sábado, 9 de abril de 2011

Ruínas (O derradeiro morador)


O coração já não nutria catedrais faustosas. Percebiam-se, esmaecendo ao peso dos anos, apenas capelinhas cadavéricas. Escombrosos resquícios de fazendas ancestrais jaziam como incrustações lúgubres nos carcomidos ramos coronários. A margem das estradas da mente, cruzinhas. Pequenos obeliscos em memória dos esqueletos de família. Esculturas infra-humanas embranquecidas pelo tempo. Sacos e sacos de ossos descarnados, descalcificando-se a olhos vistos, ocupavam os porões reais. Os escaninhos da mente, também porões, há muito não eram visitados, ao menos em sã consciência.

Já fora a época da casa-grande, das festas, da opulência, da mesa larga, dos festins. Chegara, enfim. o outono, as vésperas invernais. Agora, o homem mantinha-se teimosamente à margem. Havia fome, decadência. Preso irremediavelmente a casa fantasmagórica tentava, dia após dia, erguer-se do trono puído e deambular pela casa. A cada tentativa mais se assemelhava aos esqueletos recorrentes da ficção infanto-juvenil. Zumbi andrajoso que causava asco, receio, temor.

Já não olhava a rua. Há tempos desistira da sombra amiga das tamarineiras e do envoltório das brisas de fim de tarde. Os olhos sombrios buscavam o nada. Algumas vezes uma gargalhada roufenha rasgava o ar; lá fora a ouviam. Os miúdos da vizinhança tremiam. Noutras vezes um gemido gutural vindo deus sabe lá de onde arrepiava os cabelos dos moleques. Os pais contavam histórias terríveis dos dias passados daquela porção de terra mascava e escombros. Os meninos temiam o castelo decadente; além dele, temiam o homem, a lenda... o fantasma.

A mansarda causava medo e era imã para pedras-bala. Ao incompreensível, ao estranho, ao que dá medo, o homem responde com pedras. É a lei. O telhado ruía aos poucos. Caibros corroídos pelos cupins pendiam, rasgavam o forro de gesso entalhado com anjinhos azuis e estrelinhas sorridentes. As aberturas no teto que expunham nacos de céu que ali naquela porção parecia turvo, escuro, sempre de mau humor como se a qualquer instante pudesse desabar um temporal. Os petardos direcionados a fortaleza fragilizada causavam danos irreparáveis. Abriram olhos nas janelas velhas, espécie de respiradouros no teto, hematomas nas paredes.

Um dia aquela casa havia sido portentosa, deslumbrante, festiva, invejada. Jardins bem cuidados, terra a perder de vista. Chibatas, palmatórias, castigos, mortes. Risos, muitos risos por parte dos ricos donos. Havia, em culto, a ojeriza aos “porcos”, como o patriarca tratava aos vizinhos, rendeiros e empregados que maculavam a relação dos moradores da casa com seus vizinhos. Pobres... paupérrimos... humildes, sem muito de seu sofreram por eras dos maus tratos do coronel.

O tempo a destruiu, suprimiu-lhe o brilho, fragilizou-a. A ruína começara com uma festa. Festa grande, de fantasia, imitação de corte francesa em tempos de Luis XIV. Frufru esnobe para o coroamento do rei menino, senhor da casa-grande, regente do verão vindouro. Os nobres da vizinhança foram todos convidados; os pobres abriram suas pupilas gastas para, e tão somente, assistir ao desfile de celebridades.

Qualquer reizinho que se preze tem que mostrar sua face real e para isso foi preparado um ritual bufo, carnavalesco. Um menininho mirrado, selecionado a dedo, da vizinhança seria o “cavalo” do rei por uma noite. Treinou por dias o script que previa transporte do rei e uma sessão privada de humilhação do amestrado “cavalo”. À hora da embriaguez, quando a mente dos convivas já vacilava, aquela em que todo o espírito de humanidade dá lugar à barbárie, o espetáculo começou.

O reizinho adentra a arena montado no seu corcéu. O menininho quase da mesma idade fantasiado de cavalo se vergava dolorosamente ao peso do menino nutrido. Ouviu-se a voz do patriarca: “Filho, mostre pra nós a sua força! Seja digno da realeza! Mostre-nos como um monarca deve tratar os animais que lhe servem!”.

