quinta-feira, 19 de maio de 2016

A vez da opinião desqualificada

Dos debates em salas de aula aprendemos, sob toda a tensão gerada pela provocação dos nossos mestres mediadores, abalizar as opiniões emitidas. Talvez pela condição tête à tête das pelejas na ágora e pelo caráter “teórico-científico” empregado, tinha-se um respeito naturalizado pelos próprios brios e, sobretudo, pelo dos outros. Tinha-se medo da vergonha pública, mesmo em grupo tão pequeno.
Acalorava-se algumas vezes, é bem verdade. Noutras vezes, alguém era flagrado na mais pura ingenuidade dos intentos, incorrendo em posicionamentos simplórios e diatribes estabanadas. Alguns eram fãs do achismo aberto, baseando suas opiniões basicamente na altura dos seus umbigos. Outros, como eu, tímidos quase pusilânimes, eram expectadores... talvez por extrema timidez, talvez por incapacidade de formulação, talvez por puro desconhecimento, talvez...
A emissão de opinião pode ter duas origens. Surgem do conhecimento e da análise, o que dá segurança e dificuldades de contestação; ou brotam da “segurança” adquirida pela ilusão do (pouco) saber ou pelo exercício banal e gratuito da língua de pau dos palradores. No ultimo caso, a responsabilidade pela opinião e a estabilidade dos argumentos são elementos ausentes na equação.
Assistimos nos últimos tempos, em muito motivado pela onipresença das redes sociais, o exercício público e massivo da emissão de opinião. Digo em muito, porque defendo a tese de que tal volume e nível de mentes opiniosas e respectivos produtos conceituais sempre existiram. A rede só fez expô-los e, ao mesmo tempo em que uns perderam a vergonha; outros, ladinamente, utilizam-se dos véus para emitirem juízos tortuosos sob a grossa couraça do anonimato.    
Não que isso seja mal. Ao contrário, representa a multiplicidade saudável dos posicionamentos. O porém é que, acompanhando a horda opinativa, desfilam a inexperiência, a má fé, a precocidade dos apressadinhos, os interesses escusos, a falta de visão analítica e outros males parecidos dessa odiosa família.
Tirou-se da vitrine, em muito, a opinião dos profissionais da imprensa e acadêmica que, por décadas, foram hegemônicas, venderam a falácia da categoria do produto enquanto, teoricamente, “faziam muitas cabeças” e orientavam pensamentos e comportamentos coletivos. Essa era foi superada.
Hoje, contudo, tanto a opinião dos colunistas como a opinião do desavisado parecem se fundir ou seguir a mesma lógica. O amadorismo, atrelado a falsa impressão de ciência que querem impor, parece ser a marca mais gritante da opinião em nossos dias. Doutos de toda ordem ou de porra nenhuma se assemelham. Poluem o debate público, querem impor suas razões a ferro e fogo, tem a mente voltada para o dirigismo manipulador, caçam incautos prosélitos e, enfim, se esmeram cada dia mais no superficialismo das formulações desabridas, descabidas e pobres de teor analítico.

