quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Plugues e âncoras


12h35min de um dia comum. D. Iva, do alto dos seus quase 80 anos, se posta à entrada do Bl.01 do condomínio residencial. Vai “olhar o mundo”, como diz a quem passa. Para quem pára por alguns segundos para ouví-la, reclama da vida que leva e fala do seu desejo de rasgar mundo, viajar, rever terras por onde passou, onde viveu a feliz juventude, desbravar lugares novos, ver e rever gentes. A fiel obrigação de D. Iva a condiciona a uma rotina de pouquíssimos e limitados passos. Presa às mecanicidades da vida domestica e às plugagens extasiantes ao mundo colorido da Tv a cabo.

Vez por outra, a velha senhora experimenta estágios de depressão. Nota-se pelo seu desinteresse repentino pela vida e seus hobbys mais ternos. O jardim por ela cuidado é quem clama aos quatro ventos o estado letárgico da amiga. Que as rosas não falam, até concordamos com o velho poeta; mas tanto elas como a natureza em geral são expressivas por demais em seu mutismo. Assim é o jardim da velha senhora. Nele, a sintonia da flora com a fauna humana materializa-se em sinais. A felicidade do viço, a flor que se abre para saudar as manhãs, o verde que parece agredir pelo frescor, a felicidade das chuvas de mangueira. A fragilidade, a decrepitude do verde, a ausência do frescor, a cor em chumbo motivada pelo abandono, sinais do desânimo provocado pela reiteração dos dias, irritantemente iguais. Estados que sinalizam as contradições e antagonismos da vida, de toda ela.

D. Iva me serve de mote. Roubei dela o instante e a lição. Precisamos como elementos contraditórios da matéria vida de plugagens. Mantermos saudáveis plugues com pessoas, elementos da natureza, estados de espírito, paisagens diversas, fatos da vida mundana, palavras que sugiram horizontes a alcançar. Por outro lado, lançamos mão das indefectíveis âncoras como élan de estabilidade e segurança. Assim são o jardim e os desejos aventurescos de D.Iva. É com ela que aprendo, dia a dia, poeticamente (quiçá, filosoficamente) a alternância de estados vitais no decorrer da existência.

Utilizo muitas vezes o termo ancoragem. Sou meio fã da poeticidade que a palavra emana, mas tenho cá meus senões com o que ela sugere. A âncora, mãe significante da palavra, por sua função, sugere certo pouso estático. Correntes e grilhões amarrados a um objeto cujo objetivo é limitar movimentos; segurar outro objeto contra os convites sedutores do mar imenso.

A plugagem, por sua vez, sugere abertura de portais. Um prosaico objeto que ancorado em um receptáculo acende luzes, abre telas, propõe intercâmbios simbólicos, dá sentido a materialidades e imaterialidades sugestivas. O plugue pressupõe correntes múltiplas, ondas inimagináveis, previsibilidades mínimas, descontinuidades.

Somos, independente da idade em que estejamos, como D. Iva sentada a porta do seu apartamento térreo. Estabelecemos com o mundo relações de plugagens e ancoragens. Fomos moldados gradativamente a buscarmos pouso, âncoras, que nos permitam estar em situação de espreita, repouso, relativa paz com objetos, pessoas, coisas ao nosso redor, mesmo que isso se revista de uma incômoda rotina. De outra mão, é-nos imprescindível ampliarmos as plugagens, lançarmos mãos dos tais plugues, para que a mente, mesmo enfronhada, desafie o rotineiro. Que vá livre buscar o passado, que dê cores psicodélicas ao presente, que visualize futuros. A ancoragem, de fato, é um estado passageiro, afinal o mar sempre será o convite aberto da partida. O plugue é o mar, real ou virtual, que propõe turbilhões de aventuras, sejam tíbias ou inquietantes, e visualizações marotas e lúdicas sobre o mar da vida, suas tessituras e profundezas.

por Edson de França

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Quando escuto a minha aldeia


É devedê, o som! O som da Spris invade meu cafofo legal. Sente. Sente como treme as parede. Doida e gostosa... a doida. A Brity Spris... sabe do que falo? Dizem, por aí... usaro um tal de fotochópi nos crip. Credito não, meu irmão! Fotochópi? Sei marromeno o que é. Óia, é assim, você leva uma “quenga véia” pros estúdio das foto. Ah, tu quer saber o que é “quenga véia”? Um troço estragado, assim, uma Maria Pêra uma Bete Farinha, sacou? Ou mió, uma Bebe Amargo. Pronto, sacou, coisinha véia dessa espece.

