quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Chá de “puxadinho"

           
 A composição urbana de nossas cidades, em sua porção mais suburbana, é pra lá de caótica. Ela, flagrantemente, acaba revelando a face mais dolorosa de nossa condição socioeconômica. Enquanto nas regiões mais centrais e nobres das urbes, a tendência é que os aglomerados humanos sigam uma lógica de organização, nos arrabaldes impera a informalidade e o aproveitamento irracional dos espaços exíguos. Por lá, o “puxadinho” é quase uma instituição, uma particularidade típica dos “morros mal vestidos”.
            Para quem não sabe do que fala o cronista é preciso recorrer à sociologia e à antropologia dos andarilhos urbanos – os flaneurs -  para captar em essência o fenômeno. “Puxadinho” é, a rigor, a saída encontrada pelos abandonados da sorte para abrigar uma grande quantidade de pessoas em certo lugar. Sabendo da sentimentalidade humana natural dos pobres, não é difícil intuir que, destituídos dos bens materiais que desumanizam e geram o desapego, só lhes resta manter os parentes, aderentes e agregados próximos. É uma espécie de solidariedade, de simbiose (às vezes, com veias de parasitismo, mas deixemos o caso para outra crônica), da celebração ritualística dos laços afetivos.
            O “puxadinho” é filho da necessidade. Ela resolve, informalmente, nosso déficit habitacional. É a alternativa dos pobres de toda ordem para organizar e abrigar seus rebentos primais e, consequentemente, os nascituros desses rebentos. Quando me referi ao flaneur lá no alto, é que foi flanando, em um período de atividades inúteis, como recenseador, que aportei em alguns “cortiços” suburbanamente formados a base de “puxadinhos”. Um puxadinho (ou puxadinha) sempre acaba puxando outro até virar uma série, um acampamento sujeito à miséria endêmica e às atividades mais promíscuas.
            Em um terreno de, em média, de 300m², localizado dentro do triângulo formado pela trinca da Beira Molhada, Ninho da Perua e Bola na Rede,  seu João Apolinário ocupava a casa da frente. Palmas e “ô de casa” não foram precisos. Seu João ocupava uma cadeira de balanço, as pernas rugosas, pés rachados e meio sujos descansavam displicentemente dependurados, feito esculturas de tocos de arvores decrépitas. A corrulepe jazia inútil aos pés do homem de 55 com aparência de, pelo menos, dez anos a mais.
Recebeu-me com a formalidade dos humildes. Comuniquei-lhe o nome e a missão e ele se prontificou a prestar as informações que eu necessitava.  Mandou “puxar o banco” espécie de escultura rudimentar, esconcha, produzida pelas astúcias de um aprendiz de marceneiro. Ofereceu café e se dispôs a responder às perguntas do questionário básico: nome, sobrenome, cônjuge, descendentes, moradores da unidade e coisas do tipo. Falou-me da composição familiar da casa “grande”. Mulher, filhos, netos, sobrinhos de longe que em sua casa encontravam abrigo. Entre um dado e outro, histórias da vida, experiências vividas e comentários genéricos sobre os mais variados assuntos.
Antes de a entrevista chegar ao fim, havia uma pergunta que interrogava ao líder da casa se o terreno era ocupado por outra habitação. Aí foi que descobri a magnitude do cortiço que ocupava aquela área. Pela lateral direita da casa principal, um corredor com musgos na parede e lodo no solo levava a outro mundo, um quadro pintado com cores berrantes e lúgubres, sob as astúcias literárias de Aloísio Azevedo e uma atmosfera musical múltipla e perturbadora.
Um casario mal-ajambrado, estacas fincadas por todo canto, arame farpado se confundindo com fiação elétrica improvisada de uma casa a outra, varal de roupa, roupas estendidas, uma profusão de meninos de todas as idades e mulheres, placas de fossa pontuando o terreno... Só ali consegui recensear cerca de 45 almas. Antes de me despedir, missão cumprida, ainda recebi um convite para voltar no final de semana pra “tomar uma”, na inauguração de mais um puxadinho. Era uma recepção ordinária para um pródigo desgarrado que estava voltando do sul. A “puxadinha” já estava em pé e o rebento desgarrado também acamparia no terreno do pai até deus mandar bom tempo.

