quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Confissão de fã arredio

 


Li semana dessas matérias sobre um humorista chamado Leo Gigante (ou Gigante Léo) que, por conta do nanismo, foi aconselhado a não se posicionar logo nas primeiras filas em um show da cantora Sandy. 

A causa, explicou o humorista,  seria o fato de, por ostentar visível  fragilidade corporal, o espaço não seria adequado a ele. Nada garantiria sua integridade física, por conta da previsível invasão dos fãs naqueles espaços "vips", nos minutos finais do show. Coisas do mundo dos espetáculos massivos. 

Caso a plateia fosse constituída por pessoas como eu, ele poderia até armar uma barraca e lá estar a acampar tranquilamente. Primeiro porque não se encontraria um eu, Euzinho de França, em um show da referida cantora e, segundo, porque mesmo tendo admiração por determinadas figuras, não partilho desse hábito cultural a que chamo de "voracidade do fã". Essa mística insanidade, síndrome mista de histeria e  selvageria canibalesca. (Especulo que há algo de oriental dentro dessa entidade afro-americana que vos escreve).

Do artista consumo, no máximo, a arte (na idade em que estou, cada vez mais no que posso encontrar impresso ou gravado). A proximidade carnal e o hálito não me interessam.

A “voracidade” se caracteriza pelo embotamento do sentido prático do que podemos chamar grosseiramente de espaço vital. Qual seja, noção alguma de autopreservação, com boas pitadas de total ausência de empatia, preservação da segurança ou da fragilidade do outro. 

O que importa ao final é tocar o "astro", gerar selfies, menosprezando até a própria integridade do seu "objeto" de adoração. Compreendo artistas que gostam e desfilo ao lado dos que abominam a prática. Prático assim. Quero a integridade dos meus ídolos intacta; eles precisam estar em forma performar no dia seguinte e agradar outros fãs. 

Mal comparando, assiste-se naqueles momentos uma espécie de energia similar a da histeria coletiva: aquela que converte “pacatos cidadãos” em instrumentos letais de linchamento.

Não sei se por timidez ou outra particularidade qualquer, não nasci com tendências a esses rompantes. Meu ar "blasé" para essas situações é uma questão de natureza da persona que não sei se nasceu comigo ou se a forjei. Não sou muito dado a euforias. Até mesmo quando fui talhado folião, evitei contatos mais canibalescos. 

Nunca quis, não fosse por extremo dever profissional, por exemplo, fazer peso em cima de trio elétrico para estar ou fazer figuração junto aos constantes daora. Faltam-me graça, desenvoltura, beleza física e "complexo de tiete". 

Se eu puder olhar o astro da vez de um lugar confortável, com uma dose de um veneno qualquer nas mãos, mantendo minha integridade e a dele intactas tá tudo certo. E estamos conversados.  

Só vim aqui pelo show mesmo. Se puder levar algum conteúdo na memória afetiva ao fim, tá bom. Esse calor humano pós espetáculo não me interessa de forma alguma. Obrigado, bateria!


por Edson de França


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Da vértebra dos noticiários


Um peso!

Por várias vezes, no decorrer da pandemia, o presidente JB se reuniu, pontualmente, com dois públicos. O povaréu dos rincões do nordeste e os produtores rurais do Centro sul. Com os primeiros fez reuniões a céu aberto, quando da inauguração de cacos de obras e, como é de sua natureza, ignorou todas as recomendações sanitárias de uso de máscaras e distanciamento social. Com isso talvez quisesse exortar o povo a também ignorar as medidas de prevenção contra a Covid-19 e correr para o trabalho, sob sóis a pino e vírus galopante a fora.

Duas medidas!

Para o segundo grupo, os capitães do agrobusiness, as reuniões acontecem sempre em ambientes climatizados, onde não se dispensa os coffee breaks e a água mineral de boa procedência. A esses, a pauta presidencial reservou, sempre, um pomposo “parabéns” pelo setor não paralisar o Brasil durante a pandemia. Mas vem cá, salvo minha ignorância vértebra, penso que o agro é um dos setores que menos propenso a promover aglomerações em sua base produtiva. Bem diferente, creio, do comércio urbano (mesmo o de produtos agro), do meio industrial e de algumas áreas dos serviços. Desconhecimento, equívoco ou má fé explicam os parabéns do  JB. X para as três opções.

Descrédito a galope!