por Edson de França 

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Encefalograma dos velhacos

Esbarramos com eles todos os dias. Não há a principio uma descrição universal que os identifique. Cada um tem particularidades físicas definidas. Os meus, feito Proteus, me aparecem de todos os jeitos (e defeitos), portando sempre adereços que facilitam, de longe, sua identificação.
Se acaso (utilizando todo breu e sadismo do meu humor) descrevesse os atributos físicos, pantomímicos e enumerasse os acessórios indispensáveis da composição das personas, certamente todos identificariam num estalo de quem falo. Tornaria-os transparentes e, seus chistes, muito cristalinos.  Talvez, por isso, fosse acusado de comportamento antiético. Porém nada me impede de descrever, caricaturamente, aquele que parece ser o estado de espirito que eles destilam por aí. Melhor até, a patética composição humana, psíquica e existencial do espécime.
Velhacos e calhordas. Cada um deles, independente da idade, zelam pouco pela integridade. São, naturalmente, dados a expedientes pouco honestos. Parecem sempre estar montando algum ardil para se dar bem. Criam situações, envolvem terceiros em seus planejamentos e, de preferencia, tem um radar atento para flagrar incautos e enredá-los em sua malha de trevas. Na maioria das vezes, porém, usam uma entidade divina para justificar seus atos. Vendem iluminação.
Na realidade, ao que me consta, eles são dotados de dois neurônios apenas. Unidades que não executam o processo natural de sinapses. Não se articulam para formar um todo coerente. Cada um deles age por si, independentemente da vontade o outro.
Um, vesgamente, avalia o mundo e captura-o, com todas as deturpações possíveis, para servir de lastro à formatação dos pontos de vista com que tenta ser a palmatória do mundo. Deles partem as análises mais engenhosas e críticas mais ferinas, centrados na mais pura má fé e os projetos mais grandiosos, com um potencial de ilusão imenso.  
O outro, objetivo e capcioso, não oferece ao portador espécie nenhuma de auto-crítica ao seu parasitismo endêmico. Enxergam na vida uma materialidade só. Um queijo atirado às ratazanas, onde a elasticidade do estômago e o tamanho da dentuça estabelecem as regras da convivência.
Agem por todos os períodos do ano. São epidêmicos em todos os quadrantes. Mas, quando os períodos eleitorais se aproximam, os seres bi-neuroniais sentem sua atividade cerebral atingir a excitação máxima. Se olhares em volta, devem ter alguns acampados perto de tua casa.

por Edson de França


        

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Sem choro e sem vela

No episódio fatídico da malograda Copa do Mundo de 2014, assistimos a um impressionante comportamento remissivo e bem "a nossa cara". A lesa contagem regressiva para a almejada conquista do hexacampeonato mundial. Eram sete os passos que nosso treinador fazia questão de lembrar, a todo instante. Era o prólogo de cada partida. O ensaio tatibitate do êxtase, materializado num galope cabalístico.
O ato (ou a bravata, como queiram) era uma espécie de referência honrosa à moda criada por Mario Lobo Zagalo, durante a campanha do tetra, em 1994 (Diga-se de passagem, a conquista mais insossa de que se tem noticia na história dos mundiais. Tanto que acredito que ali os deuses vagabundos do futebol, desocupados que só eles, ali puseram as mãos e jogaram os búzios).
Nosso treinador embarcou na mesma onda e passou a destilar um mantra – uma forma de patuá vocálico - para atrair bons fluidos, creio. Eram os sete passos para a conquista, mas os deuses também vingativos do futebol injetaram câimbras nas canetas da “poderosa” equipe ali por volta do quinto, quando, para não fugir do cabalismo, sofremos uma derrota acachapante por gloriosos sete a um.
A referência aberta aos dotes advinhatórios e cabalísticos do “Velho Lobo” nos remete, sem escalas, a um dos nossos maiores problemas. Deixamos de lado muitas vezes a seriedade, a análise prática das coisas objetivas, e caímos no mundo das fabulações, como se toda conquista fosse dom divino e se sustentasse a base de forças extra-humanas ou do acaso das meizinhas, dos feitiços caseiros, das crendices e das superstições.
Nossos boleiros de bancada, por sua vez, recorrem ao baú dos tabus para vender a ilusão de vitória, como se isso valesse como passaporte fiel para atingir objetivos. Daí, a forma escolhida para antecipar um resultado satisfatório é ir ao baú da história para enumerar coincidências. Tomamos com esse comportamento muito gols. Um daqueles sete ao menos pode ser creditado nessa conta aí.
Foram sete gols. Rápidos, certeiros, mortais. Foram sete gols e a Seleção brasileira amargou o malogro do sonho do hexa campeonato. Foram sete gols construídos de forma até simples. Uma engenharia eficiente como um elevador da Thissen Krupp ou da Atlas Shindler.
Perdemos para uma seleção tida e alardeada como mecânica. “Os alemães tem cintura dura. Prá cima deles, fulaninho dos anzóis”, bradava um de nossos “queridíssimos” locutores esportivos. Saibas, porém, Macunaíma, que a mecânica casa-se integralmente com a tecnologia e esta, diretamente, com os conceitos qualificativos de eficiência e eficácia.
As peças dos Mercedes Benz ou dos Audis da vida, ao que me consta, não são feitos de geléia e, mesmo assim, quando postas em movimento, agem como equipe. A deficiência motriz de uma peça é sempre compensada ou complementada por outra. Ao final, a máquina mostra sua forma ágil, dinâmica, efetiva, vitoriosa. A máquina que queríamos ter, seja como protótipo de nossa eficiência, seja como seleção, né não?

