segunda-feira, 30 de março de 2015

Fogo amigo em tempos de selfie mania

A expressão “fogo amigo” remete-nos aos cenários de guerra, aqueles em que um guerreiro fatalmente “distraído para a morte” é abatido por um bólido qualquer, disparado por um companheiro de farda. É difícil, senão impossível, identificar as razões motivadoras do fogo amigo, afinal o alvo de quem se podia pegar um depoimento esclarecedor, está mudo para sempre. Sepulcralmente encerrado em seu papel de vítima do acaso. Ops! Falei acaso? Pode ser que a coisa também não seja tão pacífica assim. Reflitamos.
No máximo, pode-se listar duas ou três possibilidades fortes para a fatídica ocorrência. Primeiro, por descuido. Há sempre, em todo exército que se preze, a figura do vacilão; aquele que cuida displicentemente de seus afazeres mais básicos e, em meio à guerra, é capaz de descansar os dedos tensos no gatilho da arma. Segundo, por tensão ou zelo extremo. Na guerra, veem-se fantasmas ou sugestões psíquicas de presença inimiga; isso desperta no soldado um estado de tensão vigilante e sentidos de autodefesa permanentemente acesos. Basta uma sutil assombração e lá vai bala.
Finalmente, sadicamente falando, investiguem-se os casos de intenção homicida. Essa é a arena do amigo da onça. Não cogitemos aqui especular as possíveis motivações (aqui é uma crônica e não um tratado), mas ao menos duas possibilidades hão de ser consideradas. Por uma neurose detonada pelo estado de guerra, onde matar tenha se tornado uma necessidade, uma ordem superior emanada sabe-se lá de que esfera.
Ou, por uma arenga qualquer que o sniper tenha tido com aquele desavisado alvo, na difícil convivência da caserna. Uma terceira via nos levaria à pratica do divertimento puro e simples, ao prazer mórbido que motiva gentes a infringir dores físicas ou psíquicas em outrem. Não importa a causa. Ao final, estará um corpo estendido no chão, uma alma penada a mais para se acostar ao túmulo do soldado desconhecido. E, em alguns casos, com o remorso do atirador, caso tenha atirado por inapetência emocional.
Após quatro enfadonhos parágrafos, hão de me perguntar o que essa zorra toda tem a ver com o titulo. A rigor, o fato de que a via internáutica criou uma espécie de fogo amigo que, com todas as suas sutis nuanças virtuais, tem um efeito bem real na vida das pessoas. Não são poucos os casos de imagens geradas por amigos em potencial, reais ou virtuais, que após viralmente distribuídos, agem como uma espécie de morte social para as vítimas.
A via internáutica serve como território grandioso para o culto famigerado à personalidade. Da mesma forma que se fazem cultos à estética pessoal (em sua maioria, ridicularmente) por meio dos selfies, se promovem  exposições baratas do ridículo alheio e exibições ingênuas de candidatos a fama ou ao tiroteio do fogo amigo.
O caso da enfermeira do Samu, em Campina Grande, há dias atrás, foi o que levou-me a considerar essas possibilidades tão reais. A exposição despojada às lentes dos cinegrafistas amigos, levou aquela profissional ao questionamento, por parte de seus superiores e pela sociedade, de suas habilidades laborais e respeito ao ambiente de trabalho. Fogo amigo no mais extremo dos extremos.
Não nos cabe especular qual a motivação de quem postou a tal filmagem. Cabe em duas palavras: sacanagem e inapetência com o uso das tais redes sociais. As redes estão aí, ao alcance de todos e devidamente descomplicadas para espalhar coisas para o bem ou para o mal. Ela, atualmente, dá a medida da inabilidade, da displicência e do mau-caratismo das pessoas.
Há um tempo, pela fluidez do signo linguístico utilizado para compor boatos, a dança da moça levaria um tempo para chegar aos ouvidos de quem quer que seja, ainda assim, sob a imprecisão da historia repetida e do descrédito, cobria a aura dos boateiros de plantão contumazes. Hoje, tanto o anonimato criminoso como a notabilidade trocista possibilitam a materialização visual das produções da corte de fofoqueiros e, a velocidade com que eles se espalham, acaba manchando, quase sempre, créditos sociais adquiridos e traindo fatalmente estágios construídos de convivência.
Distribuir, por molecagem ou displicência, fotos ou filmagens de pessoas (amigos?) em despojada naturalidade é o fogo amigo mais cruel que se pode considerar em nosso tempo. Cruel porque, em verdade, mortifica a vítima, causando-lhe transtornos sociais irreparáveis. Isso, enquanto as hienas riem e os livres abutres da miséria alheia se protegem, finoriamente, por trás de suas lentes assassinas e usurpadoras de reputações.
por Edson de França
  


