quinta-feira, 5 de março de 2015

A palavra ensolarada

A página (ou a tela para os moderninhos) em branco é o maior desafio para o escritor. Frente a frente com ela neguinho vacila, em casos extremos faz sair fumaça carapinha acima. É um sofrimento intenso que antecede e não se extingue com a colocação da primeira palavra. Para muitos o ato de escrever beira as margens do impossível, algo aparentado com uma subida ao topo do Aconcágua sem agasalhos ou instrumentos de proteção para alpinistas.
Mesmo no jornalismo, atividade por excelência avessa ao indefinível chamado inspiração, mais afeita aos redatores que aos escritores puro sangue, é por vezes angustiante encadear as ideias. E olhe que  processo de produção jornalística prende-se mais ao imperativo temporal (dead line) que às questões estilísticas. Ele começa, via de regra, pela coleta de informações, passa algumas vezes pelo crivo da checagem para, finalmente, chegar a elaboração do texto. Aí é a hora de elencar informações por ordem de importância, selecionar as palavras certas que condigam com a objetividade que o ofício exige e só aí começar a macular a página. É mecânico, dizem, mas não de todo liberto da angustia.
Ela, a palavra, enquanto isso, parece escarnecer dos dilemas do pobre escrevinhador. Seja no texto mais literário, seja no texto mais indicial, esquemático a tragédia se repete. É dilema e tamos conversados. É no fundo um joguinho de esconde-esconde, em que as palavras, libertas por natureza, faíscam na superfície nada límpida da mente e lançam desafios a quem queira fisga-las. “Tens uma idéia, infeliz?” – parecem perguntar. “Então, olhe para nós e escolha as melhores para dar vida aos seus pensamentos!”.
Creio nas palavras como entidades virtuais e, naturalmente, polissêmicas. Autônomas, sobretudo. Detestam as amarras das ideias fixas. Atraem-nos para as profundezas dos conteúdos instigantes. Namoram brincalhonas com a inventividade, com a inventação e com a criatividade, essas coisas que colorem a imaginação de quem escreve e quem, por acaso, encontra prazer em consumir textos. Amigos da palavra, um e outro, separados pela “intransponível” barreira da página em branco. A palavra é um signo linguístico que adquire materialidade na página, mas exige decifração.
A palavra detesta a preguiça. A inércia mental de quem não insiste, não martela, não se abre ao desafio de provocar uma produção textual qualquer. Abomina também a indolência de quem renega a capacidade de decifrar signos ou símbolos. O mundo só é mundo através do uso palavra. Do usufruto de seus aromas, texturas, armadilhagens. De sua capacidade imensurável de criar laços, mundos, combinações alquímicas para guerra ou para a almejada paz entre os homens.
Se o escrevinhador, na real, quer produzir algo, elas batem a porta tal qual a flor que não se cheira da velha canção de Pepeu Gomes: “Toda manhã ela bate em minha porta, toca em minha janela só pra ver o sol entrar”. O velho cronista, do alto de seus dilemas criativos assevera: ”eu lhe asseguro que ela não é flor que se cheire, mas, mais que o sol, ensolara o coração”. A página em branco, afinal, é só mais uma rinha de esgrima entre um ente “criador” e o complicado mundo da comunicação entre as pessoas.