Se o futebol ou aquele episódio em especial serve-nos de lição, que se fixe apenas uma. Somos uma gente dada fé e, através dela, tentamos superar nossa falta de empenho nos estudos, na pesquisa, no planejamento, na construção do conhecimento, na confecção das estratégias e na antecipação dos fatos. Fazemos muito esforço, é inegável. Mas largamos tudo, num piscar de olhos, ao sabor das improbabilidades dos acasos felizes. Somos assim no futebol, na politica e em vários outros quadrantes da vida mundana. Infelizmente.

terça-feira, 12 de abril de 2016

Diletantismo improdutivo

     
      Inquiri um novo amigo do peito e da mente para saber minimamente o que quer dizer a palavra diletante. Queria conhecer a palavra. Primeiramente por seus atributos semânticos formais e, num segundo plano, pelos qualificativos atribuídos a quem se autodenomina, é alvejado ou padece dos sintomas advindos de tal denominação.
Diligente, meu amigo Google (isso daria uma bela canção de Raul!), me apontou alguns qualificativos. Uns muito bons. Inclusive me considerei diletante pelos seus aspectos mais positivos, claro. Analisemos o que me soprou o parceiro.
1.   (Obsoleto) aficionado por música;
2.   (Extensão de sentido) amante das artes e literatura;
3.   quem se ocupa de um assunto por gosto, como amador, e não como especialista;
4.   quem muda com muita frequência o objeto das suas atenções (o que, muitas vezes, está associado à ociosidade); quem não mantém o foco em um assunto ao qual atribui prioridade (ou em poucos deles) e o(s) abandona antes de alcançar objetivos palpáveis.
Dessas quatro acepções, em pelo menos três me encaixaria. Assumiria, ou melhor assumo com orgulho os qualificativos descritos. Explico. Curto música sem limites, amo todas as formas de arte e cometo minhas literatices (eita, palavrinha pejorativa!) e me ocupo, como artífice, de alguns fazeres (gastronomia, poesia, música, serralharia e artes plásticas).
Como minha sobrevivência não me exige dedicação integral a nenhuma delas, posso me permitir brincar com essas expressões, distribuindo meus mimos e atenção a elas na hora em que bem quiser. Nada me é exigido nesse tocante, nem por quem está fora, me vê e me analisa, nem em minha consciência vaga. Deixei-me ficar por aí.
Contudo, pensando em algumas situações que envolvem pessoas e atos reprováveis, do ponto de vista profissional, apliquei à escandalosos comportamentos alheios a condição de diletantes. Ao abuso do exercício do dilentatismo como descompromisso e desleixo. Utilizei-a como sinônimo de entes desistentes e indecisos, porém mantive a dúvida quanto à precisão daquele vocábulo para o caso.
Mas este foi o motivo inicial da oitiva ao “pai dos burros” digital. Fiquei contente, após a saciar a curiosidade com o achado, de minha sagacidade verbal e resolvi digerir um pouco o conceito.
Pus a carapuça. Encontrei-me, nu, em algumas situações de desistência e indolência. Mas como toda auto-estima que se preza, acabei por me perdoar, deixando para o futuro uma análise mais impessoal de minhas diletâncias não doentias, sobretudo aquelas que, pela amplitude de alcance, acabaram por prejudicar pessoas ou os grupos profissionais em que me insiro.
O diletantismo, na sua pior acepção, é um vicio moderno, detectável com relativa facilidade nos meios profissionais. Em meio a idéia de competitividade nos negócios e, internamente, nos microcampos de trabalho, as pessoas se sentem impelidas a portarem-se efetivas e (oni) presentes. Pior, sugerirem competências que, na grande maioria das vezes, não passam de ensaios de fancaria.
Bem pior, porém, é constatar após rápida convivência que os adeptos dessa fraude profissional não passam de entidades rasteiras em conhecimento, em habilidades e, sobretudo, em competências para exercer com afinco aquelas atividades a que se propõe entusiasmadas num primeiro momento.
Por hábito, as pessoas passam a assumir (ou presumir) aptidões para atuarem nas mais diversas áreas e embarcam nos projetos sem a devida carga de humildade e sentimento de colaboração. Após as decepções naturais advindas de seu despreparo, saltam do barco, lavando as mãos, reclamando de deus e do mundo e, sobretudo, frustrados em seus desejos malfadados de se destacar, afinal era esse o seu intento inicial.  
Entendo profissionalismo como a capacidade de dominar uma área de atuação com a leveza dos aprendizes. Ou seja, nada de orgulho e, sim, ciência do oficio e a consciência de que não sabe muito, estando sempre apto a novos aprendizados. Além disso, certa habilidade para adaptar-se a mudanças com tato e positividade. Tudo, claro, com a plena ciência de que desistências por capricho ou inadaptibilidade prejudicam a produção grupal e maculam o ser enquanto profissional. Nada que condiga com o comportamento nocivamtente parasitário dos diletantes de carteirinha.
No mais, mudar é sempre necessário, preciso, vital, mas pular de posto em posto, sem gerar contribuições e imprimir marcas é a antítese dos competidores e empreendedores. É, em suma, um processo de auto-sabotagem que, por exercício deliberado e irresponsável, espalha malefícios e contamina todo o tecido das linhas produtivas, descaracterizando seus objetivos e metas.  
por Edson de França