O rei mimado apeou do “cavalo”, ergueu-se majestosamente e sem pensar em nada desferiu potente pontapé nas canelas finas do seu animal domado. O “cavalo” sustentou as lágrimas, estava tomado pelo papel, adestrado. Pediu entrementes, baixinho: “Não faça a segunda parte! Não bata...!”

Aquele pedido patético soou como uma provocação aos ouvidos do rei infante. E foi com força que ele desferiu dois tapas fenomenais, uma em cada face do cavalo renitente. E obteve uma resposta que o marcaria. “Hás de pagar!! Hás de ruir como toda essa casa, rei! O sol também enfrenta eclipses!”

Foi uma das últimas festas. Veio com o tempo a decadência. A falência. Os loteamentos as hipotecas, as mortes dos gênios financeiros da famiglia. O reizinho torrou dinheiro; mimado, bon vivant, viajou o mundo, conheceu outros reinos reais de Europa, conviveu com celebridades do mundo todo. Não dava conta dos gastos. Era marcado pela luz do sol, ungido, acreditava. Um dia voltou... para ser o rei, o novo patriarca, o sucessor.

Quando vieram as primeiras crises, foi acalmado. O sol nasce todos os dias e “está conosco a séculos”, ensinava o patriarca. “Há uma crise, coisa pequena, tudo voltará ao normal como sempre!” “Não te preocupes por hora! Hás de me substituir; tua força, teu brilho te farão dono dessa casa para sempre. Está escrito”. E estava inscrito, mas não as prédicas do coronel, e, sim, numa praga instintiva de um menino paupérrimo, fantasiado de cavalo, coadjuvante do espetáculo megalômano de coroação do rei do sol.

Sob as ruínas, macilento e andrajoso o homem arrastava-se. No velho trono, mal acomodado sob um dossel destroçado, gania qual um cão sarnento e atirava olhares inexpressivos ao horizonte próximo e vazio. Haviam sombras. Eternas, agora. O sol não veio. Não viria. O reinado apagou-se. Sobrou na mansarda um derradeiro morador. Dia a dia, de sombra a sombra, lentamente homem e casa viravam a mesma pútrida carne.

por Edson de França

segunda-feira, 14 de março de 2011

Circo sem Lona

O futebol é a paixão nacional. As outras, em ordem aleatória são, a corrupção, a solidariedade oportunista, o jeitinho brasileiro, a mulher do próximo, o ecumenismo não-praticante e a cachaça benta. Todo brasileiro, por mais tosco boleiro que seja, já deu um chute numa lata velha ou carcaça de coco. Quando não, perdeu a cabeça dos dedos aperfeiçoando a técnica de chutar tampinhas nas calçadas. Quem não já andou assoviando, a plenos pulmões, um “vai, vai Brasil”. Ou ainda, paraibanamente, se embasbacou por alguns segundos diante da TV, durante a transmissão de um jogo chinfrin com a narração de uns e comentários desafinadíssimos de outros.

Nós, paraibanamente falando, também armamos nossa pantomima nesse circo para não fugirmos da máxima. O futebol é paixão, esporte da unidade nacional, então nada mais natural que montarmos por aqui uma republiqueta independente de praticantes, amantes e apologistas do esporte. Aficionados ingênuos, comentaristas medianos, repórteres esforçados, associações licitas e ilícitas, ligas de peladeiros, e um bando de outras instituições, como num chamado místico, travestem-se de “desportistas”, tão somente para circular ou figurar debaixo da lona do Grand International Circle Foot Ball.

Só que, paraibanamente falando, nosso circo tem a lona furada. É um circo pobre, desses que gravitam miseravelmente nas periferias até das cidades periféricas. Daqueles que só tem para oferecer de diversão o esforço inútil e risível dos “artistas” para dar espetáculo com elementos improvisados. Daqueles onde a féria diária que alimentaria a bailarina encarquilhada ou possibilitaria cordas novas para os trapezistas suicidas quase sempre acaba nas mãos do palhaço ladino e da bailarina gorda, personagens pra lá de bufões, porém pais-dos-porcos.