por Edson de França        
                 

               
                               
                 
               














 

terça-feira, 27 de outubro de 2015

O legal (muitas vezes) é imoral

Participei dia desses, do lançamento de mais um programa de incentivo ao pequeno empreendedorismo. Entre as metas do programa constavam, além do incentivo financeiro óbvio, a disposição em regularizar os pequenos comerciantes, ou seja, tirá-los da total informalidade. O convencimento dos mesmos passava, claro, pelo aceno da bandeira legalista que promete, entre outras coisas, o acesso aos benefícios da Previdência, a habilitação jurídica para a concorrência nas licitações públicas e a entrada no rol dos cidadãos com direito a créditos bancários. São douradas as promessas para quem se dispor a abandonar o mercado informal.
Essa é uma parte da história contada pelos gestores. A isca. Não podemos, de fato, descartar os benefícios e o esforço legítimo e real, para levar aos simples comerciantes a condição mínima de legalidade. O que falta dizer, entretanto, é que todo esse esforço legalista, se tem algo de benemérito, tem também uma contrapartida: atuar sob as condições legais é render-se à vigilância estatal e, sobretudo, ter maiores compromissos com a receita pública, através de impostos e taxações. Não que isso contenha algo de imoral. Não! O problema vem, sobretudo, da carga de exigências, afora as garras dos rapinismos e burocracia, com que a máquina estatal acossa os incautos.
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Os ônibus urbanos das grandes cidades ostentam outdoors onde se lê: “Transporte ilegal de passageiros é crime”. O aviso alerta para os perigos advindos do uso disseminado, brasis a fora, dos tais transportes alternativos. Tudo certo, tudo bem, tudo lindo, tudo... legal. O que se esquece de dizer, no entanto, é que a condição em que os legais trafegam beiram as piores das alternatividades.
Basta visitar uma cidade qualquer de uma região metropolitana, para sentir o real peso da legalidade. Não é nada legal quarar em um ponto de ônibus sem cobertura durante, no mínimo, quarenta minutos. Sei que, neste caso, põe-se em cheque a reponsabilidade do poder público, mas esse é mais um sinal do compromisso do estado brasileiro com as condições legais.
Quando surge o busão, a entidade denominada de cidadão – no caso, sem qualificativo na escala social como um time sem série – tem um susto. Uma carcaça enferrujada que se arrasta em sua direção, pensa e de pneus meio carecas. Quando adentra, outra amarga surpresa.”Lata sardinha” seria mais confortável. São pingentes humanos pendurados nos estribos, assentos largando de bancos, bancos largando do chão, motorista esbaforido, estressado, mal pago e, entrementes, senhor de habilidades discutíveis.
Ora, no momento civilizatório, onde a grande maioria das pessoas cumpre horário e para isso necessita, decisivamente, de uma forma de deslocamento rápida e precisa, nossos sistemas públicos deixam a desejar. Pergunta-se: como aderir a legalidade, se o sistema não atende às necessidades e, em muitos casos, empatam em termos de qualidade e capricho com os alternativos, os informais e os “fora-da-lei”.
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Acho que o leitor mais atento há de perguntar-se “o que essas duas histórias têm em comum?” A rigor, responderia o cronista, trata-se de um desabafo que muitos gostariam de expressar, creio. Viver no Brasil, em alguns momentos, é ser convidado a ser legal, a participar do banquete da legalidade, usufruir de todos os direitos, benefícios e segurança que ela poderia propiciar. No entanto, nada é mais falho que as condições legais postas por alguns dos nossos serviços básicos. Nesse quesito, ainda estamos em construção, carregando pedras e a argamassa para garantir a segurança do muro.

por Edson  de França





 
     


             

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Recortes animados da memória

