domingo, 23 de setembro de 2012

O livro e o lembrete





            Singelo e enfático lembrete de quem, provavelmente, procurava emprego ou, como se dizia antigamente, uma “colocação” em tempos bicudos. Penso até que a palavra colocação soa bem mais expressiva para a condição que o cartesiano termo emprego. Nela, a necessidade cria ares de busca da dignidade básica. Da busca desenfreada por ser e estar num tempo de massas informes, dos sub-empregos e, pior, dos  não-empregos.
           
Biblioteca Central/UXXX

TEORIA DA CULTURA DE MASSA

dia 4 do 9 terça
3 da tarde
Bolevard.
B
daiana
levar o currículo.

 
            O livro, um opúsculo reunindo figurões da sociologia, da comunicação e da cultura, repousava (provavelmente depois de recém manipulado) numa das mesas da sala de estudo da universidade. Cena deveras corriqueira dentro das rotinas dos centros de estudo. Alunos que chegam, recolhem livros, escancaram as entranhas, extraem de lá alguns parágrafos, fazem anotações às margens das páginas, transferem algo importante de lá para os seus cadernos e, seguindo a norma das bibliotecas, largam-lhes lá para que diligentes auxiliares cuidem da saúde da sorte dos volumes.
             O lembrete, aposto no lugar prá lá de improvável, era escrito com grafite em letras bem legíveis. A princípio, telegráfico. Denunciava a condição semi-infante do escriba graças à firmeza recém- adquirida dos livros de caligrafia. Nas entrelinhas, certa inabilidade com os estrangeirismos introduzidos em nossa pátria globalizada. E certo desleixo compreensível com as normas cultas da língua, onde nos ensinaram, por exemplo, que nomes próprios começam com letras maiúsculas, que é preciso usar vírgulas para “indicar uma pausa e separar membros constituintes de uma frase” e que “todas as palavras proparoxítonas devem receber acento gráfico”. Não necessariamente um pontinho duvidoso sobre a sílaba tônica.
            O livro cheirava ainda a novo. As páginas ainda se mantinham impecavelmente brancas. Não tinha ainda as folhas manchadas pela adiposidade ou suores das falanges dos leitores. Muito menos a poeirinha típica que denota a decrepitude da matéria e o trabalho incansável das traças.  A ficha de controle de empréstimo contabilizava apenas três saídas. A data de registro de entrada do livro no sistema era 16/12/2010. O primeiro empréstimo, 14/09/2011, quase exatos nove meses depois da entrada no circuito da biblioteca. Tempo de gestação.
            A teoria e a vida real pareciam dialogar a partir daquele ato fortuito. A teoria, solene, séria, compenetrada, condensada em livro para o gáudio de intelectuais que tentam explicar e compreender o mundo. A vida real, prática, se construindo qual fonte fugaz, imprecisa, nas mesas de uma biblioteca pública onde uma daiana grafou singela e enfaticamente (os algarismos 9 e 3 marcavam fortemente a folha, como se fosse mortal esquecê-los) um lembrete.
Molecagem? Depredação do patrimônio público? Vandalismo bibliotecário? Pressa? Falta de papel?  Uso indevido de um bem coletivo como agenda pessoal de lembretes? Ao cronista, de passagem, apenas um lembrete sugestivo. Sumariamente, representava a possibilidade de uma pessoa “colocar-se” em meio às maquinações produtivas da massa no século vinte um. Culturalmente.