terça-feira, 24 de março de 2015

Tribunas seletivas

Há tanta gente de boa conversa procurando uma tribuna, um parlatório, uma plateia, algum artefato ou situação que amplifique suas mensagens. Falo de gente de bem. Gente que tem o que dizer. Gente que traz em sua fala mensagens edificantes, a boa vontade inclusa em seus gestos e escolha das palavras. Gente que não se deixa inflar pelo destempero. Gente que quer a conciliação, que prega a paz, a concordância, o bem comum, o bom senso, a convivência dos contrários. Entende a existência dos antagonistas como um item primordial da sua própria experiência de vida.
Gente que espera, com a paciência dos sábios, a hora de emitir comentários, aconselhar quando possível, ser o guia informal das gentes. Gente que conhece a aura de suas verdades. Gente que sabe do papel limitado de suas teses e de sua própria insignificância no tear dos múltiplos fios de opinião. Gente grávida das melhores intenções, mas que não quer influenciar demasiado nem criar grandes atritos, muito menos para trabalhar para gerar exércitos de prosélitos. Gente que tem plena consciência dos limites do seu canto, da extensão e da altura de suas notas. Busca a valorização de seus minutos de protagonismo. 
Para esses muitas vezes sobra um palanquinho, uma sala de desatentos aprendizes, uma roda boêmia num bar má afamado, uma conversa informal com um amigo de longa. Situações simplórias, espaços exíguos. Mas, talvez, não careçam de maiores espaços. Talvez suas mensagens, por leveza, pureza ou retidão, não sejam semente de fácil plantio. Talvez, pela elaboração de suas verdades intrínsecas, se tornem raras e de “difícil acesso” para mentes tão acostumadas às superficialidades do discurso fácil de viés primitivo e controverso.
Ironias da vida, meus prezados. Aos trogloditas sociais que nada tem a acrescentar a convivência dos contrários, porém, os espaços parecem se abrir como comportas de represa temperamental. Para eles, os microfones, as páginas e até os espaços generosos da crônica servem aos propósitos nem sempre claros, por onde correm os pecados mais aparentes de nossa crônica social: o exercício da bajulação, a reiteração de uma pretensa descendência aristocrática e o uso da “palavra amplificada” para auferir alguns ganhos, por vezes bem mesquinhos.    
A vida, se observada pelo proceder de suas instituições sociais, tem mesmo essa formatação: competitiva, desigual em todos aspectos e eivada de generosas doses de DNA jurássico. A sobrevivência no meio tem que ser construída a base de dentadas, azunhadas e, sempre que possível, a berros que sirvam de alerta e intimidação ao outro. Comportamentos que destoem dessa pauta hegemônica estarão irremediavelmente fadados à limitação do acesso aos meios de propagação da fala e, em casos extremos, até a própria elaboração de pensamentos.
por Edson de França


 