Além das lamentáveis perdas de vidas humanas, a pandemia de Covid-19, vai debilitar, em menor ou maior grau, muitos setores. Ao menos, quero crer, servirá para lembrar e conscientizar a muitos que o elemento gente é o motor real de todo engenho humano. Um desses setores a saírem chamuscados da crise, certamente, serão os planos de saúde. Já se percebia, há tempos, certo descrédito quanto a sua eficácia. A pandemia esta agindo para aprofundar a desconfiança. A redução da renda para motivar o desligamento de muitos. Cada vez mais, diante do colapso anunciado, a população intui os planos de saúde como planos de vida. Enquanto menos se precisar de sua cobertura e assistência, mantendo-se saudável, melhor para a sobrevivência dos planos. Cuida-te que o plano cuidará de ti.

Sandice em massa!

Hoje o noticiário internacional dá nota sobre o assassinato de mulheres em spas, casas de massagem, nos Estados Unidos. O intrigante dos tristes episódios, segundo os relatos, é a origem das vítimas: todas de origem asiática. Analistas atribuem, até mesmo seguindo uma das linhas de investigação policial local, que esses casos podem ações residuais do discurso xenofóbicos do ex-presidente Trump (o homem do topete amarelo) em sua pregação sobre o tal vírus “chinês”. Compreensível. Um líder deve saber do alcance de suas palavras. Talvez sua fala não repercuta nem crie eco dentro de sua casa, junto aos seus. Uma vez propagada sempre acabará caindo num terreno baldio e vagabundo, propenso a executar ações homicidas por uma causa que às vezes nem busca saber os porquês.


Ensandecidos se atraem

Palavras desequilibradas ativam os mecanismos da insanidade coletiva e individualizada. Pode parecer expressão carregada, puro senso comum, mas a palavra percutida às avessas, geralmente encontra com quem se afine. Como uma ordem de comando lançada ao cérebro de forma intempestiva e violenta. Mal comparando, como uma ordem de serviço vocalizada no ouvido de um recruta. Não há espaço/tempo para reflexão. O terreno é extremamente fértil no vazio das mentes dos insanos, onde é possível o concerto afinadíssimo entre os ideais, princípios, preconceitos, desvios, reacionarismos e dogmas sociais de quem emite e quem recebe mensagens.

por Edson de França (Jornalista, cronista e poeta)


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quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Se ao ofício de cronista se impõe a obrigação de manter em dia o registro dos acontecimentos de audiência mundial, passei batido pelas olimpíadas. Não dediquei uma mísera linha ao evento. Motivos até tinha, mas resolvi limitar-me a assistir na TV algumas coisas. Na verdade, na maioria do tempo, torci por alguns esportes e ignorei a maioria. Maratonei filmes - sim, assisto filmes aos nacos! -  e séries no curso do período. 

Postura de cronista, nesses instantes áureos da humanidade, é vestir-se de patriota ufano, elucubrar sobre o que agradou ou não no desempenho dos seus atletas e acompanhar as polêmicas com que os coleguinhas de imprensa afogueiam suas mornas “crônicas esportivas”.  Não há muito o que se fazer além desse roteiro. Sendo desconhecedor dos detalhes técnicos de muitos daqueles esportes, então, contento-me mesmo é com a beleza estética do esforço humano. 

Objetivamente, levamos das Olimpíadas as imagens que correram o mundo em nossas retinas -, o saldo de medalhas e uma ou outra ideia que algum iluminado analista traçou sobre. A vida segue e, por mais medalhas que nossos representantes tragam para casa, nossas vidas cotidianas, entre logros e mazelas, continuam exatamente iguais. O orgulho transferido pelos nossos heróis é espiritualmente marcante, porém, traiçoeiramente efêmero. 

Algumas imagens icônicas com certeza irão morar na memória afetiva dos mais abnegados e, mais, compor o panteão de “grandes momentos” da memória eletrônica dos meios de comunicação. Pronto. No saldo final, para quem é apenas um reles espectador, é o que sobra. O mesmo não se pode afirmar de uma outra contenda que se anuncia por esses dias.

Por uma dessas coincidências extraordinárias, findas as Olimpíadas, dá-se o pontapé inicial para as eleições municipais. O esforço e a excelência física humana demonstrada durante os jogos, cede espaço, cá entre nós, para o malabarismo verbal dos postulantes a uma vaga de representante do povo ou gestor público. 

