quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

O bode pós-carnaval


        Todos os anos os noticiários nacionais tentam conferir um ar de curiosidade a chegada do ano novo chinês, evento ocorrido na última semana. A raridade do fato repousa nos elementos exóticos e incomuns que a data articula. Claro que a nossa parca imaginação, inundada de resquícios antropocêntricos, não perderia a chance de deleitar-se com essas aparentes esquisitices da terra dos mandarins.
A associação do ano a um animal que confere, por associação, qualificações e prognósticos para o novo período é um desses estranhamentos enaltecidos pela mídia. Ano passado deu cavalo na cabeça. Este ano, por lá ainda indecisos, acham que serão regidos pela cabra, ovelha ou carneiro. Para nós, essas coisas não passam de dicas preciosas para a fé no jogo do bicho e a chance de financiar, anonimamente, as enredações do próximo mega-carnaval de temática polêmica.
Outra estranheza é a contagem dos anos que nada tem a ver com o nosso calendário ocidental, ou melhor, não está acorrentado aos estados e humores do mundo da lua. Por lá comemoram “míseros” 4.713 anos, por cá a vida segue com a nossa gregoriana lógica que nos concede 2.014 ciclos civilizatórios completados. 
Quem pensa, ingenuamente, que mantemos uma distância quilométrica da cultura chinesa erra feio. Por lá comemoraram o ano novo, por cá, reza a picardia popular, estamos agora a começar o ano. Como diz a voz do povo, o ano por aqui só é realmente novo depois do carnaval, justamente para coincidir com a efeméride chinesa.
 Até a invenção do brasil, seguindo o raciocínio de velho compositor popular, se deu “no dia 21 de abril/ dois meses depois do carnaval”. (Salve Lamartine Babo e sua sagaz versão para a História do Brasil). Então, desculpem-me as pessoas que derramam suor desde o primeiro dia do ano, mas o ano literalmente está começando e não há nada de engraçado nisso a não ser a nossa risível capacidade autoanálise destrutiva.
Estamos prontos para o ano, enfim. Ainda em processo de transição seja o mais correto, pois é difícil se acostumar com os miasmas que ele ameaça evocar.
Os aumentos das contas de começo de ano já se adiantaram aos nossos devaneios. As intrigas políticas, acusações de A para B e vice versa, num ringue onde os dois lados se equivalem já nos deixam bem bodeados. Nas ruas e nas redes tem gente clamando por golpe.  O Big Brother já está no ar. O Faustão já busca novamente “iluminados” para o estrelato bel cantante do brasil varonil. Juiz carioca, representante do olimpo encarnado, desfila com bens de “luxo” apreendidos. Tem futebol terça, quarta, quinta, sábado e domingo. Eduardo Lages já se rendeu aos dotes musicais de Annita... Haja motivos para nos quedarmos de bode.
          Se por lá pela China estão indecisos, por cá o bode já tá reinando, solto na capoeira. Por associação, estamos literalmente bodeados. Estar chateado é o sentimento mínimo que se pode experimentar nesse estado de coisas. Outros sentimentos mais cabeludos também imploram por ocupar a cena. Há tristeza, abatimento, desassossego e muita inquietação pra se queimar sob a luz mortiça dos fogos de nosso réveillon tardio.
por Edson de França


segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Sobre Políticas Públicas


A expressão políticas públicas ganhou entre nós uma dimensão retórica. É peça verbal facilmente detectável na prosa de agentes políticos de todos os níveis. Isso em dois sentidos. Por um lado conota o desejo, por vezes real, de propor, promover ou cobrar ações no sentido de sanar ou dar diretrizes de intervenção para solução de alguns problemas. Ao contrario, porém, pragmaticamente falando, denota a incapacidade de montar estratégias para, no mínimo, minorar certas situações de conflito ou marcos estruturais.
Claro que aqui falamos de retórica no sentido mais chulo que você, caríssimo leitor, puder conceber. Incluam em seu entendimento as noções de “bem falar”, mas carreguem no quesito floreamento, estratégia de postergação e carga persuasiva. Ao final, com certeza, a retórica a que me refiro soará como algo assim próximo do vazio de intenções e ações efetivas. Uma expressão da insinseridade, hipocrisia e falta de afinco na concretização de algo.
Diga-se que política pública, em teoria, é o instrumento que viabiliza a ação de Estado e a convivência deste com a sociedade civil. De acordo com a Wikipedia ela pode ser “concebida como o conjunto de ações desencadeadas pelo Estado - no caso brasileiro, nas escalas federal, estadual e municipal -, com vistas ao atendimento a determinados setores da sociedade civil”.
Numa definição atribuída a Vargas Velasques, a enciclopédia virtual acrescenta ainda: "conjunto de sucessivas iniciativas, decisões e ações do regime político frente a situações socialmente problemáticas e que buscam a resolução das mesmas, ou pelo menos trazê-las a níveis manejáveis".
Fica explícito, pela definição acima, que as políticas públicas envolvem, a um tempo, o desejo real e ação efetiva. Iniciativa, decisão, ação e, em nosso caso, urgência dos afogados formando um conjunto uno, indissociável. Um processo que a meu ver não pode demandar tempos de gerações, nem entraves burocratizantes. E esse, caso concordem comigo, é um dos nossos calos mais expostos.
Políticas públicas são efetivadas por etapas, obedecem aos rigores dessa palavrinha também gasta chamada “processo”. Dependem do envolvimento do governo, da percepção de um problema, da definição de um objetivo e da configuração de um processo de ação. O papel da sociedade civil nesse processo é imperativo. É ela que, sofrendo na pele ou detectando problemas, tem a missão de encaminhar as demandas, propor soluções, cobrar.
Não compreendê-la sob esse prisma é tirar da política pública a condição de instrumentação da convivência democrática e da construção de um país. Estaremos por fim pisando, perigosamente, no território do engodo e da inércia.

por Edson de França



quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Game over


“Essa e a forma do mundo ***** dizer à sociedade que não aceita falhas”! Caso lhe fosse apresentada essa afirmação, que palavra o distinto senhor que me lê escolheria para completá-la? Provavelmente você optaria por uma palavra nobre como mundo corporativo, empresarial, jurídico, policialesco ou coisa que o valha. Pois saiba, ó desavisado leitor, que tão compacta e objetiva declaração foi dada por um molecote de 16 anos, preso após assassinar um viciado de 18, a mando do tráfico de drogas em virtude deste ter os denunciado. A morte foi documentada em vídeo e o assassino, ante os holofotes da mídia nacional, cunhou essa indelével frase de efeito.
Não deixei de me assustar com o que os amados colegas da imprensa chamam de “frieza” do infante assassino. Por outro lado, admirei a retórica e não deixei de fazer uma comparação direta com o perfil linguístico dos homens do mundo corporativo. Lembrei-me de Roberto Justus, seu dedo em riste e seu bordão “está demitido”. Também não deixei de lembrar os xistosos Cabos Tenórios de antigamente e sua ordem incisiva: “Teje Preso!”.
As cenas do filme, onde o assassino fala em “missão” e ri da traíragem e da inabilidade da vítima em adequar-se às leis do mundo cão sugerem exercício consciente, de poder. Poder construído, poder “conquistado” graças à capacidade de se adaptar aos ditames arbitrários do crime, através de uma escala própria de valores que dão suporte à ascensão. O domínio das técnicas e do discurso que, teoricamente, dão legitimidade ao ato. Que me perdoem a comparação chula, mas penso ser esta a lógica da competitividade (in)sana do mundo contemporâneo.
O mundo é dos fortes, dos hábeis, dos infalíveis. Aprendemos isso na escola normal e na escola da vida. O currículo dos vencedores é todo ele pontuado de estrelas que aquilatam os feitos heroicos. São como as marcas no cabo da arma dos pistoleiros. Como a capacidade de impor-se, deus sabe por quais mecanismos, e avaliar a conduta de outro e dar-lhe o bilhete azul. Sem pena. Nesse mundo não cabe a complacência e a piedade. Não há lugar para o perdão ou a eventualidade da segunda chance.
O dedo que aponta e põe fim aos ciclos é similar a metranca que determina o fim de vidas. São game overs de carreiras, perspectivas e, modernamente, de vidas. Estamos todos no mesmo processo de avaliações ligeiras e execuções sumárias. Lamentos, tentativas de diálogo, explicações, argumentações de nada valem. Valem a eficiência, a obediência cega a regras e regulamentos, a produtividade máxima e desumanização crescente atrelada a tudo isso. O mundo não permite falhas... à crédito de evolução. Qual? (por Edson de França)     
edsondefranca@yahoo.com.br