por Edson de França 


segunda-feira, 2 de março de 2015

Incoerências da arte política

            Na atividade política você pode encontrar de tudo um pouco. A grande maioria dos qualificativos sugerindo positividade em atos e imaginário. Ética, trabalho duro, empenho, paixão, denodo, desapego e esmerado espírito público; não necessariamente nessa ordem, nem em estado puro, nem muito menos com a aura de positividade que tais palavras possam sugerir. O que marca a política como estigmas são os totais e mais arraigados jogos de incoerência.
            A atividade política não é uma atividade digamos normal como cultivar a terra, tratar de animais, colher os frutos da terra, pregar no deserto e comer gafanhotos. Trabalho braçal e penitencias sujeitas aos humores da terra. Também não é uma arte no sentido estrito como a fala escorreita (ou língua direita, como diziam os índios americanos), a produção de textos para consumo e o deleite, a melodia das composições musicais com a flauta de pan ou a harmonização de cores na reprodução serenas marinas. Coisa de gente afeita ao onírico, à quimera e aos sentimentos impalpáveis. Nada disso.
A arte da política tem a ver com o relacionamento humano, no que ele tem de mais voraz e com o dirigismo que o poder faculta a um homem sobre outro. A arte da política tem a ver com a manipulação de vontades coletivas e com o carreamento dessas vontades na direção de um objetivo. O objetivo final é o poder de mando. Se há algo de positivo na pratica política – um projeto de sociedade mais justa, por exemplo - geralmente sendo desvirtuado e convertido em poder de mando e anulação do discurso e da vontade do outro. Politica, enfim, tem a ver com mando e submissão.
Claro que, por teoria e idealismo, podemos crer na política como sinônimo de participação social, ou seja, como vetor da construção da sociedade através da representatividade e da pressão de grupos e cidadãos. Mas essa, vamos dizer, não é a regra no mundo pratico. O mundo prático carece de figuras que dirijam e de outras que aceitem (ou sejam levados) a submissão. Em meio a tudo isso flutua o “discurso” que mantem os dois integrados, numa simbiose parasitária. Os submissos, claro, doando a seiva para a manutenção daqueles outros.
É no campo discursivo que se estabelecem as controvertidas regras do jogo. Se algum dia você quiser ser plateia isenta, sem o ardor das paixões e fora dos interesses imediatos de sua sobrevivência protocolar, creia-me, verás um dos melhores espetáculos circenses da qual a mentalidade humana é capaz de intuir.
Verás destruído o idealismo, pois desfilarão a tua frente todos os pecados que se escondem por trás da aparência asséptica da politica. Verás o retrato ignóbil de teus ídolos, a nu. Verás num instante precioso tudo o que o que há de mais baixo na condição humana representado, sob uma cortina de confetes, em figurões acima de qualquer suspeita. Bufões, rufiões, ladinos, o baronato faminto, os homens de personalidade dúbia e palavra fácil, facilmente enviesada. Afinal, o natural do animal político “profissional” é minorar todo ímpeto coletivista em nome de interesses particulares ou de grupos que o apoiem em sua escalada.


por Edson de França

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A paixão errante da realeza


Mora no mais intimo de nós brasileiros uma alegoria de realeza. Vive e se reproduz como todas as mazelas que se enraízam no inconsciente e que, ao passar do tempo, tornam-se impossível expurga-las.  Reside dentro de nós como um monstro, um parasita qualquer, cuja natureza é viver da seiva do desavisado hospedeiro.  Como materialização modelar, poderíamos sugerir algo similar ao espécime alienígena da serie Alien, o 8º passageiro (EUA, Ridley Scott, 1979).
Para quem não assistiu ou não lembra, o filme primitivo da série Alien narra os horrores do encontro da tripulação terráquea de uma nave espacial com uma criatura altamente agressiva que ataca e mata impiedosamente os alienígenas, nós. No primeiro encontro, o alienígena, ele, ataca um dos tripulantes e o utiliza como últero ocasional para o desenvolvimento de seu horrendo parto. A maléfica descendência mata o hospedeiro, cresce rapidamente e sai a cumprir seu legado: o extermínio das formas humanas ali presentes. A comparação para o nosso caso particular não é a aniquilação da carne, mas a aniquilação das vontades.
Pois bem, nossas fantasias de realeza estão entranhadas em nós, por mais que nos consideremos politicamente avançados, como algo adquirido por contaminação e transportado civilização a fora. Dá a aparência de algo atávico, culturalmente reificado, que vai se reproduzindo através das nossas mentalidades sempre tendentes aos padrões médios de raciocínio. Não sei até que ponto a cultura cristã ocidental contribui para isso, nem a razão das suas raízes.. Também não investiguei a fundo as tendências islâmicas para a formatação dos seus califados. Grosso modo, acho que tanto lá como aqui, o ser humano traz essa visão como base para enxergar e “construir” o mundo.
Cá entre nós, essa anomalia nos leva, meio inconscientemente, a denominar reis, aplicar título de realeza a tudo que nos pareça excepcional, além dos limites infra-humanos de nosotros, pobres mortais. Aplicar-lhes, enfim, qualificativos generosos como a genialidade de feitos e talentos, a infalibilidade de suas escolhas pessoais e, sobretudo, a associação de poderes quase divinos a suas personas tão exageradamente humanas. Somos elásticos nessas classificações.
Do rei da juventude ao rei da sucata, da rainha da fava ao rei do osso buco, da rainha do acarajé a rainha dos caminhoneiros, da rainha dos baixinhos a rainha do bumbum. Isso quando não associamos alguns materiais, considerados por sua nobreza, a pretensa qualidade laboral de algumas pessoas. Aí, a coisa já passa pelos martelinhos de ouro da vida. Se permanecêssemos nessa esfera, creio que não passaria de uma particularidade anedótica e folclórica dos nosso jeito de ser. Acredito, porem que ela traz consequências mais danosas.
Penso que essa visão dominante de mundo tende a reduzir o espirito critico, o questionamento, a percepção crua da nudez do rei. A atribuição de qualificativos extraordinários a quem, se olhado de frente, talvez não mereça. Ou pior, por posse legítima, passe a se locupletar dessa condição. Mais perniciosamente contribui para a concepção e o enaltecimento cego de uma sociedade baseada no espirito da realeza. Sabendo-se, claro, que tal sociedade é composta rigidamente dos iluminados (reis e descendentes), dos baba-ovos (parentes, aderentes e xeleléus qualificados) e da ralé, eufemisticamente denominada de súditos.