Poi bem, os cara tira as foto. Adispois vai oiá e num dá outra: pelanca só. Mas num tem problema pros cara das revista. Eles tem a fórmica de tranformar tudo. Eles leva as foto pra outra máquina... uns computador, sabe (?), e fai umas prástica. Não no coipo, não, nas foto! Dize qui as maquina é capai de fazer Glora Pire... sabe a Norma da novela, pois bem... dize por aí que abasta uns toque de butão qui ela é capai de ficá a cara e o coipo, craro, da Creo...saca a Creo, fia dela cum Fabo Juno? Lá, nos laboratoro, eles vão tirano as ponevrose, jeitano as cara véia, os botoc e a peça fica GG, joinha, joinha, entendeu? Ponevrosa? é o mermo que pelanca, aquelas parte que não se come e qui a gente tira da carne cum faca fina pra ela ficar de primeira. Já trabaiei in matadouro!

Suburbo? O que é isso? Ah, se é isso mermo... essa coisa de ser pobre, fudido, morá mal e longe dos centro... eu sou, sou!... Tai ouvino som? Num intendo porra ninhuma do que essa nega canta. Meu ingrês é esse mermo que nós ouve, aprende dos gringo e fala. Adispois, tem os dicionáro de duas língua para quebrar os gai maior. Uns ailóveiús, uns emetivi, uns brodér, uns joni alque, uns oldete... o que preciso, sabe? Me mantém grobalizado, sacou? O ingrês é a língua da moda, num é? Dize por aí que pra se dá bem no mundo grobalizado é preciso saber ingrês.

É isso mermo, o chinêi também? É... eu ouvi dizer lá pelas banda do porto qui aprendê chinêi é da hora! Dixero até qui um dia vai haver uma invasão de china puraqui! Dixero que vem aos pouquim... uns produtim. Uns celular de doi chip, uns cavalim boiola rodano in volta dum pau. Tu já viu? Passa ali na frente... na Apitácio que tu vai vê!... Daqui a pouco vamo dividir té os barraco com eles... os china. É... mais num mundão desses onde já vi té alumão na Ramadinha, tudo pode acontecer. Acho que é mermo, visse... já tem chinês na favela em nos prédio do centro e levando o rapa da guarda municipá. Siná dos finá dos tempo, né não?

Grobalização? Pra mim é andar organizado. Assim..., sei não..., como é que eu digo..., nuns pano de responsa, ané nos dedo, uns pisante legal... brinquin não, que não sou feme, uns palavriado em ingrês... uns caquiado. Prontin, grobalizado. Quando o minino lá de riba, deus, num sabe(?) mandar bons tempo, compro um carrim pra incrementá... ai tunu o bichin... umas caxa de som, essas coisa, apararei de devedê pra ouvir uns forró..., fazê uns precateado, pegá umas nega! O que? Mulhé? Pra tu saber, chega cá... cum meu jeitin assim já paguei até universitara! Pensano o que???!!!!!!!

por Edson de França

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Gavetas... lembranças, restos


Um dos mais típicos sinais de determinação do envelhecimento é o volume acumulado nas gavetas de casa ou nos escaninhos da repartição que nos vampiriza. Quando o infeliz olha para um deles e lá encontra objetos com idade superior a três anos não é sinal de que a velhice bate a porta. Ela já mora. Já ocupa espaços consideráveis e ameaça espalhar miasmas por toda a casa. Definitivamente instalada, dona, dá ordens e, sadicamente, sinaliza o escoar do tempo.

Aqueles objetos – uns guardados por zelo; a maioria, por pura displicência - se acumulam como células mortas na carcaça decadente do individuo.

Uma velha embarcação, cansada de singrar mares, leva consigo memórias das águas cruzadas e dos portos de visita grudados em seu casco. São os souvenires da passagem. Os monumentos da existência. Inglórios resquícios do tanto navegar, em forma de calosidade de ostras parasitárias. Eles serviriam para recontar viagens, mas tão somente denunciam o passar dos anos. O apelo inexorável da idade. Nelas as alegrias e as dores, os mares revoltos, a calmaria, encravados como segunda pele, tatuagem crespa, nas partes submersas da nave.

As gavetas são os nossos bojos submersos. As células, naturalmente, jazem inúteis sobre nossa pele. Os órgãos (fígado, coração e pernas) acusam a idade e a cobrança dos exageros juvenis em dores pontiagudas. As gavetas, como extensões físicas de nossas afetividades mundanas, servem tanto para o acúmulo de coisas úteis como de lembrancinhas dispensáveis.