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Monumentos, estátuas e vandalismo


Dias atrás, alguns órgãos de imprensa paraibana, denunciaram a ação de pichadores no chamado centro histórico da capital. Praticamente todas as unidades imobiliárias da localidade mostravam tatuagens – ou deveríamos dizer cicatrizes – feitas a desajeitados jatos de tinta spray. Nada mais, pareciam sugerir os colegas repórteres, que a expressão bárbara de alguns membros de uma geração cujo sentimento e respeito pela história não se instalaram nas veias.
Infelizmente, situações desse tipo não são exclusividade cruel de centros como a nossa velha Filipéia das Neves. Ao contrário, se multiplica país a fora. É epidêmica. Não creio que exista sitio histórico imaculado em qualquer praça ou logradouro dessa república. Não pouparam nem a estátua do singelo poeta Drummond, no posto 06 de Copacabana.
Há, na verdade, uma sanha destrutiva – um tsunami de descaracterização - de monumentos grassando país a fora. Se um cidadão qualquer quiser protestar ou arrefecer frustrações, que se cuidem os monumentos.
Há tempos, roubaram a mala do poeta Caixa D’agua. Até hoje a Prefeitura não repôs e o poeta está lá; caminhando pra lugar nenhum com uma mão, a da mala, vazia e a outra estendida a espera de um bêbado que a aperte.  Vez por outra, alguém se morcega nas costas de Jackson do Pandeiro ou de Livardo Alves, localizadas na Praça Rio Branco e Ponto de Cem Réis, respectivamente. Muito mais na intenção de “machucar” o cobre que simplesmente posar para estilosos selfies.
Pergunto-me muitas vezes para que serviria a pasta de Caixa D’agua ou o pandeiro de Jackson, em metal, para uma pessoa comum. A ausência deles daria, sim, um belo mote para os cronistas, algo do tipo “separação traumática dos bardos de seus instrumentos de encanto”. Para os depredadores, no máximo, um souvenir dispensável que, tão logo roubado, seria esquecido num canto qualquer. Ou, na melhor das hipóteses, teria a destinação degradante de ser vendida no ferro velho para permitir ao gatuno a oportunidade de comprar uma lata de sardinha e um pão dormido.
 O ato de tocar ou macular um monumento público tem algo a ver com desafio. Parece ser coisas da adolescência, da fase complicada de insatisfações contra as instituições limitantes, tipo sociedade e instituições como família e, sobretudo, governos. Um misto de insatisfação e rebeldia. É como denunciar a passividade da sociedade comportada e retrógrada e a insuficiência de governos e seus agentes. O cancro, porem, reside no fato de que essa inconsequência tatibitate se espalha idades à dentro.
Pichar ou arrancar partes de um monumento é um ato psicologicamente explicável pelo desejo de dessacralizar. Retirar a “aura”, parodiando Walter Benjamim, no sentido material, acachapante, destrutivo. Não é retirar a aura pela reprodução como dizia o pensador, mas roubar-lhes partes, macular a estética com intervenções violentas.
Parece ser difícil para alguns conter-se diante da exposição a céu aberto, sem proteção, de uma obra alusiva a memória coletiva. É muito mais, no entanto, um atestado de nossa infantilidade civilizatória, de nossa incapacidade de, articuladamente, investirmos em educação como principio e forma de atuação social longe dos apelos do vandalismo vazio e assim, friamente, sem causa.