O esporte dominante nesse novo espetáculo é de uma outra natureza, com influência muito mais decisiva - materialmente aquilatável - na qualidade de vida da população. As cidades são a ponta do sistema administrativo-governamental; é nelas que a base cidadã se instala. Nelas os homens comuns vivem, reproduzem-se e morrem. Nelas, a atenção aos serviços e direitos básicos, é que vão dar a real dimensão do que chamamos qualidade de vida. 

Na maratona eleitoral que ora se inicia, candidatos irão às urnas disputar  conseguir um posto de representante ou de gestor de suas jurisdições. Para elas, estruturalmente, e para a vida dos cidadãos como um todo é que, teoricamente, estarão voltados todas as atenções dos pleiteantes. Atenções, intenções, propostas e visões sobre futuro entrarão em cena. Umas factíveis e realistas. Grande parte, fantasiosas, destoantes e inaplicáveis. 

Entram em cena, além das ideologias, o futuro “real” das nossas cidades. Futuro de curto e de longo prazo, é bom que se diga. Prefeitos e vereadores, uma vez eleitos, têm, sim, uma missão. Os vencedores, ao longo de um mandato de quatro anos, têm a oportunidade de fazer a máquina pública andar, mas, também, estabelecer bases para o quevirá das cidades. 

Eles não recebem uma planta baixa. Herdam uma estrutura que se arrasta por gerações e precisa dar respostas às demandas contemporâneas. Se algum postulante não tiver a ciência dessa “herança” e a consciência de que é preciso resolver questões pendentes e vislumbrar o futuro não merece o voto do eleitor. Se não entender as cidades como organismos vivos, prementes de longevidades e, sobretudo, carentes de valorização da vida.

Que cada cidade desses nossos rincões seja Paris dentro de suas próprias limitações. Que cada cidade antes de ser luz - porque isso Nero fez por Roma - tenha gestores iluminados. Que transparência, capacidade gestora, honestidade, zelo pelo bem público e respeito pela cidade e pela cidadania seja o programa básico dos candidatos. 

Que todos busquem a excelência. Que o grau de dificuldade seja o máximo  que todos se esforcem para se superar, atingir a melhor nota com base em suas performances. Que malditos sejam os que não sejam fiéis a suas propostas e não se esmerem em pô-las em prática. Vencer eleição não equivale a ganhar medalhas, como alguns parecem pensar. Ganhar eleição é receber uma licença temporária, um passaporte, para pôr em voga propostas para as cidades. Isso posto,  vamos lá, atletas!!!!


por Edson de França 


Bólidos ápteros


  Tenho predileção por lembrar coisas boas. Faço-lhes reverências e, sempre que possível referências, o que é uma boa forma de espalhar sementes do bem e mandar as energias negativas e os vis humanóides para a grandessíssima que os pariu. Semear o bem além de promover a difusão da energia positiva que alimenta as almas é também uma maneira de espalhar conhecimento. 

É esse pensamento que me faz ocupar as horas de ociosidade com  a leitura de cronistas do passado. Uma hora encontro Antônio Maria, vou ao passeio com Rubem Braga ou Fernando Sabino, tomo umas doses com Vinicius e sigo. Aprecio, antes de tudo, as boas companhias. Hoje, do nada, riscou o batente de minha memória o conterrâneo Nathanael Alves. E por uma observação bem prosaica, digamos.

Nos tempos em que ganhava a vida como dublê de professor, precisamente lecionando a disciplina Jornalismo Opinativo, tive a ideia de trabalhar o conteúdo sobre a crônica jornalística trazendo para a sala de aula os cronistas de perto e para tanto, utilizei a orelha do livro. assinada por Aguinaldo Almeida e a crônica/título do livro O pássaro e a bala, da lavra do inesquecível cronista.

Na orelha, Almeida traça a composição da crônica, a confecção, partindo da sugestão do tema, oriundo de fato registrado no caldo noticioso, e a maestria do cronista em emprestar-lhe tonalidades que vão do poético/lírico às reflexões sobre a realidade  e os ditames da vida real. Até hoje não sei se os alunos captaram o intento ou aprenderam alguma coisa, mas passemos à frente. A intenção foi boa.