            - Pêdo, tu vai querê pão de mi?
A voz miúda de D. Joana Graú ganhava momento de agudíssima estridência, quando perguntava a Seu Pedro, opinião sobre o cardápio da janta. Era o momento em que ela ocupava a boca da cena bucólica de fim de tarde, assumia a fala. Brilhava corpo e voz, com autoridade e a segurança de sua tímida desenvoltura.
O cenário, a seu modo, era belíssimo.
Entre a casa principal e o apêndice que servia de moradia ao casal, nos fundos do terreno, se distribuíam plantas frutíferas – lembro-me de uma goiabeira e de uma pinheira que ali moravam -, arbustos medicamentosos – xaxambá, hortelã, capim santo, cidreira... -, flores nobres e daninhas – uma roseira soberana e rosetas sem-vergonhas de malmequer (comida para a criação de preás e lebres). No terreno baldio, ao lado, bananeiras, mangueiras e coqueiros contribuíam com sua parte para a montagem de um cenário latino americano como uma alegoria, uma referencia suburbana aos labirintos da alma latino-americana, tão bem descritos por Gabriel Garcia Marquez.
            Havia um caminho entre as duas moradias.
Uma vereda levava da cozinha da casa grande ao quichó do casal; no percurso, graças a providência da base alta e laje de uma fossa, formava uma espécie de assento coletivo que servia de banco para as histórias de seu Pedro com os piás, a conversa de d. Zefa, a locatária, com d. Graú, e a cachaça de seu João com alguns amigos de sina. Era a um tempo confessionário das mulheres, festança para os homens grandes, encantamento para as crianças e, algumas vezes, nos momentos da total  redução da energia telúrica vital, de abandono e ensimesmamento. 
Havia um clima de suburbana e festiva afetividade.
 Dissemos era tarde e, naquelas tardes, havia uma confluência feliz de situações. Além da preparação da janta que ocupava as mulheres e moças das casas, os meninos haviam chegado da escola, os patriarcas do trabalho. Os animais se recolhiam; galinhas nos poleiros naturais e improvisados nos galhos das fruteiras, a ração dos bichos pequenos já tinha sido servida. Os humanos faziam, então, a prévia festiva do descanso noturno e aproveitavam essa hora para descarregar as últimas energias gastas durante o dia. Cansaço, frustações, preocupações e esperanças...
- Pêdo, tu qué pão de mi?
 Jamais havia ouvido falar em “pão de mi” (traduzindo: “pão de milho, na nossa esnobe mania de dar sentido ao falar popularesco). Pão de milho era o velho e bom cuscuz nordestino, à base de farinha de milho, água e água. D. Joana Graú, com seu linguajar caiçara e sua sabujice de esposa dedicada, representava a simplicidade e a naturalidade da vida dos arrabaldes. Pedaço de universo particular, recorte bucólico da vida onde íamos, meninos, pari passu, costurando nossas experiências sensoriais de  mundo.      

por Edson de França    


sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Os bem-amados

Não sei em que escola de jornalismo eles se formaram. Imagino apenas que, a rigor, não passaram por escola alguma e somam, para o exercício do oficio, algum conhecimento técnico da comunicação “interpessoal” mediatizada, desconhecimento geral das minudências relativas ao ser humano e sua organização histórico-social e, ademais, uma militância política unicamente movida por interesses pessoais e, na maioria das vezes, com uma leve essência de estelionato midiático.
Tracei, grosseiramente, um retrato dantesco do espécime que mais prolifera em nosso jornalismo atualmente. Em alguns meios, sobretudo super  populares como o rádio, são eles que nivelam por baixo a qualidade das emissões. Com seu comportamento, a um tempo intencional e oportunista, contribuem para a desinformação geral e, sobretudo, para a formação de opiniões gerais, necessariamente descontextualizadas, retrógadas, conservadoras e de baixa análise sócio-estrutural e de conjuntura.   
Na real, creio que eles sempre existiram, afinal, na história da comunicação e do jornalismo especificamente, quem tem um olho “crítico” e uma voz altissonante sempre se passou por aglutinador dos interesses maiores da maioria sem voz. Uma subespécie de paladinos da “razão” pública. Em alguns momentos, seja ocupando o centro das atenções, seja escapando entre os guetos infectos da desimportância, os “comunicadores” de voz possante e ideias enviesadas sempre estiveram presentes na cena social.
O jornalismo contemporâneo, do impresso ao televisivo, foi concebido para ser produzido por grupos empresariais que pudessem manter, minimamente, equipes altamente especializadas, dedicadas à composição do produto noticia. Equipes que entendessem o produto em todas as suas nuanças: técnica, ética, estética e comercial. E, também, pelo significado e importância político-social de sua emissão.
Criou-se, em torno da notícia, um campo intelectual amplo que discutia da captação e da formatação ao plano gerencial e aos limites da penetração social dos conteúdos. Essa é uma função político-empresarial com certeza, pois liga as estratégias do negócio comunicação às bases de negociação e influencia que a noticia pode adquirir. Vem dessa base estruturada, especializada, sutilmente política e politizante, a expressão do jornalismo como um quarto poder.
Um quarto poder exercido não pelo grito banal, mas pela coerência dos argumentos, pela seriedade na apuração, pela coragem de abrir caixas-pretas e desafiar os autoritarismos de toda ordem, pela análise diuturna e balizada da conjuntura política, da noção exata dos danos irreparáveis de uma emissão irresponsável. Talvez seja este rosário uma quimera e apareça um dedo pronto a apontar a irrealidade dessas premissas e a afirmar que a comunicação pública sempre foi e será um lamaçal pronto a expirar perdigotos por todos os lados e contaminar o tecido social.
Talvez, o impacto das “notícias-mentira”, sobrepujem os idealismos, acostumem corações e mentes ao conformismo das palavras esvaziadas de sentidos mais profundos e enterrem de vez a ideia de um jornalismo mais sério e comprometido com a emancipação do homem e da coletividade. É esse, enfim, o caminho que tomamos com a falência da organização da produção jornalística, o individualismo laboral dos âncoras histriônicos das rádios e tvs populares e, finalmente, com a infestação do pior da “política” no editorial vigente.
Limitada, interesseira, controversa, hedionda, alarmista são apenas alguns dos adjetivos que se pode colar, qual decalque na produção jornalística de maior ibope no atual momento. É ela, profusa, atabalhoada, porém, precisamente, que orienta os comportamentos mais torpes por parte dos profissionais e promove lacunas contextuais nos conteúdos disseminados por aí. Melhor, contribui para criar maiores contingentes de gente desinformada e, pior, conformada e remotamente guiada.
por Edson de França
 