por Edson de França


quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Sobre a poluição humana

Sou de um tempo onde, dentre as recomendações aos passageiros de coletivos urbanos, destacavam-se duas. “Fale com o motorista somente o indispensável” e “Proibida a utilização de aparelhos sonoros no interior deste veículo”. Afora as informações gerais sobre limites de lotação, passageiros em pé e sentados, preço da passagem, dedetização do veículo nada mais era necessário. A viagem seguia em paz. Se bem que, vez por outra, um operador do sistema ou uma paquera entrava pela porta da frente e ocupava os degraus da porta em alguma conversa atravessada com o condutor... Não se ouviam aparelhos sonoros, não sei se pela falta deles ou pela força de lei da recomendação escrita.
Eram outros os tempos. Penso que as cidades não agonizavam com o inchaço populacional, tinha-se poucos automóveis circulando pelas vias, não haviam, enfim, o ruge-ruge a  correria em busca do vil metal dos dias que correm. Bem diferente dos tempos de agora, onde o nome coletivo cai apropriadamente nos limites da nossa conturbada convivência. Coletivo é sinônimo de viver junto e, por extensão, é significado de balburdia, desrespeito, insanidade, violência, competitividade, incivilidade. Por hoje, basta de sinônimos. O que nos cabe convir é que proximidade de indivíduos gera confusão e gravíssimas diferenças de pontos de vista.
Com muitas idas e vindas comecei a me incomodar com o cigarrinho que alguns insistiam em tragar, numa época em que o fumo era um dos “esportes” preferidos dos brasileiros. À época, era um hábito ainda tolerável. Não sei se pelo incômodo coletivo ou pela descoberta e consciência da melevolidade do cigarro para os passivos inalantes e para os pacholas fumantes, surgiu uma nova placa nos coletivos: a ilustração de um cigarro com um X informava policialmente “proibido fumar no interior deste veículo”(Lei nº 110 de 25/06/93). A lei era informada e o cigarrinho foi, aos poucos, sendo banido do interior dos veículos. 
Novos ajustes vieram em seguida com novos reclames, postos ali por força de leis ou de novos ataques a convivência andante dos busões. “Lei do troco” e “Estudante apresente a sua carteira de estudante quando solicitado” para evitar as inevitáveis confusões entre cobradores e passageiros. “Sorria você esta sendo filmando” para garantir a segurança dos passageiros na era dos assaltos a coletivos. O ônibus urbano passou com o tempo, também, a ser considerado veículo de propaganda in-door e out-door. Eventos religiosos, produtos variados e até projetos poéticos encontraram ali seu nicho publicitário.
O ônibus está para lá de integrado na paisagem urbana. São eles o espaço da convivência mutante em tempos de urgente e indispensável mobilidade. Convivência mutante e passageira que, a cada giro das catracas do tempo, tem que ser revisitada para introdução de novas normas. Novos dias, novos panoramas humanos, novas urbanidades e até as novas tecnologidades introduzem novíssimos hábitos. A ciência da civilidade, por esse prisma, é algo também em movimento sob ameaças naturais de evolução e retrocessos.     
Tornaram-se irritantemente comuns em nossos dias o uso indiscriminado de tecnologias de reprodução de som. Pra todo canto que você se desloque, dentro do ambiente urbano, intermunicipal ou interestadual, é sempre possível ter-se a paciência ultrajada pela ação de dijeis amadores munidos de celulares e limitados princípios de civilidade, bom senso e respeito ao sossego alheio.  
De volta à prancheta das regras de convivência. Outros caminhos têm que ser traçados, ou melhor, repisados. Caímos mais uma vez na velha questão da educação para a cidadania e a civilidade, nossa eterna litania dramática. Outra vez parece ser necessário investir na reeducação de usuários e esse é um processo desgastante. Outra vez, é preciso de leis. E elas existem. Lei estadual (Lei Estadual número 9.977, de 2013, da Assembléia Legislativa da Paraíba) e leis municipais. Basta a fiscalização e a coibição.
O que não se esperava jamais é ter que, outra vez, reativar o velho reclame de proibição de aparelhos sonoros nos coletivos para coibir os excessos sonoros das espaçosas hienas urbanas que, ao expor ao mundo seus indigestos gostos musicais, trazem embutidos boas doses de afronta e barbarismo.

por Edson de França


segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O seletivo paternalismo estatal