Durante o trajeto rumo ao trabalho costumo observar o que passa à volta. Letreiros, pichações, grafismos, placas de carros, fachada de lojas o que for. Os cenários não mudam muito ao longo dos anos, mas o olhar se detém diariamente nesse exercício sem fins. Acho que na maioria das vezes pouco ou nada fica registrado no HD das coisas úteis e recuperáveis de supetão. 

Pois bem. Há dias uma palavra, que aos poucos intuí ser uma sigla, me chamou a atenção, instalou-se e ficou rodando pedindo uma palavra, um parecer, uma elucubração qualquer. Tratava-se de Aptiro que, de acordo com minha intuição, significa Associação Paraibana de Tiro (?). A sigla me lembrou a palavra áptero e, a cada novo avistamento, ela assume para mim esse significado: designação entomológica, utilizada para referir-se a animais sem asas (do grego, a - "sem", pteros - "asas"). Descreve alguns tipos de insetos etc e etc… 

É nesse ponto da estória que reencontro o cronista em sua sacada brilhante de comparar o episódio em que um pássaro pousa  no microfone do cardeal D. Avelar Brandão Vilela durante uma celebração católica em prol da ecologia em Salvador, Bahia, e a bala que matou outro religioso. “Em outra missa, em El Salvador, uma bala voa de uma carabina e rasga o coração do arcebispo Oscar Romero. (...) Em cidades homônimas da mesma América, o pássaro e a bala. A vida e a morte em rezas da mesma igreja, em apelos da mesma gente”, escreveu o cronista.

Balas são pássaros sem asas, ápteros que voam, cuja determinação nata é não promover poesia e, sim, a aniquilação, a destruição, a morte. Os pássaros, por sua vez,  são a celebração da vida. O voo livre, o canto, os afazeres da vida produtiva, que garantem a existência e a reprodução. Os pássaros obedecem fielmente aos ciclos naturais, constituem espécie sempre ameaçada pelo egoísmo humano que quer reter a beleza em gaiolas e o chumbo traiçoeiro dos predadores. 

As balas, mesmo quando erram o alvo da ira ou da estupidez, acertam um inocente. As balas não celebram nada, são arautos da destruição e do esvaziamento das palavras. Têm uma existência mesquinha. É bom lembrar disso quando se olhar/ler a sigla. 

A simples comparação, porém, tem seu lado bom: cumpriu uma missão. Me fez revisitar o sábio cronista e, de quebra, permitiu mandar um alô inteligente para quem se arrisca a ler meus escritos. Eu, sigo dando graças aos céus pelo farol dos cronistas. E é só por hoje.


por Edson de França 




quinta-feira, 29 de julho de 2021

Os permanentes da estação


 

Edson de França*


Todos os dias é um vai e vem/ A vida se repete na estação/ Tem gente que chega pra ficar/ tem gente que vai pra nunca mais (...) E assim chegar e partir são só dois lados da mesma viagem”, cunharam os poetas Fernando Brant e Milton Nascimento na inesquecível canção Encontros e despedidas (Milton Nascimento, 1985). 

Quando os poetas utilizam a palavra ficar não querem dizer efetivamente permanecer na estação. As estações são portas para quem chegou para ocupar um lugar no espaço da cidade. As estações são lugares de passagem. Não são definitivamente locais de permanência prolongada. Os transeuntes estão ali temporariamente. Objetivos, buscam apenas embarcar em um meio que os transporte a algum lugar outro.

Vão às suas casas atender compromissos profissionais, visitas sociais ou familiares. Chegam à estação, aspiram ar, analisam o ambiente, acabam respirando algo – se forem ao banheiro, então, seus narizes serão contemplados com um misto de odores do cão - e levando consigo suores, fumaças de cigarro, perfume barato, resquícios de gente em movimento em si. Demoram-se pouco. Se vão.

São populações hegemonicamente flutuantes. As estações são mutantes, multiformes, transformam e redimensionam imediatamente sua paisagem. Obedecem à logica cartesiana e inexorável dos relógios. Ali todo mundo tem pressa. Até os que chegam “só para olhar” tem um tempo determinado. 

Seja de ônibus, trens, metrô, o que se quer é sair dali, buscar destinos. Deseja-se, na maioria dos casos, é abandonar o local, permanecer só o tempo da espera. 

Mas como é toda regra tácita, as exceções mostram-se escandalosas. Há uma população que fica, se estabelece, cria raízes. Uma turba que trafega entre o mundo visível e o invisível. Que ficam ali, feito árvores, monumentos a estática humana tão somente por não ter onde ir. Um endereço, um CEP...

