra barata é fundamental para a saúde do sistema. Se beirar o “custo zero” e o “animal de força” ficar “devendo à casa”, o ouro dos dentes do algoz chegam a reluzir.

A estratégia escravista moderna, no caso explícito das senzalas desmanteladas, é bem assim. Sabendo da penúria porque passam exércitos de homens por esses brasis a fora, eles saem à caça. Os muitos que alimentam o “sonho miúdo” de ter um emprego, ganhar algum para matar a fome, sentir-se útil e, sobretudo, cumprir a missão de dignidade cristã são os alvos. Uma vez seduzidos, são retirados de seu ambiente natural sob a promessa de trabalho e remuneração compatível com seus esforços e esperanças.  

Retirados de seu habitat, os voluntários começam a sentir na pele literalmente a situação de degredo. O trabalho escravo na contemporaneidade se revela como trabalho forçado, jornadas acachapantes, condições degradantes de vida e moradia e, finalmente, a servidão por dívidas. Esse caso de limitação de liberdade é o que mais, escandalosamente, a equipara a escravidão clássica. 

Os casos das senzalas que mancham os processos produtivos de alguns ramos, sobretudo do chamado agribusiness, são escandalosos quando noticiados. Amiúde, utilizam-se de certa sutileza pro ardil de constranger economicamente e, consequentemente, limitar a liberdade de locomoção do trabalhador. Falamos até aqui de similares das clássicas “senzalas”, não é? E você aí, já vislumbrou os condicionantes, ou cordéis, que te confinam nas senzalas a céu aberto, iludido do desfrute dessa tal liberdade?

Liberdade é um termo controverso. Quem é realmente livre diante de qualquer sistema econômico? No sistema do capital é fato que quanto mais pobre for a alma mais condicionada estará à servidão. Quanto mais tentado a “pertencer” ao mundo, por meio do abuso da sede por bens de consumo, mais escravo se torna. Para simples aquisição de alguns bens denotatórios de “pertencimento” à sociedade vende-se a alma, a consciência e dá-se docilmente os pulsos aos grilhões. A cada propaganda de TV com ofertas e vantagens em empréstimos ou assédio de financeiras a funcionários públicos sinto a presença sutil da sujeição humana. Grilhões palpáveis prendem as mãos, os imateriais amarram e distorcem a mente.


por Edson França

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terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Que “cachorro” é esse?

 

          Popularmente costuma-se atribuir a palavra cachorro àquela pessoa  que faz lambança. Foi infiel, faltou a um compromisso, cometeu alguma desatenção, foi indelicado com as “migas”, “migos” ou parentes e lá vem o adjetivo pouco elogioso de “cachorro”, no sentido de “cão dos infernos” mesmo. 

Enfim, “cachorro” quer dizer aquele/a que fez “cachorrada”, ou seja, espalhou sujeira em atitude similar a dos porcos, aqueles que se refestelam na lama e parecem sair felizes. Pelo lado humano, atitudes de arrogância, soberba e desrespeito ao próximo também entram nessa categoria.

Vivemos atualmente, contudo,  a idade dos pets. Ou, melhor, a era da ascensão de animais ao nível da parentela, com lugar harmoniosamente arranjado na árvore genealógica das famílias. Nunca a civilização viveu tamanha paixão pela companhia animal. De todas as espécies, vale ressaltar. 

Importaram até este denominativo para redesignar os antigos bichos de casa. Com a patente de pet, incluí lagartixas e simpáticas osgas que conservo em minha jurisdição na categoria “estimação”, por afinidade e tacitamente.

Dentre os pets, contudo, havia de ser o cachorro (o bicho, muito além do adjetivo) o mais preferido. Nunca se criou e se cobriu o animal de tantos cuidados como agora. Portanto, desde logo, utilizar a palavra cachorro significa agredir à constituição familiar.  Classificar qualquer sujeira como “coisa de cachorro”é quase desrespeitar um membro das famílias, um ente bem próximo. 