O futebol, paraibanamente falando, anda longe demais do centro das acontecências. E tem-se explicação para isso. Toda estrutura do futebol brasileiro foi montada para criar o centro e as periferias, num processo inteligente e engenhoso. O centro é onde o verdadeiro espetáculo, a excelência, acontece. A periferia, onde a escória luta para sobreviver. A partir do aparecimento do Clube dos 13 a coisa se patenteou; de um lado os grandes, do outro os peixes miúdos, gravetos pros bicos dos anuns. Ironicamente, essa estratégia é um espelho do mapa do desigual desenvolvimento regional do país.

Até nos aspectos administrativos a Paraíba faz uma caricatura do que ocorre nacionalmente. A CBF, entidade máxima do futebol brasileiro, não é nenhum exemplo de democracia. Por lá, qualquer presidente que assuma não quer nem ouvir falar em sucessão. Numa espécie ditadura, eles vão sendo reeleitos, utilizando-se deus sabe lá de que moeda para esse milagre de aceitação e consenso. Por aqui, a atual presidente sucedeu o marido e tomou conta do cargo. Parece até não existir outras competências para assumi-lo. Ou será que ninguém quer pegar aquela batata quente? Penso até que administrar a “miséria” e ainda locupletar-se dela é um carma terrível, que não vale a pena assumir.

por Edson de França



sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Ofícios extremos

O picadeiro do grand circo da vida é pontuado por elementos contrastantes. Compomos, ao nosso estilo, um circo mambembe sob o olhar raivoso das intempéries. Sobrevivemos com uma variedade impressionante de faces e ofícios que, estranhamente, parecem depender uns dos outros, para afinal propor a harmonia caótica do dia a dia. Em tudo há uma estranha simbiose, é preciso que um pólo exista e se insurja para permitir a existência do outro. Algo assim como um acordo tácito, chulo e mal amarrado entre protagonistas e almas periféricas. Assim como na geografia da terra a montanha faz par grotesco com a planície e o charco com a caatinga, em flagrante contraste; na geografia social representamos papéis extremados.

No espetáculo do circo suburbano, a fantasia de chita puída, os palhaços, as bailarinas de “vida fácil” dupla, os músicos desafinados, a bateria furada, o violão de quatro cordas e o desgracioso apresentador fazem par com o menino remelento e paludo que nutre, a si e às lombrigas, de algodão-doce ou aquele pestinha ranheta que zomba, apupa e joga frutos de “carrapateira” nos artistas. Palhaços todos, ao final das contas, cobaias de um experimento que jamais será dado a se entender completamente.

É preciso que hajam Genis, naturalmente putas, sempre desfilando no passeio público para receberem a bosta e as pedras dos comuns. Sempre santos, anônimos, e talvez, felizes por sua condição periférica. E Carolinas, para verem a vida passar na janela. Sempre santas. Sempre comuns, insossas, e de língua ferina. Manequins para as vitrines e passantes basbaques para apreciá-las. Gente para ocupar as casas de vidro e mãos para manipularem as pedras. Corredores abnegados e desocupados para falarem de como aqueles ficam de shorts. Garotas para posarem para Playboy e onanistas para espermeabilizarem as páginas da revista.

O carro do ano e a lata velha para permitirem a comparação por parte dos esnobe dos puristas. Falando nisso, é preciso conviver-se com carolas e desbundados. O que seria de um sem o outro? De apolíneos sem dionisíacos? Capitalistas sem explorados. Comunistas e consumistas radicais. Colunismos sociais e ralés. Perdulários e sovinas. Realezas e prebeísmos. Bregas e chics. Bregas bons e chics ruins. Atividades e passividades. Genes dominantes e seus irmãos, os recessivos. Bebuns e sóbrios.

Filhos da mãezinhas zelosas e filhos da puta que os pariu. Leitores de obra inteira e adoradores de orelhas... de livros, diga-se de passagem. Gente capaz de produzir, com sentido, inumeráveis parágrafos e rastejantes limitados por duas linhas e onomatopaicas gargalhadas. Homens e protótipos de homens, falo em termos de personalidade. Homens heteros de raiz, sexualmente falando, e, amiúde, boiolismos, androginias e outras manias mais. Homossexuais e viados. Viados e frescos.

Sabidos e bestas, macunaimicamente falando. Espertos e idiotas. A luz e a escuridão. O preto e o branco. O opaco e o furtacor. O prostático e o urologista. O fiofó e o dedo do proctologista. O amorfo e o cristal. O cristão e o satanista, o fiel e o incréu. Jesus e Pilatos. Judas e Jesus. A alma santa e o espírito de porco.