Nelas lançamos, sem muita ordem, os documentos inúteis, as correspondências não lidas, as canetas-brinde e os brindes diversos, objetos de aço enferrujado, cortadores de unhas cegos, os cheques devolvidos, chaves de deus sabe lá que fechaduras, relógios paralisados numa hora morta, pilhas, baterias, pecinhas desgarradas de objetos não identificáveis, aquele panfleto evangélico-apocalíptico nos lembrando da falibilidade do mundo e de nosotros, a anotação para o poema natimorto, o rascunho do conto cujo personagem se perdeu nas brumas da falta de inspiração, os cartões bancários recebidos e jamais desbloqueados, uns números de telefone avessos e não identificados, bilhetinhos, propostas mirabolantes para assinatura do Readers Digest, reprografias de São Jorge, Santo Expedito e Padim Ciço, mosquitinhos de mães-de-santo diversas prometendo a volta do amor perdido, calendários de anos há tempos findos, tocos de vela para a iminência do blecaute, notas fiscais, raspadinhas azunhadas, volantes de loterias pule de jogo do bicho, cartelas de bingos, listas de compra, cartões de aniversários, nascimentos, óbitos, saudações do dia do amigo, lembrancinhas de casamento, de batizado, de primeira comunhão, de crisma, de barmitzva, de troca de faixa de capoeira... santinhos daquele candidato em quem votamos e nos arrependemos. Amiúde, baratas bisonhas e traças oportunistas.

Somos naus, errantes por teimosia, em mares de humor inconstante. Os cacarecos acumulados, como nas naus marítimas, são nossos restos de ostras e microbúzios dos mares por onde nos aventuramos. Na maioria das vezes, porém, são lembrancinhas desimportantes do charco em que nos afundamos. Do mar cotidiano que singramos como rotina, vício, indeterminação. Resignação, sobrevivência...

As gavetas podem passar por extensões naturais da memória se vez por outra assomarem peraltas à soleira da afetividade, brincarem com sensibilidades latentes. Se comportando como visitas benfazejas, revisitas da alegria, como projeções vivazes e ancoradouros imediatos de momentos felizes e boas lembranças. Mas, nem sempre é assim. As gavetas se comportam como túmulos, tumbas com o mínimo de ostentação, dessas coisas comezinhas que se agarram a nós como desimportâncias parasitárias, determinadas pela sua própria natureza passageira.

Pode ser que existam gavetas ricas. Pode ser. Ricas de vida em forma de memórias, afetividades redivivas, valores diversos. Mesmo assim, apenas como exercício, é preciso escancará-las, expor-lhes as entranhas, revisar o conteúdo, expulsar os parasitas, reavaliar importâncias e, mesmo entre a vontade e a dúvida, descartar objetos. Lançá-los ao longe ou dar uso corrente aos velhos bibelôs de brinde. Rasgar papéis... reencontrar o personagem do conto suspenso. Quem sabe por sangue em suas veias para que ele, uma vez nau, viaje outros mundos e construa suas próprias lembranças. Quem sabe, apor novo sentido ao poema natimorto, recriar os universos ocultos presos a teia das palavras imprecisas.

É preciso, vez ou outra, agir como as velhas naus: permitir a raspagem da crosta de algas e musgos, se livrar das caspas que denunciam a idade. Não conseguimos tão naturalmente, sacolejar como os cachorros para contrariar pulgas e carrapatos. Então nos resta agirmos como as naus para nos livrarmos dos objetos inutilmente acumulados que só servem para denunciar nossa decrepitude.

Abramos as gavetas, reviremos os escaninhos, despejemos fora seus conteúdos. No mínimo estaremos nos livrando das fantasmagorias que silenciosamente por ali se infiltram.

sábado, 26 de novembro de 2011

O charme suicida do anti-convencionalismo


É preciso ter “doidões” passeando pelo cosmo, errantes como cometas. Só eles reúnem condições de dar assombros éticos, estéticos e comportamentais na vidinha limitada dos humanos comuns. Não se pode precisar suas trajetórias e humores. Apenas, cumprindo deus sabe lá que estigmas, emprestam de bom grado certa instabilidade moral para o mundo. Mesmo que momentânea e, para o bem dos puritanos, não influenciadora de massas. Graciosa e acidamente, provocam rompantes de loucos suicidas, socialmente falando, somente.