   

terça-feira, 5 de abril de 2016

Êta, mundo véi com porteira!!

De passagem pela frente da Tv, flagro um trechinho, uma chamada em verdade, de um folhetim global intitulado Eita, mundo bom. Nele um caquético comendador, interpretado pelo veteraníssimo Luiz Gustavo, encomenda a uma alcoviteira da terceira idade, ardiloso plano para atrapalhar o encontro romântico de dois jovens mancebos. Esse simplório recorte cênico, espécie de chamariz para a lesa assistência, é uma síntese da linha seguida pela produção novelística brasileira.
Afora isso, mesmo não sendo assíduo assistente da trama, sei que existem outras torpezas humanas como a busca desenfreada por uma relíquia que daria direito a uma fortuna e um rufião que arrasta uma tabaroa para a cidade grande, a emprega num dancing e consome seus ganhos. Enquanto, o tal mundo bom resume-se a um alesado rebento perdido que desfila sua ingenuidade oligofrênica novela à dentro. Provavelmente, outras relíquias da morte do caráter humano devem pontuar a produção daquela produção televisiva.  
Mas, é essa a risca, a cartilha de autores e emissões midiáticas. Religiosamente, o brasileiro médio tem acesso fácil e ilimitado a um desfile de tramas, maquiavelismos, mesquinhezas, egotrips exarcebados, puxadas de tapete e o que mais você puder imaginar em termos de torpeza e sordidez humana. As produções esmeram-se a reduzir o ser humano, a existência e o convívio social a um simples jogo de artimanhas em nome das vantagens pessoais, através do exercício do gozo, do escarnio, da humilhação e das lesões morais e físicas de um persona a outrem.
Há muito tempo que as tramas globais dividem os habitantes do velho planeta em duas categorias: os lesos, minimamente honestos e, por isso, pouco quedados e merecedores de vitórias; e os espertos (ou fortes), ladinos por natureza e caráter. Nem sempre, claro, esses últimos conseguem seus intentos – os autores, por vezes, reservam a suas crias malévolas finais infelizes e tropeços vexatórios -, mas a lógica que move a máquina cênica nivela a todos por baixo.
Não há um vilão só, a vilania atinge de 60 a 70 por cento dos personagens criados e, até os bonzinhos não escondem seus pecadilhos sórdidos.
A trama, como a própria carga semântica da palavra sugere, é composta por situações ardilosas que funcionam como ganchos para a assistência. É assim na arte literária, teatral e cinematográfica. É preciso enredar o público, levando-o a escolher um lado ou simplesmente apreciar a dança eufórica das personalidades em atritos e conchavos.
Cada uma das artes citadas, no entanto, guarda certo distanciamento do espectador ou leitor. Nelas, a intensidade do diálogo entre o texto, a encenação e o espectador é minorada por um exercício pessoal de reflexão. Creio que o mesmo não acontece no formato novela que, naturalmente, fustiga a mente com pílulas diárias e requerem a participação cativa, acrítica e em níveis de fidelidade patológica. Não sei dizer se isso é bom ou mal. Só sei, cá pra nós, se quiser encontrar “mundo bom”, não se enrede nos folhetins globais.
por Edson de França
 