Assim em tudo na vida, no grande picadeiro. Tudo no seu lugar, eqüidistante, fazendo páreo cego para alguma anomalia, ou, tão somente, outra palavra sobre o caos. Tudo no seu lugar cumprindo “fiel obrigação” (obrigado pelo verso, irmão Hesse) nesse espetáculo de luzes e sombras, textos e entrelinhas, fala e silêncio, notas e pausas, protagonismos e coadjuvâncias, enfim, palco e platéia. Platéias ativas e passivas, entendidas ou parvas.

O bem e o mal. Nunca tão bem, nem nunca tão mal. Sigamos pelas alamedas da DIALÉTICA, onde um estado explica a existência do outro, num romance pra lá de astral. “Assim como deus, parabéns o mal” (obrigado, grande , por mais essa conspiração interestelar). Deidades e cães-miúdos. O oco do pau e a santa para ocupá-lo. Tom e Jerry. Picapau e Leôncio. O picapau e a madeira para picar. O papel em branco e a lauda preenchida. Pedras que rolando viram gente, pois “gente é outra energia diferente das estrelas” (brigado, mano Caetano) e gente que nem tentando há de chegar lá.

Esse também é o cenário da produção cultural de algum sentido, ou até daquela de sentido algum. É assim com quem milita na imprensa com a opinião (este ofício de segunda categoria). Sempre sujeito a riscos, ou melhor dizendo, produção salutar de antagonismos. Primeiro, o desafio de produzir periodicamente artefatos minimante instiganttes para mentes abertas. Estas um dia agradecem do alto de sua sapiência e discrição.

Depois, cara, por vezes lambuzada de óleo de peroba, e coragem para expor os artefatos – muitas vezes vergonhas - naquele limiar entre a ousadia e total falta de senso do ridículo. Uma bestagem quixotesca. Uma corda bamba enfim, um fio, um pescoço para uma corda, um algoz e um cadafalso. Por ultimo, o risco máximo de servir de sparring ocasional para meia dúzia de egüinhas mal amadas exercitarem a única faceta apreciável de sua exuberante natureza animal que é distribuir coices aleatórios.

por Edson de França

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A construção dos santos

O Homem vive de fabulações. Gosta mesmo é de mitificar e mistificar. O domínio da razão não nos afastou dessa mania de imemorialística ancestralidade. Nem mesmo a leitura materialista da sociedade que questiona a deidade foi capaz de superá-la. Precisamos como cães sedentos, de deuses, totens e santos enfronhados no cotidiano. Precisamos de pitonisas, de oráculos a quem recorrer, quando o futuro nos aparenta incerto ou o peso da vida amarga testa nossa capacidade de resistência. Sugere ser essa uma determinação inexorável, um elo inquebrantável entre o que arde de primitivo em nós e a moldagem psicofísica do homem contemporâneo.

Isso nos parece admirável quando analisado do ponto de vista de fenômeno social e antropológico. Mas essa mesma manifestação mostra sua face ridícula, material, caso queiramos assim denominar, quando desmembramos friamente as unidades componentes do ritual de nascimento dos tantos santos que infestam nosso cotidiano. Quando isolamos cada um dos elementos constitutivos da construção dos santos, os separamos, e criticamente apreendemos nomeadamente cada um deles, surge uma face pouco comum da santidade: os santos são invenções manipuláveis da mente dos homens e, socialmente, são impostos para o consumo de fiéis. Mas sempre envolvem, para sua existência, um teatro mágico de alegorias e pantomimas bem humanas, bem terrenas.

A construção dos mitos (de oráculos, pitonisas, mães dinás, xamãs, advinhos, santos e etc), socialmente aceitos, dá-se, sobretudo, na esfera dos poderes, implícitos ou escandalosos, que reúnem indivíduos e instituições. Trata-se de poder pela manobra da opinião publica (maestralismo social e ideológico) e pela visibilidade (egolatria) de alguns poucos espertos. Na real, um exercício natural dos homens que, internamente, se reveste de rituais de empoderamento permanentes de indivíduos, grupos e instituições.