por Edson de França

A realidade e o imaginário





            A primeira aparição que utilizaram para nos assustar, quando crianças, foi o Bicho Papão. Debaixo de várias roupagens. Ou disfarces. Entes que podiam ser inspirados tanto em personagens de fábulas como lobisomens e vampiros ou ainda ganhar representação real nos andarilhos maltrapilhos que perambulavam pelas ruas do bairro.
Dia desses me surpreendi ao localizar, num dos episódios do seriado Chaves, uma versão mexicana popularesca do Velho do Saco, malvado ancião raptor de crianças. Assim percebi que a globalização cultural antecipou em décadas a propalada globalidade econômica. Pelo menos em termos de artimanhas paternas para controlar, pelo susto, seus irrequietos rebentos.
Os miúdos do grupo escolar eram acossados pela suposta aparição da Mulher de Branco nos banheiros.  A personagem (pela descrição de quem chegou a vê-la) trajava uma vestimenta branca como os moribundos dos hospitais e loucos dos hospícios da época e se tornava mais assustadora por chumaços de algodão apostos nas narinas. Aqui não posso precisar se a invenção devia-se a criação de adultos ou das próprias crianças em puro exercício de fabular com a imaginação.
Pela vida a fora, contudo, fomos nos acostumando com outras fantasmagorias, cujo objetivo mais superficial era nos fazer tremer. Arrepiar os cabelos, por assim dizer. Toda nossa cultura ocidental é marcada fortemente por esse quesito. Descubro em Gilberto Freire, por exemplo, uma Cabra Cabriola das ruas de Olinda, do abecedário do povo da zona da mata emerge uma Cumade Fulozinha, senhora dos redemunhos dos quintais descampados. São mitos engenhosamente criados pela cultura popular. Cumprem uma função prática e somem nas brumas do imaginário. Isso quando não são desmitificados e, perdendo a mística, passam a não mais fazer sentido.
Em todos eles, porém, há que se notar uma mesma nota. Eles não surgem do acaso. Todos eles têm uma representação transplantada do real que vemos. Uma espécie de inspiração. Um jogo entre o consciente e o inconsciente. Em sendo assim, esses personagens são íncubos recheados por nossas crenças, nossas visões de mundo, nossos preconceitos...
Os personagens incorporam, por assim dizer, nossos racismos. Procura-se um travesso saci ariano por aí a fazer artes. Nossas fobias sociais. Há relação entre mendicância, a senilidade, a pedofilia e o trabalho infantil? Nossos medos. Há morte, há doença, há o abandono, há a loucura. Por esse prisma de visão sistêmica só nos resta concluir que, perto dos bichos que nossa mente social coletiva é capaz de criar, o bicho papão não passava de um velhinho desgarrado que pedia um pedaço de pão pra viver mais um dia entre seus fantasmas e nossas pressuposições.     

por Edson de França

sábado, 12 de maio de 2012

Dias de Lobo


O melhor momento do dia é quando as línguas descansam. Ensimesmados, conseguimos rememorar pequenos flashes (a maioria insignificantes) da novela que se passou em 8, 10 horas de vida ativa. Conseguimos, enfim, ruminá-los...

É que andamos exasperados, perambulamos, muitas vezes a esmo, falamos (muitos de nós, por obrigação do ofício, é bom que se diga), comemos a comida suspeita da rua, cruzamos praças, avenidas, ruelas, becos e (des) respeitamos sinais... observamos as paisagens e os passantes, vamos ao banheiro alguma vezes atender solicitações naturais e inadiáveis. Estivemos, durante uma jornada, de frente e de banda pra pessoas, pensamos, formulamos lógicas, nos exprimimos, fomos bem ou mal entendidos, nos exasperamos por coisa pouca, paramos, tomamos o Prozac amigo, atenuante como os colegas da rua. A pressão sobe, desce, oscila, trepida, lembrando um velho elevador que range e ameaça a tudo exterminar com um baque pras profundezas do poço. A fronte arde em fogo diante do sol. Fomos consumidos, consumimos. Consumimos-nos, lobos de nós.

Volta para casa (diria bar, se todos nós fossemos da confraria da cerveja). Lugar que nos cabe sem reserva. Lá, encasulados, bem dentro de nós (como o eu caçador de mim da música do Milton) buscamos, ou perdemos tempo tentando, encontrar o eu maior e melhor que aquele que projetamos. Fingimos acreditar que ele existe e pode, a qualquer hora mostrar sua face surpreendente.