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terça-feira, 18 de agosto de 2015

Da festa ao fosso

Convenhamos, caríssimos companheiros do front jornalístico, que nosso dia a dia é ponteado por pautas, motivos e situações intocáveis. Inalcançáveis, até. Isso devido, com certeza, ao nosso limitado domínio das artes de perscrutar, ao moderado estilo de inquirir, aos nossos meios operacionais e acessos disponíveis e, é claro, às temíveis conjunturas politicas, dadas a conveniências várias e censuras particulares.
Quem está na arena, seja como mero registrador de eventos ou agente inteligente e provocador, seja como mero espectador ou analista privilegiado da mídia, tem que direcionar o periscópio e magnetizar as antenas da crítica para perceber-se, também, dentro dessa condição paralisante do bom exercício da informação clara e precisa.
Há situações e temas espinhosos, caixas-pretas que não podemos abrir, solos de mansardas e palacetes que queimam nossos pés, truculência e maneirismos de figuras de proa do cenário político, econômico e até da militância dita social. Além, é claro, das tesouras que limitam nossas asas e da subversão da mente que contribui com nossa idiotização. Primeiro individual, depois, a partir da propagação do nosso trabalho, coletiva e contagiosa.
Dificilmente, alguma pauta de real e grandioso interesse coletivo ganha as cores e a profundidade ideais para parâmetros básicos de informação que sirvam como ganho real no nível de conhecimento do público.
Discordo do profeta Raul quando insinuava ser o jornal um monte de mentiras. Mas isso é apenas a defesa apaixonada do trabalho de inúmeros colegas que ralam incansavelmente para produzir jornalismo.
Por outro lado, não posso negligenciar a alfinetada sagaz do maluco beleza. O jornalismo pode não ser um calhamaço de mentiras, mas não passa de um produto enlatado para consumo. Pense em enlatado como veneno para saúde, para o corpo ou para a mente conforme o caso.
O enlatado, geralmente, promete gostosuras, praticidade, com garantias de essência imaculada. O jornalismo promete verdade, imparcialidade, objetividade e, mais recentemente, imediatismo.
Do enlatado, suprimem-se (quando se adicionam os conservantes) a essência vital dos alimentos aprisionados. Por extensão, caem os sabores naturais (por vezes, substituídos por artificialismos). É preciso garantir vida longa ao produto como forma de garantir muitos dias de vida na prateleira dos peg-pagues do mundo.
No jornalismo, o caminho da fonte ao leitor, expectador ou ouvinte é floresta de lobos vorazes e maquiavélicos.
As matérias de transito fácil, que envolvem interesses e narcóticos massivos, são o oba-oba da cobertura jornalística. Abrem-se janelas, escancaram-se portas, estendem-se os tapetes vermelhos para profissionais de ponta e pixotes amadores. Todos tem acesso a tudo.
É a hora do oba-oba da notícia.
O interesse é, claro, massificar a informação para que todos saibam todos os detalhes superficiais da ação e atendam ao chamado do berrante. Saber só, não. É preciso acreditar, multiplicar, transferir, replicar até perder de vista.
Pergunte, por exemplo, em nome da transparência, que se ponha luz sobre os contratos das estrelas de festas populares. Pauta fácil para profissionais e holofotes de qualquer rincão perdido pelos cafundós dessa república. Acho, com certo escarnio, que vão transpor o vermelho do tapete para teu corpo amarrotado.
Quando algum golpe está em caminho, naqueles casos em que a mídia é conivente (quando não mentora), abrem-se escaninhos ocultos; números e estatísticas viram café da manhã, almoço e jantar; perdas e ganhos são sopesados diariamente.
Cria-se um clima de terror ou de derrocada anunciada. Algo assim como a invasão imaginária de homenzinhos verdes no planeta. Nesses momentos, o ilustre inquiridor, sempre se achará um arauto da verdade, da veracidade, da moralidade e outros ades a mais. É bom pensar nisso.
por Edson de França  