O poder, ou empoderamento, se dá na soma de alguns elementos que se complementam como passos marcados de um ritual de sociabilidade. Ao primeiro deles podemos conceituar como “arquitetura primordial de uma causa”, que é tão somente a captação (na maioria das vezes, oportunista) de um fenômeno, de apelo popular, em sua maioria (mas podendo ser oriundo das elites), sobretudo, no tocante as questões que envolvem a fé. A conseqüente embalagem desse índice serve para consumo de uma massa que, por sua vez, não deve questionar validades.

O segundo trata-se da “busca pela legitimidade”. Este se caracteriza pela violenta busca a captação da boa vontade da opinião publica. Não adianta ter um ícone consumível nas mãos, se a população questiona; é preciso quebrar resistências, mostrar o que há de “real” no fenômeno. Para isso, um documento probatório de uma instituição reconhecida (uma universidade, uma instituição cultural ou o que valha) serve bem ao propósito de estabelecer o consenso. A simbiose entre homens e instituições, leigos e especialistas, oportunistas e ingênuos da fé, eventos de comunicação pública e ocupação de espaços na mídia fazem parte do modus operandi em torno do princípio da legitimidade.

Assim se fortalecem os cultos aos santos. A fé é um dos monumentos mentais da humanidade mais manipuláveis. O santo, coitado, já desencarnado, não pode dar a palavra final nos destinos de sua memória. Nem pedir que o esqueçam. Que o deixem em paz. Nem negar seus milagres. Tudo acaba mesmo é na esfera humana. E onde há o humano, há geração de valores – valores psíquicos, em alguma parte; em moeda corrente, na maioria das vezes - oportunismo, malversação, construção de mitos consumíveis. Pura, simples e profanamente.

por Edson de França

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Os “maus pensamentos” e a censura

Os ditadores alimentam paixões gris. Parece-nos, em primeiro plano, que o mundo imaginado por eles é cinza no calor dos corpos e no pulsar das idéias. Assim todo amor que eles possam nutrir pelas gentes que tiranizam é ritualístico como uma solene marcha marcial, composta por boas, obedientes e inexpressivas crianças. Já a explosão da alegria legítima, se por acaso há, é marcada por um dobrado bajulativo e démodé, executado num dia pátrio e festivo de culto ao déspota de plantão.

Todo projeto ditatorial tem por base a instituição da censura. O ato, mais que a própria palavra, faz parte do vocabulário ® estrito dos artífices das ditaduras. Compõe parte das estratégias restritivas da criação artística, do pensamento e da informação jornalística. A estrutura governativa das ditaduras, portanto, não prescinde de uma estrutura burocrática e de parda significância intelectual para vigiar e punir a eclosão dos “maus pensamentos”. Ou seja, coibir idéia ou atitude que sugira desestabilizar o status de pensamento médio aceitável por aqueles vetustos seres fãs da ordem e da disciplina, mantida a ferro e fogo.

Em dois momentos, ao longo do século XX, o país das bananas e parangolés sofreu estados de censura. Um primeiro patrocinado pelo Estado Novo de Getulio, e um outro durante o movimento militarista apelidado de Revolução de 64 (que para nós, seguindo uma tendência de análise mais crítica, resolvemos simplesmente classificar como Golpe). Os dois tiveram por pano de fundo rebuliços internacionais que marcavam a conjuntura cada época, especificamente. Com Getulio, a II Grande Guerra marca sobretudo um estágio de desesperança e eclosão de ideologias arrevesadas, vividos por toda humanidade.

Com o Golpe de 64, dois eventos: mais uma Guerra – Vietnã - e um elemento novo e intrigante: um movimento planetário de essência jovial e provocativa. Quem nos dá noticia desse movimento é Fred Góes, na Literatura Comentada de Gilberto Gil: “de roupas coloridas, cabelos longos, cultivando a terra e usando tóxicos para aprofundar o auto-conhecimento, os hippies recusam qualquer padrão institucional adulto”. Pois é, esses malucos de cabelos encaracolados e mentes maravilhosas entravam em cena sem pedir licença com um discurso pacifista, uma musicalidade que unia a ancestralidade a rebeldia e uma forma de vida alternativa determinada criticar os padrões da sociedade.

Ironicamente, nossa “revolução” interna, por mais que lhes decantem o espírito desenvolvimentista, entrava em choque direto com a revolução mundial que se desenrolava. O mundo experimentava, ao contrário de nós, revolução; esta sim muito mais significativa, uma revolução cultural no melhor sentido que a expressão possa ter para a humanidade. Revolução cultural quer sugerir descontinuidade, ruptura: inconformismo, make Love, not war, despadronização da vida. Nada, nada, nada que agrade um santo homem do senhor e das instituições cristalizadas.