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Chá de “puxadinho"

           
 A composição urbana de nossas cidades, em sua porção mais suburbana, é pra lá de caótica. Ela, flagrantemente, acaba revelando a face mais dolorosa de nossa condição socioeconômica. Enquanto nas regiões mais centrais e nobres das urbes, a tendência é que os aglomerados humanos sigam uma lógica de organização, nos arrabaldes impera a informalidade e o aproveitamento irracional dos espaços exíguos. Por lá, o “puxadinho” é quase uma instituição, uma particularidade típica dos “morros mal vestidos”.
            Para quem não sabe do que fala o cronista é preciso recorrer à sociologia e à antropologia dos andarilhos urbanos – os flaneurs -  para captar em essência o fenômeno. “Puxadinho” é, a rigor, a saída encontrada pelos abandonados da sorte para abrigar uma grande quantidade de pessoas em certo lugar. Sabendo da sentimentalidade humana natural dos pobres, não é difícil intuir que, destituídos dos bens materiais que desumanizam e geram o desapego, só lhes resta manter os parentes, aderentes e agregados próximos. É uma espécie de solidariedade, de simbiose (às vezes, com veias de parasitismo, mas deixemos o caso para outra crônica), da celebração ritualística dos laços afetivos.
            O “puxadinho” é filho da necessidade. Ela resolve, informalmente, nosso déficit habitacional. É a alternativa dos pobres de toda ordem para organizar e abrigar seus rebentos primais e, consequentemente, os nascituros desses rebentos. Quando me referi ao flaneur lá no alto, é que foi flanando, em um período de atividades inúteis, como recenseador, que aportei em alguns “cortiços” suburbanamente formados a base de “puxadinhos”. Um puxadinho (ou puxadinha) sempre acaba puxando outro até virar uma série, um acampamento sujeito à miséria endêmica e às atividades mais promíscuas.
            Em um terreno de, em média, de 300m², localizado dentro do triângulo formado pela trinca da Beira Molhada, Ninho da Perua e Bola na Rede,  seu João Apolinário ocupava a casa da frente. Palmas e “ô de casa” não foram precisos. Seu João ocupava uma cadeira de balanço, as pernas rugosas, pés rachados e meio sujos descansavam displicentemente dependurados, feito esculturas de tocos de arvores decrépitas. A corrulepe jazia inútil aos pés do homem de 55 com aparência de, pelo menos, dez anos a mais.
Recebeu-me com a formalidade dos humildes. Comuniquei-lhe o nome e a missão e ele se prontificou a prestar as informações que eu necessitava.  Mandou “puxar o banco” espécie de escultura rudimentar, esconcha, produzida pelas astúcias de um aprendiz de marceneiro. Ofereceu café e se dispôs a responder às perguntas do questionário básico: nome, sobrenome, cônjuge, descendentes, moradores da unidade e coisas do tipo. Falou-me da composição familiar da casa “grande”. Mulher, filhos, netos, sobrinhos de longe que em sua casa encontravam abrigo. Entre um dado e outro, histórias da vida, experiências vividas e comentários genéricos sobre os mais variados assuntos.
Antes de a entrevista chegar ao fim, havia uma pergunta que interrogava ao líder da casa se o terreno era ocupado por outra habitação. Aí foi que descobri a magnitude do cortiço que ocupava aquela área. Pela lateral direita da casa principal, um corredor com musgos na parede e lodo no solo levava a outro mundo, um quadro pintado com cores berrantes e lúgubres, sob as astúcias literárias de Aloísio Azevedo e uma atmosfera musical múltipla e perturbadora.
Um casario mal-ajambrado, estacas fincadas por todo canto, arame farpado se confundindo com fiação elétrica improvisada de uma casa a outra, varal de roupa, roupas estendidas, uma profusão de meninos de todas as idades e mulheres, placas de fossa pontuando o terreno... Só ali consegui recensear cerca de 45 almas. Antes de me despedir, missão cumprida, ainda recebi um convite para voltar no final de semana pra “tomar uma”, na inauguração de mais um puxadinho. Era uma recepção ordinária para um pródigo desgarrado que estava voltando do sul. A “puxadinha” já estava em pé e o rebento desgarrado também acamparia no terreno do pai até deus mandar bom tempo.