Normalmente, o mortal que se preza, por pura consciência, até mesmo por ser ridiculamente mortal, é contido. De forma alguma se permite exageros. É erroneamente racional. Vai à Igreja, religiosa e profanamente, ou simplesmente agarra-se a uma Holy Bible. Que esta seja nova ou rota não importa, uma vez que, pouquíssimas vezes, foi lida de forma autônoma, isenta e natural como só os loucos são capazes de lê-la. Toda leitura sagrada foi ditada por um mentor de intenções duvidosas para uma mente distorcida e atolada até os bagos no convencionalismo.

O mortal que se preza freqüenta o bar e toma todas, dá um “tapa” nunzinho de vez em quando só pra distrair, faz amores ilegítimos para puro deleite egoísta da carne, da “machice” ou da feminilidade liberada e “socialmente” condenada. Faz parte da ritualidade social. Depois se resigna, reza, implora, se martiriza e, de volta a rotina e à paz do lar, agarra um deus desocupado e faz cultos à plena realização terrena. Claro, sempre de olho naquele terreninho celeste pago com debulhares intensos do terço.

Penso, por outro lado, que temos que ter “doidões” que reescrevam bíblias. Penso como Ruben Alves que não se deve dar maior importância a bíblia que a de um poema cifrado para uma leitura pormenorizada e silenciosa das entrelinhas. A bíblia, em suma, não deve ser um manual de instruções. Façam dela, mais que qualquer coisa, um poema para suas vidas, sem intervenção de um ou de outro; um dirigista desses que tende a moldar a sociedade mais que dar-lhe o sabor da liberdade de sentidos e rituais.

O irônico é que há uma contenda entre os doidões de griffe e uns extemporâneos doidões de vitrine. É que de repente pessoas normais que não conseguem sair um milímetro de suas comportadíssimas posições sociais se acham, de repente, herdeiros da loucura de alguns ídolos, ou ícones da contramaré do conformismo. Só a titulo de exemplo, a minissérie Maysa nos legou um momento desses. Essa figura marcante da musica brasileira não foi, em vida, um dos modelos mais recomendáveis para a moral cristã e burguesa, onde o recato, mesmo fake até a medula, o usufruto e a sanha pelos ganhos dão a tônica das vidas.

Pois bem, a “indigesta” artista e os seus comportamentos escadalosos pelo lado esnobe e até, para os normais, amorais, acabou por inspirar um monte de gente que, de uma hora para outra, achou glamour em viver embriagado, consumindo tabaco, botando o nariz a postos para o que vicia e, ainda, desejando intensamente outros corpos, se é que você me entende. Coitados. Muitos equivocados, que não conseguem exercer seu naco de loucura sem uma base boa que os acolha (um braço do bom deus, uma conta bancária ou uma família aparentemente bem constituída) caso aconteça algo de errado, ou a covardia os abrace em plena passagem do cordão sobre o abismo.

Ser doidão é lançar-se no espaço. Caminhar sobre nuvens, sem ligar muito para sua contituição: fluidas e andantes. Belas e inseguras. Nada pra um doidão nato é sólido. A sociedade, seus glamours e glacês são construções acachapantes e breguíssimas por sinal. Estruturas de controle, de castração, de doma mesmo.

O doidão é ao mesmo tempo belo e maldito, como diria Lobão. É ser o equilibrista, sabendo que a rede lá em baixo é frágil, velha, puída. Algumas vezes, nem existe, noutras é virtual. É experimentar a cada passo a insustentabilidade de ser, de existir, de tentar ir além. Além aqui quer dizer lugar nenhum ou iluminação, você escolhe.

Sexualidade incontida, alcoolismo e outros baratos afins, talento para a criação e para afronta, a alegria e a dor não combinam com quem insiste mediocremente a viver todos os dias de uma vida em branquíssimas e sólidas nuvens.

Chegamos ao ponto em que temos que concordar. O mundo admira os loucos, os exagerados, os excêntricos, mas os vigia, os teme, não os quer por perto. Nos primeiros sinais de decadência real daqueles, de uma queda iminente, seus fãs se riem. Se lhes estendem a mão ou mandam um sermão, religioso, social ou de bons costumes não é pra lhes valorizar os feitos. São auras postas sobre a cabeça, como uma perfuratriz inseminadora de bons e aceitáveis, diríamos também, comportadíssimos costumes.