A revolução cultural, porém, inspirou pelo menos dois movimentos tupiniquins. O bucólico Clube da Esquina e o carnavalesco e desbundado Tropicalismo. O primeiro muito mais marcado pela musicalidade e o outro incorporando não apenas a música, mas o espírito rebelde de uma época, o experimentalismo literário e a veia política mais exposta. Como nos reportam Paulo Franchetti e Alcir Pécora (leia-se Literatura Comentada de Caetano Veloso): “Recuperando Oswald de Andrade, valorizando a alegoria, assumindo a modernidade, eliminando a fronteira entre mau e bom gosto, entre música erudita e popular, nacional e estrangeira, o movimento tropicalista cria uma nova linguagem. Linguagem de recusa dos padrões de bom comportamento no palco, na melodia, na vida”

O corpo, o som e a as cores tropicalistas não se harmonizariam jamais com o uniforme verde-oliva, nem com o rataplã dos marcha-soldados cabeças... de que mesmo? Era inevitável o choque. Ouçamos, então, Paulo Franchetti e Alcir Pécora em obra supracitada: “os clarins da banda militar, cujos acordes dissonantes irromperam com brio em 1964, avolumaram-se com a Lei de Segurança Nacional no compasso marcial dos Atos institucionais, que culminaram no 5º”, a mais terrível criação garrastazulina. Acabaram, inclusive, com a transmissão ao vivo de programas da juventude.

Assim, prisão, exílio, censura de pensamento e atitudes não eram só medidas punitivas, eram estratégias saneadoras, artifício limitativo de quem se acostumou a viver paixões cinzentas. Paixão assim sem abraços, sem beijo na boca em meio ao passeio público. Paixão pela limitação dos movimentos de corpo, do colorido das vestes, dos pensamentos e dos acordes, considerados em bloco como exotismos perniciosos. Cá pra nós, “exageros transgressores” esses que, além de soar como representações das ousadias e traduções do espírito de uma época, fazem minimamente pensar. Fazem um homem se sentir homem, alimentam o sonho (até de um mundo melhor) e contribuem para torná-lo participativo no jogo das forças e formas que movimentam o cosmo. Em navilouca assim não há lugares para instituição da censura.

(por Edson de França)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Universitarizando tudo!

Mais de uma vez ouvi de professores o seguinte comentário: “Tenho alunos que gastam os tubos para realizar a festa de formatura, mas que durante o curso inteiro não compraram um único livro. E pior, não adquirir uma única obra básica da área que escolheram para se profissionalizar é até compreensível; não ler os textinhos didáticos das aulas é o fim da picada.” O desabafo e a constatação pessimista dos mestres mostram duas coisas: o nível do nosso ensino superior tende a ser baixíssimo, pelo material humano que a ele é guindado e; segundo, a formação superior virou griffe. Um luxo, um capricho, um hábito fútil como as lentes coloridas e os faróis de neon que iluminam, por baixo, os automóveis da galera descolada.
É moda universitarizar tudo. Depois do galicismo oitocentista e da americanização dos anos 50 em diante, parecíamos ter chegado ao nosso limite. Qual nada. Numa onda de nacionalismo exacerbada descobrimos a pátria acadêmica e passamos a querer ser universitários a todo o custo. Isso talvez servisse para esconder algumas deficiências nossas (como as deficits de formação básica, por exemplo) e, também, para emprestar certo status a tantos de nós, tão pouco afeitos aos malabarismos do intelecto e, por que não, do espírito.
É in ser tribal. Pertencer a tribo de algum curso, de preferência o da moda. Se a moda é Biomedicina, porque não exibir por aí uma t-shirt com uma representação qualquer do curso que freqüento, mesmo que só retenha uma vaga idéia do que se estuda por lá? Porque não encher uma camiseta com símbolos e frases de efeito relativas a uma área qualquer para demonstrar meu pertencimento aquela gangue em particular? Ser tribal constitui uma cultura particular do mundo dos consumismos. Ensino universitário é assim. Um produto, comprado a pesadíssimas mensalidades, não sob a pena de tornar o individuo melhorado ou minimante profissional, mas tão somente laureado pelo glamour que a griffe empresta.
O ensino superior, dito universitário, virou uma marca um rótulo e, como todo rótulo, repleto de sentidos e interpretações. Interpretações que levam incautos a dar aura de inteligente a qualquer coisa que a porte.
Por que, do nada, eclode um movimento chamado forró universitário e ninguém de plantão para nos explicar por quê? Por que um bando de neo-sertanejos que inclui Michel Teló e Luan Santana, versões nacionais e caipiras da mega-estrela Justin Bieber, são precedidas de uma marca chamada inadequadamente de sertanejo universitário. O que o mundo universitário tem a ver com isso? O que explicaria a tomada dessa marca? Talvez a presença maciça de jovens universitários nos shows desses rapazes, talvez a idade dos mancebos, compatível com quem deveria estar na universidade (sei que eles não estão, e se chegarem a farão a distância, pois universidade é incompatível com os planos imediatos das estrelas do mundo pop, até para estudar música); talvez, finalmente, por que o nível mental (que envolve audição, senso estético, cultura e sentimento) daquelas super-produções não ultrapasse a leitura, com a voz uma oitava acima e a mente várias páginas abaixo, de um meteoro de paixão por parte dos nossos acadêmicos.