Recolhemos céleres, as ferramentas dos deveres sociais que nos prendem ao cotidiano. Baixamos o pano do circo. Limpamos a cara.  Ensaiamos outros enleios. Voltamos, enfim, ao barco que nos conhece como capitão. Verificamos as amarras, largamos o leme. Brincamos de atirar e puxar a âncora no mar de dentro. Pensamos. Viajamos por azuis, imensidões. Horizontes tão conhecidos, tão próximos, distantes...

O desafio é esquecer o dia. Ou algumas partes dele. Talvez as mais desgastantes. Deve-se guardar dele o delírio significativo para reutilizá-lo num passo errante dos próximos capítulos. Se houver, é bom que se diga!

Quando enfim chegar o novo dia (por uma pratica reincidente) nos sentiremos como um outro ente. Do batéu que plana sereno, das ondas alisadas, das nuvens espalhadas para despontar um sol brilhante e amigo da pele, do céu azul que artisticamente pintamos, dos ventos que acalmamos e dos peixes que domamos pra puxar a caravela, pouco ou nada teremos. Viraremos, outra vez, submarinos forçados a submergir no mar de fora. Da pressão até suportável, da brisa amena que nos acolheu, desceremos ao cenário belo e insalubre do cotidiano. Voltaremos a compor capítulos da lenda tornada visível, palpável e, sobretudo, criticada, degradável.

Convenceram-nos que desse embate diário dependeremos sempre para garantir sobrevivência. A fotografia ¾ envelhecida no belo quadro social. O trabalho, as horas, os compromissos, as discussões, os malentendidos, a guerra de egos, os interesses legítimos versus os interesses escusos, as indiferenças, essa hipocrisia. Até onde aguentará nossa carcaça?

Chamo aos Homens de submarinos por entendê-los “artificialmente” construídos para as pressões do mar de lá fora. Onde tem-se que ser lobos quando bobos, irônicos quando lesos, hipócritas onde a hipocrisia é moeda corrente. Palavras secas (ou ressecadas numa goela rouca), medos insanos, sentimentos dúbios, tics pra lá de nervosos, tibiezas enraizadas, recalques, autoritarismos recorrentes, “simpatias de giz” para ocasiões gélidas, aceitação resignada e crente nas regras do jogo. Alternamos humores, modulamos a voz para engolirmos e cuspirmos cururus, apressamos os passos, desconfiamos da destreza do chofer, aguardamos o passo em falso do passante ao lado, rimos nervosos, damos esmolas como piedosos cristãos. Assistimos de dentro da cena o rondó desse tempo de desperdício de talentos e vontades.

Em momentos do dia, porém, nos miramos telegráficos, monossilábicos, mesmo quando a crônica nos invade e pede para se esparramar numa folha em branco.

- Hulk!... gelada, por... favor!

Simplificando. Bastaria uma palma fechada e um indicador apontado para o alto, para o entendimento e o silêncio de oratório que o fim de um dia nos cobra.

por Edson de França

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Plugues e âncoras


12h35min de um dia comum. D. Iva, do alto dos seus quase 80 anos, se posta à entrada do Bl.01 do condomínio residencial. Vai “olhar o mundo”, como diz a quem passa. Para quem pára por alguns segundos para ouví-la, reclama da vida que leva e fala do seu desejo de rasgar mundo, viajar, rever terras por onde passou, onde viveu a feliz juventude, desbravar lugares novos, ver e rever gentes. A fiel obrigação de D. Iva a condiciona a uma rotina de pouquíssimos e limitados passos. Presa às mecanicidades da vida domestica e às plugagens extasiantes ao mundo colorido da Tv a cabo.