segunda-feira, 23 de março de 2015

A ignorância letrada

Puta com os destinos administrativos do Brasil Varonil, a Maga Patalógica, alcunha jocosa de uma de minhas vizinhas, distribuía impropérios aos governantes de então e revirando os olhos para um ponto indefinível lá nos céus, dizia para D. Zefinha: “Isso é o marchismo, Zefa! É o marchismo!!!” Assistente privilegiado da cena prosaica e ingênuo navegante das literaturas sócio-políticas, imaginava que a tal culpa cabia ao machismo que imperava na sociedade e que, além de responsável por manter a integridade conhecida da personagem, ainda era culpado pelos desmandos administrativos do país, senão do mundo.
Areia pelos compartimentos da ampulheta depois, pude perceber que a culpa pelos problemas eram dirigidas ao marxismo, vocábulo que a minha expert em política tinha captado, en passant, em uma graduação expressa em geografia que não a capacitava a ter noção, se vivia dentro ou em cima da bola azulada, se a África era um continente ou um país ou em qual posição cardeal básica ficava o litoral brasileiro. A questão de fundo, porém, não se reduzia à pronúncia enviesada da máxima sociológica, mas a apropriação do termo para definir a conjuntura e embasbacar a “gente simples” com um pretenso conhecimento. Além, é claro, de alimentar as relembranças e a idolatria da personagem por um certo pessoal de farda.
Esse comportamento, contudo, não é uma particularidade da Maga em outros tempos... Ao contrário, a via internáutica que nos transporta não serviu para criar mais bem pensantes. Aperfeiçoou, sim, a formação e o aculturamento dos “ignorantes letrados”. Uso essa expressão com doses generosas de sadismo, porque acho que para a empáfia dos “inteligentes de última hora”, não há outro remédio que o gelo do artigo para apagar a fogueira particular das vaidades.
Circulam por aí, uma porrada de espécies e subespécies de ignorantes letrados. Minha pesquisa informal, contudo, detectou inicialmente 04 tipos. A primeira delas, chamei de “pocket book”, aqueles que se formam (ou ganham um lustro mínimo) por via das edições de bolso, as compilações, sem jamais conseguir consumir algo no original. Esses até são o mais conscientes de suas limitações e, por humildade, geralmente não andam por aí mostrando seus dentes de asno. Cometem, alguma vez, uma gafe ou outra, mas se contêm.
A segunda espécie é a da osmose axilar, posto que desfilam exibindo opúsculos, por vezes, até originais, mas não ultrapassam a leitura das orelhas. Pena que estas não lhe sirvam de adorno craniano. A terceira é a formação aforismática. Por ela, os insignes ignorantes leem frases soltas, por vezes desconexadas de seu contexto original. Leem, decoram e destilam frases feitas com uma autoridade de quem digeriu o Manual de cara de pau (Manual do cara de pau, é fácil falar difícil, de Carlos Queiroz Telles) na íntegra.
Por último, talvez a mais danosa das espécies, os da oitiva desatenta. Aulas de sociologia, antropologia geralmente são enfadonhas, porque os mestres não têm paciência de descer de seus andores ou esperar que as eclusas do conhecimento aproximem alunos mal-formados das condições de navegação em águas absolutamente niveladas. Esse comportamento que se repete em outras disciplinas como a matemática, permite a formação da espécie oitiva desatenta. Entre a má fomação e a desatenção, o cara vai pegando, pelo rabo, trechos desconexos da fala do professor e depois sai a propagar, rouba ideias de A, B ou Z, faz uma omelete indigesta e as usa, como se suas fossem.  
Todos esses comportamentos de formação (ou de vícios de formação) perpassam e distorcem questões como o “marchismo”, citado no início da crônica. A ignorância total quanto às ideias do alemão Marx – poucos que utilizam suas teses, hoje, realmente leram-no no original. Daí atrelar a culpa pelos problemas do mundo ao marxismo é fácil e falacioso. As ideias marxianas, quando lidas com a parcimônia necessária, mostram uma forma de ver o mundo, a evolução histórica através da construção das riquezas e da exploração do trabalho. Um método, enfim, que objetivamente permite observar a vida, alongar o olhar sobre as nuanças mais explicitas ou mais obscuras da formação da sociedade.
Assim como uma cartilha dos magos capitalistas que ensina os caminhos da capitalização, da administração de pessoas, coisas, e o escambau que sirva à exploração e a competição arraigada entre os homens, só. Culturalmente, contudo, ideias marxianas (ou apenas o termo marxismo), servem aos avatares da ignorância letrada, destituídos de qualquer autoridade intelectual, para denominar movimentos políticos e basear suas conclusões mindinhas, seus pré-conceitos, suas revoluções de fancaria e alienação.
Não acuso, claro, os ignorantes como iletrados. Letrados são, sim. Porém, apenas chegaram rastejando ao letramento. De resto, são boas doses de achismo e arrogância, os quais não tem vergonha de distribuir a torto e a direito.
por Edson de França