Os terminais de integração, as rodoviárias, as estações de trem vivem uma rotina intrépida. Movimento e pouca permanência dão o tom, fazem a logica e até o charme prosaico do local. Os que, por necessidade, ali criam raízes são a vida que estagna, a paisagem vegetativa, a hera, a flor vital exposta a intempéries da razão humana. A paisagem se pintada, cantada, descrita ou documentada, os contempla. Não os inclui, os fixa em cores, sons, versos. A insensibilidade humana, por seu turno, jamais os lê.

*Jornalista, poeta e cronista

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Marchinha do língua de graxa

 

Repartição é uma palavra antiga. O vocábulo “antanho”, como fazem uso os doutos, talvez lhe adjetivasse melhor. Quando penso na palavra, e no ambiente que ela evoca, invoco mentalmente a personagem que a frequentaria. 

Um tipo franzino, trajando calça de brim com vinco acentuado, camisa lisa de manga curta impecavelmente engomada, sapatos gastos, brilhando mais que trilha de lesma. Completando o visu escovinha, o cabelinho repartido no meio e um bigodinho sovina. Em dias mais solenes traja um paletó meio puído, herança de algum tio defunto.

Quem passeia pelas ruas do passado como eu notará que a figura que compus lembra o figurino do personagem “O Amigo da Onça”, criação do cartunista Perícles de Andrade Maranhão, publicado pela Revista Cruzeiro, de 1943 a 1972. Tracei inicialmente os caracteres físicos, mas não esqueci os atributos psicológicos inerentes.

Exemplares do típico funcionário da repartição, que na nomenclatura moderna recebe o nome de secretaria, setor ou escritório, podem ser encontrados nos romances e contos de Machado de Assis e Lima Barreto. 

Imagino-o saindo de casa, às  6 horas e quinze minutos de uma segunda-feira, de sua morada localizada em um subúrbio bem afamado, dando um beijo na testa da “fiel companheira" e proclamando: “Não posso me atrasar para o expediente na repartição!”

A primeira vista ele engana. É muito gente boa. Leva uma vida simples vida simples, frugal, sem muitos vícios. Mas a convivência certamente o levará a concluir que, por trás da lã superficial, encontra-se o verdadeiro “finório da repartição”.

Não quero de forma alguma afirmar que a figura é uma espécie endêmica dentro das repartições do funcionalismo público. Os cartórios estão cheios de engomadinhos suspeitos que compõem, sem jaça, essa irmandade. Aponte o seu, onde quer que esteja.

São gente boa em boa parte. Escondem uns pecadilhos decerto, sob a pele de “cidadãos de bem”. Porém, quando compõem a “legião do mal” se destacam escandalosamente pelo caráter duvidoso, pela ética controversa e, sobretudo, por aquele tapete vermelho portátil que ele estende toda vez que o chefe cruza o batente da repartição.

A repartição se modernizou, é claro. Respira-se outros ares, os figurinos sofreram a influência dos modismos hodiernos. Aquele tipinho foi ultrapassado, assim como as rotinas dos setores. Mas guardem a imagem. A fauna humana que nela se reproduz, entretanto, vez ou outra sente saudades de “antanho” mostra-se exuberantemente reacionária, bem disfarçada por trajes modernos.

A maioria, como dissemos, é gente boníssima. Pacatos na medida certa, educados, prestativos, até ciosos de seus ofícios. Mas, para toda regra rolam exceções estrambóticas. Eis o feudo dos ardilosos, sonsos e sagazes da repartição, aqueles que compartilham expedientes similares ao amigo da onça aludido acima, com o agravante de serem periculosos, com tendências a dedos-duros e, sua maior característica, chaleiras do chefe. 

Em sua homenagem, o poeta popular (no caso, o cronista que vos dirige a palavra), dada as singularidades do colega, traçou os versos que seguem, cantáveis em ritmo de marchinha de carnaval. 