por Edson de França

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

O bode pós-carnaval


        Todos os anos os noticiários nacionais tentam conferir um ar de curiosidade a chegada do ano novo chinês, evento ocorrido na última semana. A raridade do fato repousa nos elementos exóticos e incomuns que a data articula. Claro que a nossa parca imaginação, inundada de resquícios antropocêntricos, não perderia a chance de deleitar-se com essas aparentes esquisitices da terra dos mandarins.
A associação do ano a um animal que confere, por associação, qualificações e prognósticos para o novo período é um desses estranhamentos enaltecidos pela mídia. Ano passado deu cavalo na cabeça. Este ano, por lá ainda indecisos, acham que serão regidos pela cabra, ovelha ou carneiro. Para nós, essas coisas não passam de dicas preciosas para a fé no jogo do bicho e a chance de financiar, anonimamente, as enredações do próximo mega-carnaval de temática polêmica.
Outra estranheza é a contagem dos anos que nada tem a ver com o nosso calendário ocidental, ou melhor, não está acorrentado aos estados e humores do mundo da lua. Por lá comemoram “míseros” 4.713 anos, por cá a vida segue com a nossa gregoriana lógica que nos concede 2.014 ciclos civilizatórios completados. 
Quem pensa, ingenuamente, que mantemos uma distância quilométrica da cultura chinesa erra feio. Por lá comemoraram o ano novo, por cá, reza a picardia popular, estamos agora a começar o ano. Como diz a voz do povo, o ano por aqui só é realmente novo depois do carnaval, justamente para coincidir com a efeméride chinesa.
 Até a invenção do brasil, seguindo o raciocínio de velho compositor popular, se deu “no dia 21 de abril/ dois meses depois do carnaval”. (Salve Lamartine Babo e sua sagaz versão para a História do Brasil). Então, desculpem-me as pessoas que derramam suor desde o primeiro dia do ano, mas o ano literalmente está começando e não há nada de engraçado nisso a não ser a nossa risível capacidade autoanálise destrutiva.
Estamos prontos para o ano, enfim. Ainda em processo de transição seja o mais correto, pois é difícil se acostumar com os miasmas que ele ameaça evocar.
Os aumentos das contas de começo de ano já se adiantaram aos nossos devaneios. As intrigas políticas, acusações de A para B e vice versa, num ringue onde os dois lados se equivalem já nos deixam bem bodeados. Nas ruas e nas redes tem gente clamando por golpe.  O Big Brother já está no ar. O Faustão já busca novamente “iluminados” para o estrelato bel cantante do brasil varonil. Juiz carioca, representante do olimpo encarnado, desfila com bens de “luxo” apreendidos. Tem futebol terça, quarta, quinta, sábado e domingo. Eduardo Lages já se rendeu aos dotes musicais de Annita... Haja motivos para nos quedarmos de bode.
          Se por lá pela China estão indecisos, por cá o bode já tá reinando, solto na capoeira. Por associação, estamos literalmente bodeados. Estar chateado é o sentimento mínimo que se pode experimentar nesse estado de coisas. Outros sentimentos mais cabeludos também imploram por ocupar a cena. Há tristeza, abatimento, desassossego e muita inquietação pra se queimar sob a luz mortiça dos fogos de nosso réveillon tardio.
por Edson de França


segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Sobre Políticas Públicas


A expressão políticas públicas ganhou entre nós uma dimensão retórica. É peça verbal facilmente detectável na prosa de agentes políticos de todos os níveis. Isso em dois sentidos. Por um lado conota o desejo, por vezes real, de propor, promover ou cobrar ações no sentido de sanar ou dar diretrizes de intervenção para solução de alguns problemas. Ao contrario, porém, pragmaticamente falando, denota a incapacidade de montar estratégias para, no mínimo, minorar certas situações de conflito ou marcos estruturais.
Claro que aqui falamos de retórica no sentido mais chulo que você, caríssimo leitor, puder conceber. Incluam em seu entendimento as noções de “bem falar”, mas carreguem no quesito floreamento, estratégia de postergação e carga persuasiva. Ao final, com certeza, a retórica a que me refiro soará como algo assim próximo do vazio de intenções e ações efetivas. Uma expressão da insinseridade, hipocrisia e falta de afinco na concretização de algo.
Diga-se que política pública, em teoria, é o instrumento que viabiliza a ação de Estado e a convivência deste com a sociedade civil. De acordo com a Wikipedia ela pode ser “concebida como o conjunto de ações desencadeadas pelo Estado - no caso brasileiro, nas escalas federal, estadual e municipal -, com vistas ao atendimento a determinados setores da sociedade civil”.
Numa definição atribuída a Vargas Velasques, a enciclopédia virtual acrescenta ainda: "conjunto de sucessivas iniciativas, decisões e ações do regime político frente a situações socialmente problemáticas e que buscam a resolução das mesmas, ou pelo menos trazê-las a níveis manejáveis".
Fica explícito, pela definição acima, que as políticas públicas envolvem, a um tempo, o desejo real e ação efetiva. Iniciativa, decisão, ação e, em nosso caso, urgência dos afogados formando um conjunto uno, indissociável. Um processo que a meu ver não pode demandar tempos de gerações, nem entraves burocratizantes. E esse, caso concordem comigo, é um dos nossos calos mais expostos.
Políticas públicas são efetivadas por etapas, obedecem aos rigores dessa palavrinha também gasta chamada “processo”. Dependem do envolvimento do governo, da percepção de um problema, da definição de um objetivo e da configuração de um processo de ação. O papel da sociedade civil nesse processo é imperativo. É ela que, sofrendo na pele ou detectando problemas, tem a missão de encaminhar as demandas, propor soluções, cobrar.
Não compreendê-la sob esse prisma é tirar da política pública a condição de instrumentação da convivência democrática e da construção de um país. Estaremos por fim pisando, perigosamente, no território do engodo e da inércia.

por Edson de França



quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Game over


“Essa e a forma do mundo ***** dizer à sociedade que não aceita falhas”! Caso lhe fosse apresentada essa afirmação, que palavra o distinto senhor que me lê escolheria para completá-la? Provavelmente você optaria por uma palavra nobre como mundo corporativo, empresarial, jurídico, policialesco ou coisa que o valha. Pois saiba, ó desavisado leitor, que tão compacta e objetiva declaração foi dada por um molecote de 16 anos, preso após assassinar um viciado de 18, a mando do tráfico de drogas em virtude deste ter os denunciado. A morte foi documentada em vídeo e o assassino, ante os holofotes da mídia nacional, cunhou essa indelével frase de efeito.
Não deixei de me assustar com o que os amados colegas da imprensa chamam de “frieza” do infante assassino. Por outro lado, admirei a retórica e não deixei de fazer uma comparação direta com o perfil linguístico dos homens do mundo corporativo. Lembrei-me de Roberto Justus, seu dedo em riste e seu bordão “está demitido”. Também não deixei de lembrar os xistosos Cabos Tenórios de antigamente e sua ordem incisiva: “Teje Preso!”.
As cenas do filme, onde o assassino fala em “missão” e ri da traíragem e da inabilidade da vítima em adequar-se às leis do mundo cão sugerem exercício consciente, de poder. Poder construído, poder “conquistado” graças à capacidade de se adaptar aos ditames arbitrários do crime, através de uma escala própria de valores que dão suporte à ascensão. O domínio das técnicas e do discurso que, teoricamente, dão legitimidade ao ato. Que me perdoem a comparação chula, mas penso ser esta a lógica da competitividade (in)sana do mundo contemporâneo.
O mundo é dos fortes, dos hábeis, dos infalíveis. Aprendemos isso na escola normal e na escola da vida. O currículo dos vencedores é todo ele pontuado de estrelas que aquilatam os feitos heroicos. São como as marcas no cabo da arma dos pistoleiros. Como a capacidade de impor-se, deus sabe por quais mecanismos, e avaliar a conduta de outro e dar-lhe o bilhete azul. Sem pena. Nesse mundo não cabe a complacência e a piedade. Não há lugar para o perdão ou a eventualidade da segunda chance.
O dedo que aponta e põe fim aos ciclos é similar a metranca que determina o fim de vidas. São game overs de carreiras, perspectivas e, modernamente, de vidas. Estamos todos no mesmo processo de avaliações ligeiras e execuções sumárias. Lamentos, tentativas de diálogo, explicações, argumentações de nada valem. Valem a eficiência, a obediência cega a regras e regulamentos, a produtividade máxima e desumanização crescente atrelada a tudo isso. O mundo não permite falhas... à crédito de evolução. Qual? (por Edson de França)     
edsondefranca@yahoo.com.br