 


   

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Em volta da viola

Parece mágica. Círculo de amigos, zumzum de falas em todos os tons e timbres possíveis, exortações e ânimos exaltados, doses e doses, ampolas e ampolas de cerva, piadinhas amiúde, sarros com as caras deste, daquele ou daquela, palmas ou risos para uma relembrança qualquer que aflora.  De repente, alguém se lembra de requerer o “auxilio luxuoso” de uma viola... Ela chega tímida, muda, meio desafinada, rouca. Vai infiltrando-se e recebendo apalpadelas em seu corpo esguio. Procura-se alguém que, mesmo parcamente, atire-se ao misterioso universo de cordas e sons.
A subordinada ave canora voeja a procura de um ser que harmoniosamente acaricie suas cordas vocais expostas. Passa de mão em mão. Mãos delicadas, mãos rudes, desajeitadas manoplas. Se tivessem ouvidos, chorariam ao ouvir comentários estabanados. “O que me atrapalha são as cordas”. “Tenho uma frustração: não aprendi tocar”. Tenho um bom ouvido, sei até afinar, mas tocar, parceiro, é outra coisa”. “Tu aí, metido, tu gosta de tocar? Porque não aprende?”. “Se tiver quem toque, eu canto!!!”. Alguém ameaça fazê-la de atabaque.
A viola declina, com certa arrogância, de assédios tão “tentadores”. Almeja tão somente chegar às mãos de quem a submeta aos limites de sua destinação existencial. Que a toque, que extraia do seu ventre algum som minimamente harmônico. Um herói, antes tarde que nunca, toma posse do pinho esculturado em formato feminino. O dispõe sensualmente entre as pernas e entre os arrulhos da companhia passa a tentar uma mínima afinação.
Parece magia. Aos poucos a caótica reunião passa a ter um motivo, um alvo de atenção, um antídoto anti-dispersão. O barulho diminui, os ouvidos parecem aguçados, as mentes a buscar melodias perdidas como se a simples presença da ilustre viola pudesse fazê-los recordar (e recordar é viver, já dizia uma velha canção perdida no tempo) os maviosos arranjos de suas afetivas canções.
Caso haja um prodigo virtuose entre os camaradas, a tertúlia tenderá a execução precisa de clássicos. Como geralmente um desses não está ao alcance fácil das rodas boêmias contemporâneas, a rodada de hits será composta de musica popularesca e altissonantes vozerios, enganiçados e precários. Mas tudo estará certo. Haverá magica no ar, afinal ninguém quer mais que a companhia da viola.
Quando o misterioso universo das madeiras, cordas e trastes passa a ser penetrado, bolinado, descoberto, exposto, mesmo que por mãos pouco habilidosas e conhecimentos musicais superficiais, existirá magia no ar. Ouvidos, também pouco afeitos aos conhecimentos estéticos musicais mais intensos, nada se importarão com a intromissão.
Melhor. O mistério dos dedos que atiçam cordas e despertam sonoridades atrai. São bruxedos, mistérios, mandingas, artes de prestímanos para iludir ou encantar plateias.  As melodias que daquele inusitado encontro saem despertam sentimentalidades adormecidas. As proximidades entre os elementos – instante, instrumento e artífice – perfazem o quadro mágico. A proximidade pessoal de estar dentro da mágica faz o circunstante ativo no espaço da magia.
Parecerá tudo então mágico como um Choro Bandido (Edu Lobo/Chico Buarque). “Mesmo que os cantores sejam falsos como eu/ Serão bonitas, não importa/ São bonitas as canções/ Mesmo miseráveis os poetas/ Os seus versos serão bons...”