Dia desses escrevi texto sobre a contribuição do Estado para a consolidação do “mito do intrépido capitalista inovador” (ver: http://patosonline.com/post.php?codigo=42377). É que na sociedade em que vivemos os laços entre a iniciativa privada e o Estado nem sempre estão claramente expostos e dificilmente ganham explicações plausíveis. São enlaces circunstanciais ocultos, que se manifestam numa esfera de poder e interinfluência a que pouquíssimos tem acesso e a grande maioria das pessoas nem conseguiriam entender. Sobrando aos circunstantes a impressão ilusória de que os grandes feitos da tecnologia e da ciência passam pela iniciativa heróica e altamente independente de visionários.
A relação entre a iniciativa privada e o Estado no campo do financiamento revela a “ajudinha” não revelada, leia-se dinheiro público, para empreendimentos particulares que nunca terão de todo a contrapartida necessária. Talvez (e só talvez) a contrapartida se dê numa porcentagem ínfima, e que nós não sabemos precisar, em termos de impostos ou sob as manobras marketeiras da “responsabilidade social” de empresa.
No caso do texto anterior, a narrativa se prendia a questão do fomento do Estado, seja inicialmente seja durante a escalada de ascensão, aos “inovadores” da C&T. Mas nossa ingenuidade corrompida não nos permite que achemos que esses liames se resumam a essa esfera. Se o poderoso Estado cede sua parcela de força para os “intrépidos inovadores”, por que não daria uma “forcinha” para outros ramos empresariais. Sobre esse ponto algumas perguntas e especulações marotinhas não fazem mal ao livre pensar. Ao contrário, são salutares e muito bem vindas.
A fisiologia da sociedade em que vivemos é complexa demais para se revelar em impressões apressadas. Nosso aparato intelectual, como analistas amadores, não dá margens para que possamos amealhar fatos, unir dados, ruminá-los e tirar conclusões próximas da realidade. Somos apressadinhos em nosso inconsistente poder analítico. É-nos mais confortável apoderarmos da crença na projeção exterior dos fenômenos.
Em um estado como o nosso, por exemplo, em que a dependência da sociedade em relação ao Estado é enorme, creio que as relações entre poder público e privado, se não escandalosas são no mínimo imorais. Desconfio de nosso capitalismo tabajara como desconfio da existência material dos anjos. Quando o financiamento não é direto, ele passa por expedientes sutis como a manutenção de empregos ou cargos próximos da vitaliciedade na máquina pública ou ainda, nesse caso muito mais sutil, que é nas manobras junto aos poderes nas esferas administrativas, judiciárias e executivas.  
    Sabemos que empreender é algo que demanda doses equilibradas de ousadia e coragem, a tal ponto que poucos têm essa característica nata em seu portfólio de vivências. Não existe espaço, porem, para covardia, arrogância ou preguiça. O empreendedor trabalha com uma margem de sustentabilidade cambiante. O empreendedor puro, caso exista, seria uma entidade próxima da natureza autóctone, independente, intrépida, capaz de montar seu próprio meio de sustentação e, dolorosamente, saber que toda e qualquer armação que faça sempre correrá riscos de ruir.
Convenhamos que grande maioria dos empreendimentos que proliferam em nosso meio não tem tais características como base. Estou sempre aberto a contestações, mas não arredo o pé. O dinheiro público alimentou, de forma direta ou indireta, alguns ramos da nossa economia. Não me perguntem com que moedas são construídas as grandes mecas comerciais, desde suas pedras fundamentais. Não me perguntem qual o moto propulsor das iniciativas na área médica, de saúde ou educacional por essas bandas. Não, não especulem o capital inicial de um monte de empreendimentos mirins que se espalham em sua volta, cujos chefes entram para o imaginário popular como insignes empreendedores.
O Estado é uma espécie de mecenas pouco dimensionado e compreendido. É mais fácil falar de sua inoperância e tomar isso como axioma, que compreender a penetração cuidadosa, cirúrgica e secreta que ele tem na vida “empresarial”. O estado não só arbitra, fiscaliza, cobra, maltrata com a cobrança excessiva de impostos. Ele exerce o seu papel de paizão por trás de filigranas burocráticas. Pelo menos para alguns, quem sabe intrépidos exploradores dos cofres públicos em prol de suas causas tão particulares e personalistas.