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Monumentos, estátuas e vandalismo


Dias atrás, alguns órgãos de imprensa paraibana, denunciaram a ação de pichadores no chamado centro histórico da capital. Praticamente todas as unidades imobiliárias da localidade mostravam tatuagens – ou deveríamos dizer cicatrizes – feitas a desajeitados jatos de tinta spray. Nada mais, pareciam sugerir os colegas repórteres, que a expressão bárbara de alguns membros de uma geração cujo sentimento e respeito pela história não se instalaram nas veias.
Infelizmente, situações desse tipo não são exclusividade cruel de centros como a nossa velha Filipéia das Neves. Ao contrário, se multiplica país a fora. É epidêmica. Não creio que exista sitio histórico imaculado em qualquer praça ou logradouro dessa república. Não pouparam nem a estátua do singelo poeta Drummond, no posto 06 de Copacabana.
Há, na verdade, uma sanha destrutiva – um tsunami de descaracterização - de monumentos grassando país a fora. Se um cidadão qualquer quiser protestar ou arrefecer frustrações, que se cuidem os monumentos.
Há tempos, roubaram a mala do poeta Caixa D’agua. Até hoje a Prefeitura não repôs e o poeta está lá; caminhando pra lugar nenhum com uma mão, a da mala, vazia e a outra estendida a espera de um bêbado que a aperte.  Vez por outra, alguém se morcega nas costas de Jackson do Pandeiro ou de Livardo Alves, localizadas na Praça Rio Branco e Ponto de Cem Réis, respectivamente. Muito mais na intenção de “machucar” o cobre que simplesmente posar para estilosos selfies.
Pergunto-me muitas vezes para que serviria a pasta de Caixa D’agua ou o pandeiro de Jackson, em metal, para uma pessoa comum. A ausência deles daria, sim, um belo mote para os cronistas, algo do tipo “separação traumática dos bardos de seus instrumentos de encanto”. Para os depredadores, no máximo, um souvenir dispensável que, tão logo roubado, seria esquecido num canto qualquer. Ou, na melhor das hipóteses, teria a destinação degradante de ser vendida no ferro velho para permitir ao gatuno a oportunidade de comprar uma lata de sardinha e um pão dormido.
 O ato de tocar ou macular um monumento público tem algo a ver com desafio. Parece ser coisas da adolescência, da fase complicada de insatisfações contra as instituições limitantes, tipo sociedade e instituições como família e, sobretudo, governos. Um misto de insatisfação e rebeldia. É como denunciar a passividade da sociedade comportada e retrógrada e a insuficiência de governos e seus agentes. O cancro, porem, reside no fato de que essa inconsequência tatibitate se espalha idades à dentro.
Pichar ou arrancar partes de um monumento é um ato psicologicamente explicável pelo desejo de dessacralizar. Retirar a “aura”, parodiando Walter Benjamim, no sentido material, acachapante, destrutivo. Não é retirar a aura pela reprodução como dizia o pensador, mas roubar-lhes partes, macular a estética com intervenções violentas.
Parece ser difícil para alguns conter-se diante da exposição a céu aberto, sem proteção, de uma obra alusiva a memória coletiva. É muito mais, no entanto, um atestado de nossa infantilidade civilizatória, de nossa incapacidade de, articuladamente, investirmos em educação como principio e forma de atuação social longe dos apelos do vandalismo vazio e assim, friamente, sem causa.

por Edson de França