Na realidade, o mundo não queria Maysa. Era meio ninfo e apreciava umas boas doses. Não amava Cazuza e Renato Russo. Recriminava-os em suas preferências sexuais ecléticas. Não idolatrava James Dean. Pernicioso, representava o lado rebelde de uma juventude.

No fundo no fundo, havia amor, amor às figuras, aos mitos, mas nem aí pras pessoas; para profundidade dos seres, além da exterioridade espalhafatosa. Devoravam de todos o talento, sem entender-lhes o sentido social de sua passagem. Temiam o Lobão doidão e o João Gordo boquirroto. Mais confortável é vê-los MTVaícos ou Legendários. Melhor é tê-los todos enjaulados, comportados ou, simplesmente, mortos. Melhor ficar apenas com a voz da Amy e enterrar sua figura esquelética, pro mundinho seguir quadradinho, comportado e insosso.

Aos que se foram, cabe reconhecer, que a presença não era benquista, convenhamos. Nem pelos que beberam de suas músicas, de suas representações, nem os que compartilharam de leitos, pratos, espelhos e lâminas. Vê-los e admirá-los na telinha, glamourizados ou mumificados, é muito fácil, confortável. Não deixa marcas na pele, secreções na camarinha, nem compromete o hipócrita convívio social. Durmam em paz ancestrais de nossa loucura sã. Viva a doideira fundamental.

por Edson de França

Cigarras da Praia

Os rapazes do extinto humorístico global Casseta e Planeta cunharam uma piada sobre o assédio dos cantadores de viola que “atormentam” a vida de turistas e nativos que curtem os bares da orla. Na realidade, como o humor em sua cerne deve servir fundamentalmente para a crítica social, política e de costumes, a piada em foco deve ter um leitura bem mais ampla do que o simples riso passageiro diante das constatações óbvias. Os cantadores de viola - sobretudo os que dão seu expediente nas praias - fazem parte, atualmente, de um estrato social segregado e servem como exemplo da extensão da miséria econômica e cultural que impera no Brasil.

Sente-se em um bar em qualquer lugar desses brasis, que logo serás assediado por um exército composto de miseráveis. São meninos de rua desnudos e viciados, pequenos trabalhadores, boêmios precoces consumindo álcool e cigarros, menininhas de olhares lânguidos e famélicos, mulheres-meninas andrajosas com recém-nascidos remelentos no colo, bêbados, loucos e doidões pedintes de centavos e pingas, vendedores de rede, miçangas, bugingangas, quinquilharias e pingentes hippies.

Enfim, toda uma fauna de excluídos e “alternativos” que encontramos dos litorais
aos sertões deste país. Cidadãos de segunda, de terceira ou, sabe lá Deus, de que classe.

Junto a esses, os cantadores de viola, compõem um capítulo a parte. Eles não pedem simplesmente. Eles vendem arte. Talvez não à altura da qualidade e pureza que caracteriza o gênero e que a história nos relata. Mas, a seu modo, mantêm a tradição. Insistem, às duras penas, em permanecer tecendo versos para quem quiser (ou não) ouvi-los. Pululam nos bares buscando tão somente da boa vontade de quem quiser ouvi-los, aquele quinhão que os ajudará a manter a família e a inspiração.

Chova, faça sol ou chuva, lá estão eles, cantando tal qual as cigarras da fábula, enquanto as “formigas” roçadeiras labutam, ganham e gastam seus dinheiros, se divertem, se embriagam. Só que, ao contrário da fábula, as formigas não largam de seu labor um instante para dirigir a palavra, ou no mínimo, os ouvidos para as cigarras. Ali o contrato é econômico, um busca a sobrevivência, o outro... Alguns ouvintes chegam até a ceder alguma mixaria, com ares de desdém, apenas para livrar-se mais rápido daquele incômodo.

Os versejadores, espécie em rápido processo de extinção, viraram mendicantes do verso enfrentando um amplo espaço - este sim em processo crescente de expansão - de incompreensão. Sua musicalidade cabocla ainda tem que enfrentar os superpotentes sons de bares e automóveis envenenados tocando a última pérola musical de um grupo qualquer, batizado com um nome composto, geralmente, de harmonia incongruente. São vozes destoantes - para alguns, irritantes - diante de um mundo que sugere não querer ouvi-los mais. Viraram “praga”, simplesmente cigarras de praia em confronto com um mundo apoético, competitivo, em que o canto ancestral
destoa da racionalidade contemporânea. São sobreviventes atuando no amplo palco da indiferença.