Pra polir bem 

Você não acha

Um lambe botas

Tem que ter língua de graxa



Um escovão 

E uma escovinha

Para manter 

O piso do chefe na linha  


Passa, passa o trapo companheiro 

Lambe até brilhar 

Que o chefe é tenso 

Não dá bom dia 

E anda a procura de uma boa montaria 

De alguém que chegue

Se curve e brigue 

Para manter o calçado real nos trinques 


Dar à tramela

O texto e o tacho

Que lambe-lambe

Já nasceu pra ser capacho 


Deixa-me rir 

Não me socorre 

Que o tal menino

Se não lamber botas morre.


por Edson de França (poeta, cronista e Jornalista)


 


sexta-feira, 21 de maio de 2021

Vivas à incompetência

A incompetência sempre foi uma tônica marcante no sistema de meritocracia instalado por aqui. Ela acomete espécimes vários; por vezes incautos, por vezes, ladinos. Tradicionalmente, sempre convivemos com essas espécies espalhadas por todos os recantos da administração pública. Ironicamente, na iniciativa privada, apesar das exigências mais rígidas, eles também se criam. Em qualquer setor, contudo, a aparição deles parece seguir uma regra tácita e pétrea: mostrou algum grau de incompetência, vai para o começo da fila. Isso quando não viram os protegidos de primeira hora no organograma institucional e no sistema de promoções.

Tal aceitação tem explicações, claro. O incompetente, geralmente, é afável; troca suas limitações por afagos dedicados a quem de direito. Também é falante, simpático e dedicado às atividades triviais e prosaicas do ambiente de trabalho; raramente um incompetente é um mega chato. Claro que as exceções existem, mas, até o final da edição deste textículo, ainda não havíamos recebido os últimos levantamentos acerca dessas ocorrências. 

Por outro lado, quando alçado a algum posto de chefia, o incompetente se transforma. De uma criatura suportável dentro dos limites, torna-se uma excrescência coroada. Um abacaxi estragado, mas com ornamentos no cocoruto. Pensa ele que uma repentina e arranjada ascensão confere, automaticamente, ao portador um naco de poder. Para exercê-lo, por não ter maiores atributos vocacionais e habilidades profissionais,  ele incorpora um papelzinho qualquer para fiscalizar e cobrar trivialidades. A indumentária de capataz lhe cai bem.   

Mas a maior habilidade do incompetente talvez seja a capacidade de adular os chefes; troca fácil a capacidade laborativa por uma boa habilidade de lamber botas, a velha e boa bajulação. O incompetente comum desfila pelos salões com sua fantasia festiva. A fauna, porém, é variada. Não estranhe se do nada um mastodonte se materializar na sua frente, portando toda a sutileza que seu corpanzil admite. Vão sobrar arrogância, nariz empinado e um certo ar de superioridade intrínseco.

Nos últimos tempos, no nosso Brasil in-varonil, verifica-se uma verdadeira onda de incompetências laureadas. Emergiram das catacumbas, do segundo plano e da coadjuvância inofensiva. Empoderados, feito zumbis devoradores de cérebros, ocuparam o proscênio, compondo um espetáculo grotesco e potencialmente perigoso e antiproducente. Afora, claro, suas grandes contribuições satânicas para os ambientes de trabalho: a desarmonia, o desequilíbrio e o desestímulo.Vivemos a época do elogio da mediocridade, da nulidade e da incompetência congênita.

Infiltrados. Podem ser concursados, de carreira ou em comissão. Se espalham  pelas administrações estatais, forças armadas, judiciário, relações exteriores, enfim. No campo político, outra pá de gente estranha, devidamente eleita e empossada. O certo é que escancararam o portal desse inferno particular da vida brasileira e as  incompetências puseram a cara fora da máscara. Além das trapalhadas, naturais da espécie, o discurso que eles proferem serve para compor a pantomima. Incompetência gourmet, mal falante, servida em pratos devidamente sujos.

Para terminar esse texticulo é preciso dizer que o jornalismo e o mundo artístico não escapam dessa onda não. Sem surpresa alguma, pela cena artística figuram certa incompetência para criar (a intrínseca falta de talento) e capacidade de gerenciar a carreira, pecado de quem se acha liberal, mas não sobrevive às leis de mercado. Do lado jornalístico, a fala comprometida vem demonstrando a incompetência de velhísimas raposas da comunicação brasileira, que só conseguem ser independentes quando o vento sopra a seu favor. 

O que salva - ou pode dar sobrevida - a essa galera é que a categoria “incompetente” não é titulo que se lance no currículo. A marca não se fixa no papel, vai estampado na testa mesmo. Afinal, quem vê cara só vê cara.

por Edson de França