quinta-feira, 5 de março de 2015

A palavra ensolarada

A página (ou a tela para os moderninhos) em branco é o maior desafio para o escritor. Frente a frente com ela neguinho vacila, em casos extremos faz sair fumaça carapinha acima. É um sofrimento intenso que antecede e não se extingue com a colocação da primeira palavra. Para muitos o ato de escrever beira as margens do impossível, algo aparentado com uma subida ao topo do Aconcágua sem agasalhos ou instrumentos de proteção para alpinistas.
Mesmo no jornalismo, atividade por excelência avessa ao indefinível chamado inspiração, mais afeita aos redatores que aos escritores puro sangue, é por vezes angustiante encadear as ideias. E olhe que  processo de produção jornalística prende-se mais ao imperativo temporal (dead line) que às questões estilísticas. Ele começa, via de regra, pela coleta de informações, passa algumas vezes pelo crivo da checagem para, finalmente, chegar a elaboração do texto. Aí é a hora de elencar informações por ordem de importância, selecionar as palavras certas que condigam com a objetividade que o ofício exige e só aí começar a macular a página. É mecânico, dizem, mas não de todo liberto da angustia.
Ela, a palavra, enquanto isso, parece escarnecer dos dilemas do pobre escrevinhador. Seja no texto mais literário, seja no texto mais indicial, esquemático a tragédia se repete. É dilema e tamos conversados. É no fundo um joguinho de esconde-esconde, em que as palavras, libertas por natureza, faíscam na superfície nada límpida da mente e lançam desafios a quem queira fisga-las. “Tens uma idéia, infeliz?” – parecem perguntar. “Então, olhe para nós e escolha as melhores para dar vida aos seus pensamentos!”.
Creio nas palavras como entidades virtuais e, naturalmente, polissêmicas. Autônomas, sobretudo. Detestam as amarras das ideias fixas. Atraem-nos para as profundezas dos conteúdos instigantes. Namoram brincalhonas com a inventividade, com a inventação e com a criatividade, essas coisas que colorem a imaginação de quem escreve e quem, por acaso, encontra prazer em consumir textos. Amigos da palavra, um e outro, separados pela “intransponível” barreira da página em branco. A palavra é um signo linguístico que adquire materialidade na página, mas exige decifração.
A palavra detesta a preguiça. A inércia mental de quem não insiste, não martela, não se abre ao desafio de provocar uma produção textual qualquer. Abomina também a indolência de quem renega a capacidade de decifrar signos ou símbolos. O mundo só é mundo através do uso palavra. Do usufruto de seus aromas, texturas, armadilhagens. De sua capacidade imensurável de criar laços, mundos, combinações alquímicas para guerra ou para a almejada paz entre os homens.
Se o escrevinhador, na real, quer produzir algo, elas batem a porta tal qual a flor que não se cheira da velha canção de Pepeu Gomes: “Toda manhã ela bate em minha porta, toca em minha janela só pra ver o sol entrar”. O velho cronista, do alto de seus dilemas criativos assevera: ”eu lhe asseguro que ela não é flor que se cheire, mas, mais que o sol, ensolara o coração”. A página em branco, afinal, é só mais uma rinha de esgrima entre um ente “criador” e o complicado mundo da comunicação entre as pessoas.