Por essa via, os dogs atualmente encaram um processo de assepsia corporal tão rigoroso que disputam, em pé de superioridade até, com os bebês da espécie humana. Análise de pedigree, banho, tosa, estética, manicure, plano de saúde, creches e dog walkers (passeadores) são alguns dos mimos com que se acariciam a pele, o organismo e o ego dos dogs. 

Há cães andando por aí com um ar de superioridade e grau de entojo ímpares para seus pró


prios pares e humanos menos aquinhoados.  

Para o ambiente privado, os lares, os pets são adestrados a se privarem das necessidades básicas de qualquer animal. Há um mercado de provisão a esses cuidados. Tapetinhos, terrinhas especiais e tais servem para condicioná-los a manter a limpeza interna das residências. Ironicamente, o mesmo comportamento não é replicado, contudo, quando os pets são levados aos espaços de convivência, onde seus prestimosos tutores os levam a passear. 

Pelas convenções de urbanidade não escritas, os donos deveriam ser responsáveis imediatos pelas sujidades que seus animais fazem nas calçadas e praças. Mas não é exatamente assim que ocorre normalmente. 

O homem supostamente atingiu um estágio mental superior ao desenvolver atenção, cuidar e ser solidário aos de quatro patas. N motivos explicam essa tendência. Aplacar os efeitos da solidão, dos estresses da convivência humana, institucional e das depressões, por exemplo. Contudo, na maioria das vezes, esse mesmo HOMEM faz questão de ignorar o sentido da coletividade e, mais, da solidariedade, quanto a questão limpeza em vias públicas. Flagrante desrespeito aos de sua própria espécie. 

Não é difícil encontrar, espalhados por calçadas e passeios públicos, o fruto digestivo dos pets. É da natureza dos cães evacuarem livres, trata-se de um apelo insustentável e inadiável. Por outro lado, apanhar o produto do chão, para manter a limpeza pública e contribuir para a saúde e integridade dos pés e calçados dos passantes, é tarefa de tutor ou pai de pet. Não é fácil ao caminhante andar ziguezagueando entre fezes.

O cachorro definitivamente não tem culpa. É mais uma vítima dentro desse processo de convivência. No final, ultra-asséptico animal acaba sujando mais que os legítimos donos da rua, os vira latas, por pura e inconsequente negligência de seus donos. 

A contribuição mínima do cidadão para a limpeza da cidade seria evitar lançar resíduos nas vias. Não adianta pleitear cidades limpas e glamourizar locais onde tal ocorre, se não cuidar do seu próprio quintal. E nem tudo é dever do poder público. Cada cidadão tem que usar do mínimo de consciência para fazer sua parte. Praças, por exemplo, são recintos onde crianças brincam e se divertem, muitas vezes de pés desnudos. Há lugar para pet nesses espaços, claro, mas não para suas fezes.

Em minha rua, em uma pracinha defronte a endereço de alto padrão, o desleixo atingiu o ápice: por lá, agora a decoração horizontal de fezes ocasional, um poste sustém, por dias seguidos, qual árvore natalina, uma porção de saquinhos com o conteúdo fétido da ação intestinal dos pets é fruto da preocupação parcial do humano com o lixo que produz

Ficam lá à espera de uma mão anônima - um abnegado e incomodado vizinho ou um agente público de limpeza, a guisa de anônimo elemental  - que venha dar destinação final aos dejetos. O homem evolui decerto, seus comportamentos sociais contudo não evoluem. Então, quem é o cachorro nessa história, afinal?


por Edson de França  


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Rostos memorizáveis


Em tempos relativamente antigos, por ali pelos 70’s, nossa cultura midiática foi pródiga a produzir rostos marcantes. Tal qual ocorria com os “caras” do futebol que ilustravam figurinhas colecionáveis, os ídolos do cast televisivo - predominantemente da Globo - também contribuíam com suas efígies para álbuns coloridos. Deleite e disputa para os fãs mais sectários. 