por Edson de França        
                 

               
                               
                 
               














 

terça-feira, 27 de outubro de 2015

O legal (muitas vezes) é imoral

Participei dia desses, do lançamento de mais um programa de incentivo ao pequeno empreendedorismo. Entre as metas do programa constavam, além do incentivo financeiro óbvio, a disposição em regularizar os pequenos comerciantes, ou seja, tirá-los da total informalidade. O convencimento dos mesmos passava, claro, pelo aceno da bandeira legalista que promete, entre outras coisas, o acesso aos benefícios da Previdência, a habilitação jurídica para a concorrência nas licitações públicas e a entrada no rol dos cidadãos com direito a créditos bancários. São douradas as promessas para quem se dispor a abandonar o mercado informal.
Essa é uma parte da história contada pelos gestores. A isca. Não podemos, de fato, descartar os benefícios e o esforço legítimo e real, para levar aos simples comerciantes a condição mínima de legalidade. O que falta dizer, entretanto, é que todo esse esforço legalista, se tem algo de benemérito, tem também uma contrapartida: atuar sob as condições legais é render-se à vigilância estatal e, sobretudo, ter maiores compromissos com a receita pública, através de impostos e taxações. Não que isso contenha algo de imoral. Não! O problema vem, sobretudo, da carga de exigências, afora as garras dos rapinismos e burocracia, com que a máquina estatal acossa os incautos.
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Os ônibus urbanos das grandes cidades ostentam outdoors onde se lê: “Transporte ilegal de passageiros é crime”. O aviso alerta para os perigos advindos do uso disseminado, brasis a fora, dos tais transportes alternativos. Tudo certo, tudo bem, tudo lindo, tudo... legal. O que se esquece de dizer, no entanto, é que a condição em que os legais trafegam beiram as piores das alternatividades.
Basta visitar uma cidade qualquer de uma região metropolitana, para sentir o real peso da legalidade. Não é nada legal quarar em um ponto de ônibus sem cobertura durante, no mínimo, quarenta minutos. Sei que, neste caso, põe-se em cheque a reponsabilidade do poder público, mas esse é mais um sinal do compromisso do estado brasileiro com as condições legais.
Quando surge o busão, a entidade denominada de cidadão – no caso, sem qualificativo na escala social como um time sem série – tem um susto. Uma carcaça enferrujada que se arrasta em sua direção, pensa e de pneus meio carecas. Quando adentra, outra amarga surpresa.”Lata sardinha” seria mais confortável. São pingentes humanos pendurados nos estribos, assentos largando de bancos, bancos largando do chão, motorista esbaforido, estressado, mal pago e, entrementes, senhor de habilidades discutíveis.
Ora, no momento civilizatório, onde a grande maioria das pessoas cumpre horário e para isso necessita, decisivamente, de uma forma de deslocamento rápida e precisa, nossos sistemas públicos deixam a desejar. Pergunta-se: como aderir a legalidade, se o sistema não atende às necessidades e, em muitos casos, empatam em termos de qualidade e capricho com os alternativos, os informais e os “fora-da-lei”.
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Acho que o leitor mais atento há de perguntar-se “o que essas duas histórias têm em comum?” A rigor, responderia o cronista, trata-se de um desabafo que muitos gostariam de expressar, creio. Viver no Brasil, em alguns momentos, é ser convidado a ser legal, a participar do banquete da legalidade, usufruir de todos os direitos, benefícios e segurança que ela poderia propiciar. No entanto, nada é mais falho que as condições legais postas por alguns dos nossos serviços básicos. Nesse quesito, ainda estamos em construção, carregando pedras e a argamassa para garantir a segurança do muro.

por Edson  de França