Vez por outra, a velha senhora experimenta estágios de depressão. Nota-se pelo seu desinteresse repentino pela vida e seus hobbys mais ternos. O jardim por ela cuidado é quem clama aos quatro ventos o estado letárgico da amiga. Que as rosas não falam, até concordamos com o velho poeta; mas tanto elas como a natureza em geral são expressivas por demais em seu mutismo. Assim é o jardim da velha senhora. Nele, a sintonia da flora com a fauna humana materializa-se em sinais. A felicidade do viço, a flor que se abre para saudar as manhãs, o verde que parece agredir pelo frescor, a felicidade das chuvas de mangueira. A fragilidade, a decrepitude do verde, a ausência do frescor, a cor em chumbo motivada pelo abandono, sinais do desânimo provocado pela reiteração dos dias, irritantemente iguais. Estados que sinalizam as contradições e antagonismos da vida, de toda ela.

D. Iva me serve de mote. Roubei dela o instante e a lição. Precisamos como elementos contraditórios da matéria vida de plugagens. Mantermos saudáveis plugues com pessoas, elementos da natureza, estados de espírito, paisagens diversas, fatos da vida mundana, palavras que sugiram horizontes a alcançar. Por outro lado, lançamos mão das indefectíveis âncoras como élan de estabilidade e segurança. Assim são o jardim e os desejos aventurescos de D.Iva. É com ela que aprendo, dia a dia, poeticamente (quiçá, filosoficamente) a alternância de estados vitais no decorrer da existência.

Utilizo muitas vezes o termo ancoragem. Sou meio fã da poeticidade que a palavra emana, mas tenho cá meus senões com o que ela sugere. A âncora, mãe significante da palavra, por sua função, sugere certo pouso estático. Correntes e grilhões amarrados a um objeto cujo objetivo é limitar movimentos; segurar outro objeto contra os convites sedutores do mar imenso.

A plugagem, por sua vez, sugere abertura de portais. Um prosaico objeto que ancorado em um receptáculo acende luzes, abre telas, propõe intercâmbios simbólicos, dá sentido a materialidades e imaterialidades sugestivas. O plugue pressupõe correntes múltiplas, ondas inimagináveis, previsibilidades mínimas, descontinuidades.

Somos, independente da idade em que estejamos, como D. Iva sentada a porta do seu apartamento térreo. Estabelecemos com o mundo relações de plugagens e ancoragens. Fomos moldados gradativamente a buscarmos pouso, âncoras, que nos permitam estar em situação de espreita, repouso, relativa paz com objetos, pessoas, coisas ao nosso redor, mesmo que isso se revista de uma incômoda rotina. De outra mão, é-nos imprescindível ampliarmos as plugagens, lançarmos mãos dos tais plugues, para que a mente, mesmo enfronhada, desafie o rotineiro. Que vá livre buscar o passado, que dê cores psicodélicas ao presente, que visualize futuros. A ancoragem, de fato, é um estado passageiro, afinal o mar sempre será o convite aberto da partida. O plugue é o mar, real ou virtual, que propõe turbilhões de aventuras, sejam tíbias ou inquietantes, e visualizações marotas e lúdicas sobre o mar da vida, suas tessituras e profundezas.

por Edson de França

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Quando escuto a minha aldeia


É devedê, o som! O som da Spris invade meu cafofo legal. Sente. Sente como treme as parede. Doida e gostosa... a doida. A Brity Spris... sabe do que falo? Dizem, por aí... usaro um tal de fotochópi nos crip. Credito não, meu irmão! Fotochópi? Sei marromeno o que é. Óia, é assim, você leva uma “quenga véia” pros estúdio das foto. Ah, tu quer saber o que é “quenga véia”? Um troço estragado, assim, uma Maria Pêra uma Bete Farinha, sacou? Ou mió, uma Bebe Amargo. Pronto, sacou, coisinha véia dessa espece.