Acredito que os álbuns, ao lado das revistas de fofocas, vendiam como água. Pelas periferias, até quem não tinha televisão em casa, era tomado pela febre de consumo de novelas, galãs e galoas. na tela ou nas figurinhas e posters. Os primórdios das telenovelas - em pleno período de popularização da TV - foi impulsionado por esses pequenos artifícios que faziam parte da construção das “celebridades” de então, contribuindo para que uns poucos caíssem nas graças do povo.

Eram rostos memorizáveis e a estratégia marketeira servia para alavancar carreiras e propagar as produções em que os artistas estivessem atuando. Garantia de sucesso imediato e longevidade na carreira. Coisas que, se foram fundamentais à época, atualmente revelam-se totalmente ultrapassadas. Nostálgicas e estranhas, por assim dizer, às sensibilidades de recepção e ao engajamento midiático modernos.

Naqueles tempos em que, como diria Gilberto Gil, “o mundo era pequeno porque a terra era grande”, parecia haver apenas uma meia dúzia de “artistas” de primeira linha circulando por aí. Aqueles, claro, cujas imagens mereciam perpetuar-se na memória afetiva dos telespectadores. Uma geração cujos remanescentes não querem hoje saber além dos seus 80 e poucos anos. Os outros, eternos aspirantes ao estrelato, passavam ao largo desse circuito privilegiadíssimo.

Tudo aquilo porém amarelou, virou scena antiqua. Virou-se a página e uma nova história passou a ser contada. Um tempo de fisionomias fugazes, personalidades líquidas e cultura fast food ultraprocessada e insípida se insurgiu.  Os álbuns de artistas de outrora são, hoje, relíquias relativas a uma época datada da cultura pop que devem, se muito, valer alguns centavos numa lona de páginas desgastadas em uma calçadinha qualquer. Valem menos que uma coleção amarelada da Digest. 

Na vitrine atual, excelentes atores e artistas em geral dividem o caldeirão da onipresença pública com os bons, os oportunistas e os influencers, além, claro, de anônimos a dar com o pau e toda uma gama de dublês de tudo. Muita gente atua, canta, dança, sapateia, faz comédia, vende simpatia e jogos de azar e, ainda, administra as aparições diárias nas redes sociais. Gente demais. Num mercado de exposições rápidas, para consumo e descarte imediato, não há mais a imperiosidade de uma memória afetiva para rostos, vozes e talentos referenciais. Nada mesmo que mereça servir à composição de um álbum de figurinhas.

“Um dia, todos terão direito a 15 minutos de fama”. O comentário do artista americano Andy Warhol, ventilado ainda nos anos 60, nunca foi tão cabível. Soa, atualmente, como uma profecia realizada. São incontáveis os rostos em disputa pelos tais minutinhos. Arrisco até a dizer que esse tempo poderia ser recalculado. Não cabem mais 15 minutos para cada um/a aspirante a foto da capa. Quem quiser expor seus talentos, não importa a magnitude, no mundo artístico prepare-se para enfrentar a volubilidade do mercado.  

Onde um influencer sem caráter de base ou talento adicional qualquer, pode auferir, em pouco tempo, mais reais que um artista real poderia adquirir uma carreira regular e minimamente marcante. A ponto de poder ilustrar as páginas de um álbum de recordações.

Em tempos de relativa facilidade de acesso à exposição pública, o potencial colecionador de “figurinhas carimbadas” de ídolos ficou órfão. Com tanta cara, sempre nova, a disputar espaço em sua mente e coração, não há espaço de armazenamento suficiente para empilhá-los, nem altar, nem velas para alimentar qualquer culto. Com tanta demanda, é urgente consumir e descartar, de preferência com a superficialidade que move as paixões voláteis. 


por Edson de França 


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