por Edson de França

sábado, 20 de novembro de 2010

Indo nada bem!

Jornalismo sério no Brasil é artigo de luxo. Exige dois preços. Um intelectual; não é produzido nem para (nem por) oligofrênicos, nem agrada a patuléia desinteressada e analfabeta funcional. Outro, financeiro; não está a venda a preços populares como os blood news, esses epidêmicos tablóides que infestam o país, espécie de caça-níqueis de empresas em franco processo de desaprendizagem jornalística e comercial. Tampouco pode se valer apenas da abnegação e genialidades opinativas dos jornais de autor.
Se fossemos apontar hoje uma fonte de jornalismo confiável em nível de Brasil, teríamos que nos contentar com uns pouquíssimos títulos. Esses geralmente independentes e tendentes às posições outrora rotuladas de “esquerda”. No mais, no dito mundo editorial dos jornalões, dos sites de toda ordem e dos jornalísticos televisivos radiofônicos, a carência é geral.
Peca-se pelo conteúdo editorial frágil, e justo na informação que é a coluna mestra do jornalismo com a produção da notícia. Peca-se no ajuste da opinião, uma vez que qualquer um dá opinião sobre tudo. Não que a opinião seja artigo para especialistas apenas, não é isso, mas o excesso de holofotes sobre alguns célebres palpiteiros compromete o exercício saudável da apreciação da realidade sócio econômico e cultural de um país. Peca-se pela falta de criticidade; falo da crítica comprometida e formadora. Peca-se, finalmente, na carência do auxílio honesto, sem pieguices, sacerdócio ou qualquer coisa que o valha, ao pensamento nacional, através do incremento de possibilidades de conhecimento e interpretação.
Invadiu e se intalou confortavelmente na saleta do sensacionalismo o jornalismo brasileiro. E para esse ato, podemos até encontrar defensores, sob a desculpa de “estamos tão somente explorando o filão do que o “povo” gosta, do que o “povo” consome”, “ao menos, num país que não lê, estamos produzindo um literatura popular”. Pobre povo, que somos todos nós, tomados como seres de mentalidade rasteira. Um bando de incapazes. Bem abaixo dos burros que só exercem sua burrice de fato quando atravessam uma via movimentada, pondo em risco suas finíssimas canetas.
Poderíamos dizer, parodiando Lobato, que uma nação é feita de homens e jornais. E jornais servem para incrementar e manter o status da democracia. Todo entendimento do cidadão acerca do mundo que o cerca passa necessariamente pelo veio jornalístico. É ele que fornece os elementos, seja ouro ou cascalho, que permitem ao individuo posicionar-se diante das correntes de pensamento de seu tempo. Ao jornalismo cabe a promoção do diálogo, a captação dos fluxos relacionais da opinião pública e a vigilância permanente aos desvios dos setores de mando no país. Isso sintetiza o papel da imprensa num país. Se não tivermos isso minimante, se de nossas minas só extraímos ouro de tolo; e até for-nos difícil localizar nichos dessa prática no nosso meio, então, estamos indo de mal a pior.

por Edson de França