por Edson de França 


segunda-feira, 2 de março de 2015

Incoerências da arte política

            Na atividade política você pode encontrar de tudo um pouco. A grande maioria dos qualificativos sugerindo positividade em atos e imaginário. Ética, trabalho duro, empenho, paixão, denodo, desapego e esmerado espírito público; não necessariamente nessa ordem, nem em estado puro, nem muito menos com a aura de positividade que tais palavras possam sugerir. O que marca a política como estigmas são os totais e mais arraigados jogos de incoerência.
            A atividade política não é uma atividade digamos normal como cultivar a terra, tratar de animais, colher os frutos da terra, pregar no deserto e comer gafanhotos. Trabalho braçal e penitencias sujeitas aos humores da terra. Também não é uma arte no sentido estrito como a fala escorreita (ou língua direita, como diziam os índios americanos), a produção de textos para consumo e o deleite, a melodia das composições musicais com a flauta de pan ou a harmonização de cores na reprodução serenas marinas. Coisa de gente afeita ao onírico, à quimera e aos sentimentos impalpáveis. Nada disso.
A arte da política tem a ver com o relacionamento humano, no que ele tem de mais voraz e com o dirigismo que o poder faculta a um homem sobre outro. A arte da política tem a ver com a manipulação de vontades coletivas e com o carreamento dessas vontades na direção de um objetivo. O objetivo final é o poder de mando. Se há algo de positivo na pratica política – um projeto de sociedade mais justa, por exemplo - geralmente sendo desvirtuado e convertido em poder de mando e anulação do discurso e da vontade do outro. Politica, enfim, tem a ver com mando e submissão.
Claro que, por teoria e idealismo, podemos crer na política como sinônimo de participação social, ou seja, como vetor da construção da sociedade através da representatividade e da pressão de grupos e cidadãos. Mas essa, vamos dizer, não é a regra no mundo pratico. O mundo prático carece de figuras que dirijam e de outras que aceitem (ou sejam levados) a submissão. Em meio a tudo isso flutua o “discurso” que mantem os dois integrados, numa simbiose parasitária. Os submissos, claro, doando a seiva para a manutenção daqueles outros.
É no campo discursivo que se estabelecem as controvertidas regras do jogo. Se algum dia você quiser ser plateia isenta, sem o ardor das paixões e fora dos interesses imediatos de sua sobrevivência protocolar, creia-me, verás um dos melhores espetáculos circenses da qual a mentalidade humana é capaz de intuir.
Verás destruído o idealismo, pois desfilarão a tua frente todos os pecados que se escondem por trás da aparência asséptica da politica. Verás o retrato ignóbil de teus ídolos, a nu. Verás num instante precioso tudo o que o que há de mais baixo na condição humana representado, sob uma cortina de confetes, em figurões acima de qualquer suspeita. Bufões, rufiões, ladinos, o baronato faminto, os homens de personalidade dúbia e palavra fácil, facilmente enviesada. Afinal, o natural do animal político “profissional” é minorar todo ímpeto coletivista em nome de interesses particulares ou de grupos que o apoiem em sua escalada.


por Edson de França

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A paixão errante da realeza


Mora no mais intimo de nós brasileiros uma alegoria de realeza. Vive e se reproduz como todas as mazelas que se enraízam no inconsciente e que, ao passar do tempo, tornam-se impossível expurga-las.  Reside dentro de nós como um monstro, um parasita qualquer, cuja natureza é viver da seiva do desavisado hospedeiro.  Como materialização modelar, poderíamos sugerir algo similar ao espécime alienígena da serie Alien, o 8º passageiro (EUA, Ridley Scott, 1979).
Para quem não assistiu ou não lembra, o filme primitivo da série Alien narra os horrores do encontro da tripulação terráquea de uma nave espacial com uma criatura altamente agressiva que ataca e mata impiedosamente os alienígenas, nós. No primeiro encontro, o alienígena, ele, ataca um dos tripulantes e o utiliza como últero ocasional para o desenvolvimento de seu horrendo parto. A maléfica descendência mata o hospedeiro, cresce rapidamente e sai a cumprir seu legado: o extermínio das formas humanas ali presentes. A comparação para o nosso caso particular não é a aniquilação da carne, mas a aniquilação das vontades.
Pois bem, nossas fantasias de realeza estão entranhadas em nós, por mais que nos consideremos politicamente avançados, como algo adquirido por contaminação e transportado civilização a fora. Dá a aparência de algo atávico, culturalmente reificado, que vai se reproduzindo através das nossas mentalidades sempre tendentes aos padrões médios de raciocínio. Não sei até que ponto a cultura cristã ocidental contribui para isso, nem a razão das suas raízes.. Também não investiguei a fundo as tendências islâmicas para a formatação dos seus califados. Grosso modo, acho que tanto lá como aqui, o ser humano traz essa visão como base para enxergar e “construir” o mundo.
Cá entre nós, essa anomalia nos leva, meio inconscientemente, a denominar reis, aplicar título de realeza a tudo que nos pareça excepcional, além dos limites infra-humanos de nosotros, pobres mortais. Aplicar-lhes, enfim, qualificativos generosos como a genialidade de feitos e talentos, a infalibilidade de suas escolhas pessoais e, sobretudo, a associação de poderes quase divinos a suas personas tão exageradamente humanas. Somos elásticos nessas classificações.
Do rei da juventude ao rei da sucata, da rainha da fava ao rei do osso buco, da rainha do acarajé a rainha dos caminhoneiros, da rainha dos baixinhos a rainha do bumbum. Isso quando não associamos alguns materiais, considerados por sua nobreza, a pretensa qualidade laboral de algumas pessoas. Aí, a coisa já passa pelos martelinhos de ouro da vida. Se permanecêssemos nessa esfera, creio que não passaria de uma particularidade anedótica e folclórica dos nosso jeito de ser. Acredito, porem que ela traz consequências mais danosas.
Penso que essa visão dominante de mundo tende a reduzir o espirito critico, o questionamento, a percepção crua da nudez do rei. A atribuição de qualificativos extraordinários a quem, se olhado de frente, talvez não mereça. Ou pior, por posse legítima, passe a se locupletar dessa condição. Mais perniciosamente contribui para a concepção e o enaltecimento cego de uma sociedade baseada no espirito da realeza. Sabendo-se, claro, que tal sociedade é composta rigidamente dos iluminados (reis e descendentes), dos baba-ovos (parentes, aderentes e xeleléus qualificados) e da ralé, eufemisticamente denominada de súditos.