Poi bem, os cara tira as foto. Adispois vai oiá e num dá outra: pelanca só. Mas num tem problema pros cara das revista. Eles tem a fórmica de tranformar tudo. Eles leva as foto pra outra máquina... uns computador, sabe (?), e fai umas prástica. Não no coipo, não, nas foto! Dize qui as maquina é capai de fazer Glora Pire... sabe a Norma da novela, pois bem... dize por aí que abasta uns toque de butão qui ela é capai de ficá a cara e o coipo, craro, da Creo...saca a Creo, fia dela cum Fabo Juno? Lá, nos laboratoro, eles vão tirano as ponevrose, jeitano as cara véia, os botoc e a peça fica GG, joinha, joinha, entendeu? Ponevrosa? é o mermo que pelanca, aquelas parte que não se come e qui a gente tira da carne cum faca fina pra ela ficar de primeira. Já trabaiei in matadouro!

Suburbo? O que é isso? Ah, se é isso mermo... essa coisa de ser pobre, fudido, morá mal e longe dos centro... eu sou, sou!... Tai ouvino som? Num intendo porra ninhuma do que essa nega canta. Meu ingrês é esse mermo que nós ouve, aprende dos gringo e fala. Adispois, tem os dicionáro de duas língua para quebrar os gai maior. Uns ailóveiús, uns emetivi, uns brodér, uns joni alque, uns oldete... o que preciso, sabe? Me mantém grobalizado, sacou? O ingrês é a língua da moda, num é? Dize por aí que pra se dá bem no mundo grobalizado é preciso saber ingrês.

É isso mermo, o chinêi também? É... eu ouvi dizer lá pelas banda do porto qui aprendê chinêi é da hora! Dixero até qui um dia vai haver uma invasão de china puraqui! Dixero que vem aos pouquim... uns produtim. Uns celular de doi chip, uns cavalim boiola rodano in volta dum pau. Tu já viu? Passa ali na frente... na Apitácio que tu vai vê!... Daqui a pouco vamo dividir té os barraco com eles... os china. É... mais num mundão desses onde já vi té alumão na Ramadinha, tudo pode acontecer. Acho que é mermo, visse... já tem chinês na favela em nos prédio do centro e levando o rapa da guarda municipá. Siná dos finá dos tempo, né não?

Grobalização? Pra mim é andar organizado. Assim..., sei não..., como é que eu digo..., nuns pano de responsa, ané nos dedo, uns pisante legal... brinquin não, que não sou feme, uns palavriado em ingrês... uns caquiado. Prontin, grobalizado. Quando o minino lá de riba, deus, num sabe(?) mandar bons tempo, compro um carrim pra incrementá... ai tunu o bichin... umas caxa de som, essas coisa, apararei de devedê pra ouvir uns forró..., fazê uns precateado, pegá umas nega! O que? Mulhé? Pra tu saber, chega cá... cum meu jeitin assim já paguei até universitara! Pensano o que???!!!!!!!

por Edson de França

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Gavetas... lembranças, restos


Um dos mais típicos sinais de determinação do envelhecimento é o volume acumulado nas gavetas de casa ou nos escaninhos da repartição que nos vampiriza. Quando o infeliz olha para um deles e lá encontra objetos com idade superior a três anos não é sinal de que a velhice bate a porta. Ela já mora. Já ocupa espaços consideráveis e ameaça espalhar miasmas por toda a casa. Definitivamente instalada, dona, dá ordens e, sadicamente, sinaliza o escoar do tempo.

Aqueles objetos – uns guardados por zelo; a maioria, por pura displicência - se acumulam como células mortas na carcaça decadente do individuo.

Uma velha embarcação, cansada de singrar mares, leva consigo memórias das águas cruzadas e dos portos de visita grudados em seu casco. São os souvenires da passagem. Os monumentos da existência. Inglórios resquícios do tanto navegar, em forma de calosidade de ostras parasitárias. Eles serviriam para recontar viagens, mas tão somente denunciam o passar dos anos. O apelo inexorável da idade. Nelas as alegrias e as dores, os mares revoltos, a calmaria, encravados como segunda pele, tatuagem crespa, nas partes submersas da nave.