por Edson de França

Terrinha de cemitério



Apenas uma foto amarelecida enfeitava a lápide.
Era um desses túmulos grandiosos, espécie de mansarda tétrica, plantada entre construções de porte similar. Alameda de jambeiros, frondosos como a gozar da fertilidade daquele solo. Piso de paralelepípedos irregulares, chão coalhado de frutos; alguns estourados ou graciosamente corroídos como se tivessem levado apetitosas mordidas. A tal paz dos cemitérios estava ali. Era aquilo. Paz em meio à ambientação lúgubre que serve de cenário pras coisas mórbidas. Lodo. Colunas de hera. Plantações rasteiras. Flores e restos mortais de coroas funerárias. Tocos de vela na base dos túmulos, uma ou outra acesa. Crucifixos por toda parte. Palavras escritas em placas que não parávamos para ler; sabíamos da redundância comum dos escritos.  
Era uma tarde de nada a fazer. Andávamos apenas.
Até os raios de sol se escondiam timidos por trás da ramagem densa do arvoredo.
Andávamos pela parte do campo santo onde os túmulos mostravam certa suntuosidade. Se cemitérios fossem locais de visitação turística esses seriam os atrativos; cova rasa não tem charme algum. Construções em mármore, granito, puxadores de metal amarelado ou em bronze, imagens de nosso senhor crucificado também em metal amarelado, anjinhos, vasos para flores, castiçais para velas no dia dos finados, cruzes, cruzes, cruzes. 
Olhávamos as fotos dos desencarnados pra passar o tempo da tarde modorrenta.
A imagem da foto que agora olhávamos e esplendor do túmulo eram monumentos à suntuosidade da senhora morte em alguns casos. 
Sabíamos da geografia do cemitério. Do apartheid social e econômico que separa os homens até na hora da morte. Do lado periférico, sabíamos das covas rasas, dos tumulozinhos baixos de cimento cru e cruzinhas de madeira, do tempo de permanência de cada corpo na fria morada, dos deslocamentos da cova para os ossários verticais, do sebo das velas que se acumulava formando pequenas montanhas enegrecidas, das margaridas murchando...    
Os túmulos em geral se parecem como extensões indesejadas das casas habitadas em vida pelos finados. Extensão de barraco da ralé é cova rasa. Prolongamento físico de mansarda é mausoléu, esnobes até no vocábulo. Ademais, efeito visual e simbólico do poderio exercido pelo clã a que os idos pertenceram quando andantes.
Paramos em frente aquele portal, território dos limites simbólicos entre as duas faces da existência. Não haviam escritas palavras sobre o figura da foto. Nada. Nenhuma frase inspirada que lhe recomendasse a alma. Havia um nome, claro. E um sobrenome nobre creditado aquele senhor na foto oval rococó. Túmulo de família, sinal exterior de nobreza. Havia um banquinho. Sentamos ali como fazem vagabundos e parasitas em seu ócio permanente, enquanto esperam e dialogam com o vácuo que se forma em torno de suas existências.
            O senhor da foto, um desses amulatados que passa por caucasiano, apresentava-se bem vestido. Um rosto de traços fortes, a boca escondida por um respeitável bigode (desses que ninguém mais ousa usar), símbolo de masculinidade e poder patriarcal. Sabíamos do nome nobre, pois ele se perpetua por aí em postos da burocracia palaciana, mas não conhecíamos a figura. Arquitetamos para ele, então, uma fantasia biográfica, baseados malandramente em nossos pré-conceitos e na projeção miasmática que o ambiente sugeria.
- Que figura, hein! O que deve ter feito da vida?
- Sei lá! Usineiro, fazendeiro, empresário...
- É, deve ser por aí. Político, talvez...
- Quem sabe, com essa cara de rufião de cabaré rsrsrsrs!
- Talvez tudo ao mesmo tempo. Talvez até simplesmente um playboy, viveu e morreu nababescamente, jamais deu um prego numa barra de sabão, talvez tenha conhecido a Europa, um bon vivant, enfim!        
- É... deve ter desencaminhado, a força, um monte de raparigas.
- Tem cara também de quem se envolveu com as letras.
- Provavelmente registrou memórias comezinhas em livro bancado pelo dinheiro público. Historiador de província provavelmente. Deve ter algum título esquecido com sua assinatura. Devia tirar onda de estudioso e amante das artes. Deve ser eternizado por aí em alguma Academia.
- Sei lá. Patrono de uma porra qualquer aí.
- O povo dessa época é chegado a um soneto, um verso romantóide ou parnasiano. Arrotam erudição enciclopédica e produzem memórias para manter a lenda familiar. Infelizmente a lenda não é lenda. São factóides, isso sim. Capitalizados e reproduzidos.
            A tarde correu. Não se demorou com as nossas viagens especulativas. Guarda Belo passa e avisa que o horário de visita acabou.
De saída, quando o fitamos mais uma vez, o fantasma do retrato parecia rir por trás da bigodeira. Ria de nós. Um riso de faceirice e escárnio pelo nosso vão exercício de dissecação de caráter e ironias do frágil elemento vida. Saímos pela alameda rumo à saída pensando no poder igualitário que, aos fins, tem a terrinha de cemitério onde ninguém pode criar latifúndios.

por Edson de França