por Edson de França

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

O bode pós-carnaval


        Todos os anos os noticiários nacionais tentam conferir um ar de curiosidade a chegada do ano novo chinês, evento ocorrido na última semana. A raridade do fato repousa nos elementos exóticos e incomuns que a data articula. Claro que a nossa parca imaginação, inundada de resquícios antropocêntricos, não perderia a chance de deleitar-se com essas aparentes esquisitices da terra dos mandarins.
A associação do ano a um animal que confere, por associação, qualificações e prognósticos para o novo período é um desses estranhamentos enaltecidos pela mídia. Ano passado deu cavalo na cabeça. Este ano, por lá ainda indecisos, acham que serão regidos pela cabra, ovelha ou carneiro. Para nós, essas coisas não passam de dicas preciosas para a fé no jogo do bicho e a chance de financiar, anonimamente, as enredações do próximo mega-carnaval de temática polêmica.
Outra estranheza é a contagem dos anos que nada tem a ver com o nosso calendário ocidental, ou melhor, não está acorrentado aos estados e humores do mundo da lua. Por lá comemoram “míseros” 4.713 anos, por cá a vida segue com a nossa gregoriana lógica que nos concede 2.014 ciclos civilizatórios completados. 
Quem pensa, ingenuamente, que mantemos uma distância quilométrica da cultura chinesa erra feio. Por lá comemoraram o ano novo, por cá, reza a picardia popular, estamos agora a começar o ano. Como diz a voz do povo, o ano por aqui só é realmente novo depois do carnaval, justamente para coincidir com a efeméride chinesa.
 Até a invenção do brasil, seguindo o raciocínio de velho compositor popular, se deu “no dia 21 de abril/ dois meses depois do carnaval”. (Salve Lamartine Babo e sua sagaz versão para a História do Brasil). Então, desculpem-me as pessoas que derramam suor desde o primeiro dia do ano, mas o ano literalmente está começando e não há nada de engraçado nisso a não ser a nossa risível capacidade autoanálise destrutiva.
Estamos prontos para o ano, enfim. Ainda em processo de transição seja o mais correto, pois é difícil se acostumar com os miasmas que ele ameaça evocar.
Os aumentos das contas de começo de ano já se adiantaram aos nossos devaneios. As intrigas políticas, acusações de A para B e vice versa, num ringue onde os dois lados se equivalem já nos deixam bem bodeados. Nas ruas e nas redes tem gente clamando por golpe.  O Big Brother já está no ar. O Faustão já busca novamente “iluminados” para o estrelato bel cantante do brasil varonil. Juiz carioca, representante do olimpo encarnado, desfila com bens de “luxo” apreendidos. Tem futebol terça, quarta, quinta, sábado e domingo. Eduardo Lages já se rendeu aos dotes musicais de Annita... Haja motivos para nos quedarmos de bode.
          Se por lá pela China estão indecisos, por cá o bode já tá reinando, solto na capoeira. Por associação, estamos literalmente bodeados. Estar chateado é o sentimento mínimo que se pode experimentar nesse estado de coisas. Outros sentimentos mais cabeludos também imploram por ocupar a cena. Há tristeza, abatimento, desassossego e muita inquietação pra se queimar sob a luz mortiça dos fogos de nosso réveillon tardio.
por Edson de França