As gavetas são os nossos bojos submersos. As células, naturalmente, jazem inúteis sobre nossa pele. Os órgãos (fígado, coração e pernas) acusam a idade e a cobrança dos exageros juvenis em dores pontiagudas. As gavetas, como extensões físicas de nossas afetividades mundanas, servem tanto para o acúmulo de coisas úteis como de lembrancinhas dispensáveis.

Nelas lançamos, sem muita ordem, os documentos inúteis, as correspondências não lidas, as canetas-brinde e os brindes diversos, objetos de aço enferrujado, cortadores de unhas cegos, os cheques devolvidos, chaves de deus sabe lá que fechaduras, relógios paralisados numa hora morta, pilhas, baterias, pecinhas desgarradas de objetos não identificáveis, aquele panfleto evangélico-apocalíptico nos lembrando da falibilidade do mundo e de nosotros, a anotação para o poema natimorto, o rascunho do conto cujo personagem se perdeu nas brumas da falta de inspiração, os cartões bancários recebidos e jamais desbloqueados, uns números de telefone avessos e não identificados, bilhetinhos, propostas mirabolantes para assinatura do Readers Digest, reprografias de São Jorge, Santo Expedito e Padim Ciço, mosquitinhos de mães-de-santo diversas prometendo a volta do amor perdido, calendários de anos há tempos findos, tocos de vela para a iminência do blecaute, notas fiscais, raspadinhas azunhadas, volantes de loterias pule de jogo do bicho, cartelas de bingos, listas de compra, cartões de aniversários, nascimentos, óbitos, saudações do dia do amigo, lembrancinhas de casamento, de batizado, de primeira comunhão, de crisma, de barmitzva, de troca de faixa de capoeira... santinhos daquele candidato em quem votamos e nos arrependemos. Amiúde, baratas bisonhas e traças oportunistas.

Somos naus, errantes por teimosia, em mares de humor inconstante. Os cacarecos acumulados, como nas naus marítimas, são nossos restos de ostras e microbúzios dos mares por onde nos aventuramos. Na maioria das vezes, porém, são lembrancinhas desimportantes do charco em que nos afundamos. Do mar cotidiano que singramos como rotina, vício, indeterminação. Resignação, sobrevivência...

As gavetas podem passar por extensões naturais da memória se vez por outra assomarem peraltas à soleira da afetividade, brincarem com sensibilidades latentes. Se comportando como visitas benfazejas, revisitas da alegria, como projeções vivazes e ancoradouros imediatos de momentos felizes e boas lembranças. Mas, nem sempre é assim. As gavetas se comportam como túmulos, tumbas com o mínimo de ostentação, dessas coisas comezinhas que se agarram a nós como desimportâncias parasitárias, determinadas pela sua própria natureza passageira.

Pode ser que existam gavetas ricas. Pode ser. Ricas de vida em forma de memórias, afetividades redivivas, valores diversos. Mesmo assim, apenas como exercício, é preciso escancará-las, expor-lhes as entranhas, revisar o conteúdo, expulsar os parasitas, reavaliar importâncias e, mesmo entre a vontade e a dúvida, descartar objetos. Lançá-los ao longe ou dar uso corrente aos velhos bibelôs de brinde. Rasgar papéis... reencontrar o personagem do conto suspenso. Quem sabe por sangue em suas veias para que ele, uma vez nau, viaje outros mundos e construa suas próprias lembranças. Quem sabe, apor novo sentido ao poema natimorto, recriar os universos ocultos presos a teia das palavras imprecisas.

É preciso, vez ou outra, agir como as velhas naus: permitir a raspagem da crosta de algas e musgos, se livrar das caspas que denunciam a idade. Não conseguimos tão naturalmente, sacolejar como os cachorros para contrariar pulgas e carrapatos. Então nos resta agirmos como as naus para nos livrarmos dos objetos inutilmente acumulados que só servem para denunciar nossa decrepitude.

Abramos as gavetas, reviremos os escaninhos, despejemos fora seus conteúdos. No mínimo estaremos nos livrando das fantasmagorias que silenciosamente por ali se infiltram.