por Edson de França

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Superior, em quê¿

Os cursos de terceiro grau no Brasil representam, medianamente, a realização para muitos concidadãos. Todo, mais todo mundo mesmo, que conseguiu passar em um vestibular, seja para universidade top ou inqualificável, comemorou às pampas.
Primeiro por ter galgado o patamar máximo da educação média, depois pelas perspectivas de aprendizado profissional, sucesso, ascensão sócio-econômica e etc. O coquetel básico para mentes medianas. Alguns semestres cursados depois, as opiniões sobre os superiores se dividem.
Uma enquete rápida com o alunado certamente colherá indícios de frustração, críticas bem adolescentes pelo teor superficial e, nos casos mais graves, flagrantes inadequações pessoais às rotinas do ensino universitário.
Rigorosamente, o recém ingresso nos cursos tem apenas um semestre para maquinar e descobrir, per si, qual é a do ensino dito superior. Nesse tempo, safamente, o indivíduo tem que sacar as rotinas, o nível de estudo que ali se pratica, as relações que se estabelecem entre docentes e discentes, acostumar-se ao “desregramento produtivo”, ao disciplinamento de sua agenda de estudo e vida social, às condições postas de dialogicidade, ao estabelecimento de parcerias e etc.
Sobretudo, entender que está só. Que até as relações amistosas que estabelece com os colegas não vão lhe valer na hora em que tiver de dar respostas pessoais, coerentes e integradas.
E esse não é um processo simples. E não o é, sobretudo, pela imaturidade que as séries anteriores plantaram no comportamento dos indivíduos. É que a nossa educação começa pelas “tias” com seu bando de “mimadinhos”, de onde os piás já partem desaprendidos de segurança intelectiva.
Num segundo momento, lança o ente aprendiz, de supetão, na idade da “rebeldia”. Contraditoriamente, a fase que direciona o indivíduo para todo aprendizado mundano e pouco, muito pouco, para uma formação mais consistente e autônoma.
Aqui, a rebeldia significa afronta gratuita e desacato a tudo e todos (sobretudo à escola) e aprendizagem enviesada, conservadora em conteúdo e soluções pedagógicas. Outra vez lá vamos nós, brasileiramente jeitosos, nos resumindo às corrupções escolares, aos pactos pela “mediocridade” do ensino tutelado.
   Já a aprendizagem em nível de 3º grau se dá pela disponibilidade pessoal para aprender.
Aprender, no caso, ganha expressão de experimentar, empreender, gostar de ler, ter desenvolvido ao longo da vida escolar a capacidade de absorver e entender o que foi lido, de ter antecipado etapas, roçando conhecimentos além do cardápio oferecido pelos conteúdos curriculares, de competência na reprodução do que aprendeu, repassar, confrontar ideias e por aí vai.       
Se alguém, por acaso, sai de um curso superior e tem coragem de dizer que por lá não aprendeu nada, deixa claro, sim, que não deveria era ali ter entrado. Melhor, demonstram claramente que, em muitos casos, o curso superior entre nós virou um adereço social, um souvenir, e não um passaporte para uma compreensão realmente superior da realidade e da força de intervenção socio-estrutural da área de domínio. 
Para coisas práticas, busca desenfreada de alguns oligofrênicos, cursos de fuxico e amenidades seriam bem mais aprazíveis. Satisfação garantida durante o percurso e maiores sensações de realização no final.

por Edson de França