quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Democracia monárquica - II

As eleições em geral se notabilizam pelo signo do novo. Novos os tempos, novas as caras. Porém, nada a se comemorar: o novo traz encarnado em si o velho. O velho hábito, a velha usança, a velha retórica tantas vezes recorrida. Algo que não se classifica exatamente como fenômeno nessa terra tendente a vivificar comportamentos monárquicos. E, portanto, nada que gere espanto, ânsia de revolta ou repugnância para quem dança conforme a dança.
Por essas bandas o exercício político passa pela consangüinidade, ou seja, por aqui é importante fazer parte de um clã, de feudo, de reinado ou principado mirim, em primeiríssimo plano, se quiser estar entre os protagonistas da dança eleitoral. Se não, para tão somente compor o quadro de figuração, que ostente ao menos uma pitada de sangue, mesmo que emprestada por diluições sucessivas, da nobreza e ocupe um reles posto de-pré nas bases sustentatórias da estrutura.
Aqui, a herança política – e em que sistema se pode falar de herança política a não ser nas monarquias? - é riqueza, patrimônio, e como tal tratado. Negócio, portanto, gerenciado sob bases bem pouco esclarecidas para uma maioria que cede, gratuita e democraticamente, aos membros da nobreza, assim tacitamente formada, o direito de representá-la nas instâncias de mando do país.
O processo se dá mais ou menos assim. A arena política é dividida em grupos com vários membros e extensões variadas. Formam territorialmente potentados, a que nossa sociologia cabocla denomina de currais. Mas são donos também de uma espécie de território psíquico, permanentemente (re) construído, que instala e legitima sua condição real no pensamento coletivo. Os limites de ação do grupo vão das camarinhas das mansardas às ruas dos povoados chinfrins, passando claro por acentuadas incursões em instituições e órgãos públicos dos quatro poderes e empresas privadas. É portanto uma ação tentacular, um estilo livre de famiglia.
Famiglia, falemos assim, porque não é composta exclusivamente de membros consangüíneos diretos – apesar de estes serem os naturalmente aptos para as sucessões -, mas de parentes, semelhantes, aderentes e agregados de todos os matizes. Uma espécie de hierarquização, com distribuição de títulos de nobreza que incluem marqueses, duques, condes, no primeiro escalão. Fracassados e lascivos barões, no segundo. Damas de companhia, anões de festa, cavalariços e diligentes serviçais para varrer e jogar a sujeira debaixo do tapete, num terceiro nível, e assim por diante até lá embaixo.
Cada grupo político tem o seu cacique. O morubixaba ganha peso pela eleição ou sucessivas eleições. Se atingir uma cargo alto vira o chefe supremo e passa a mandar. Cria uma curriola de sectários, um vassalato nobre com direito a proximidade física e cultivo de ânsias de disputa. Depois, granjeia uma horda de bajuladores, aliados, baba-ovos, xeleléus e outros impronunciáveis e os mantém a custa de promessas ou generosos presentes, empreguinhos na administração pública, por exemplo. A maioria desses fiéis seguidores sonha em um dia montar sua própria famiglia e obter uma projeção política e é essa promessa divina que eles acalentam sob o travesseiro nas noites insones. Dificilmente conseguirão. Seu destino, na hora da precisão, quando se tornam verdadeiramente visíveis, é virarem laranjas, bodes-espiatórios ou bois de piranha quando a casa cair ou a fossa encher.
Ah, na democracia monárquica todos têm as mesmas oportunidades. Todos podem posar para a foto. Contanto que saibam qual papel lhes cabe na trama; se baronete, duque, bufão ou bobo da corte. Tem espaço até pra patuléia, mais uma vez, contanto que ela se vista de trapos e comporte-se enquanto a corte desfila (não pode, nem em sonho, dizer que o rei está nu!). Saiba, por fim, bater palmas e assoviar alegre e abestadamente com a língua enterrada entre os dentes.


por Edson de França

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Democracia monárquica

“Eu vejo o futuro repetir o passado/
Eu vejo um museu de grandes novidades.”
(Cazuza – O tempo não pára)

A monarquia brasileira morreu de inanição faz eras, porém uma análise do quadro político brasileiro (não sei dizer se em outras democracias o mesmo acontece, mas posso falar pelo que vejo no nosso terreiro) nos revela que os hábitos da velha nobreza palaciana ainda sobrevivem. Tudo como de antanho. O velho ramerrão entre palacianos e paupérrimos súditos de vossas majestades continua vigente, mesmo que travestido de uma meicape modernosa.
Monarquia denota sucessão sanguínea. Nela, os rebentos sabem da sua condição de reis em potencial desde crianças. São os marcados, os escolhidos. Caminham pelos corredores e camarinhas dos palácios aprendendo ali, no leito das manias senhoriais, todos os desvãos do poder. O que envolve a intriga, o jogo de interesses, a boa ou má vontade do soberano sobre seus serviçais e súditos. É com esse aprendizado nas mãos que o escolhido assumirá o poder um dia.
Na nossa condição contemporânea, lideranças não são espontâneas. Alguma temporã pode até despontar por acaso, contudo, dificilmente conseguirá entrar e se manter nos panelões aristocráticos que compõem os núcleos de nossa democracia monárquica. Falta-lhes, talvez, pitadas de sangue azul nas veias, ou mesmo leves êmbolos de azul de metileno circulando pelo corpo. O espocar de lideranças por essas bandas obedece a princípios particulares. E são muito bem detectáveis para além das capitais, mesmo que este seja um principio naturalmente impregnado n’alma brasileira de Porto Alegre a Gado Bravo.
O Nordeste, não é de hoje, já teve seu condicionamento sub-desenvolvimentista soberbamente explicado pelas ações perniciosas de sua casta de políticos, nossa monarquia mirim. São as “permanências”, das quais nos deu noticias um dia o professor Gilvandro Sá Leitão Rios, catedrático em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba. Às permanências, detectadas pelo professor, ousamos denominar tão somente de “continuidades maléficas”, mesmo sob a égide inegável da “mutabilidade” que tinge a condição moderna em que vivemos. Vivemos um tempo mutante, porém sob a imperiosidade de renitentes e incômodos lugares-comuns.
Políticos que “representam” feudos, ou melhor dizendo, ao meu olhar armorial, cidades-reinos ou principados de suntuosidades e decadências, onde a ignorância, passividade e tibieza participativa da população em geral convivem com estratégias de poder de potenciais experts do poder de mando. Famílias (ou seriam clãs, famiglias?) mantém como parte do sustentáculo de seus círculos uma relação incestuosa com os poderes centrais e adjacências. Daí não importa a letra do ferro com quais elas marcam seu rebanho. Qualquer um brasão manterá sempre o mesmo modus operandi: uma continuidade que passa pela ritualística ascensão ao poder e a entrega ritual do cetro para entes preparados (?) para sucessão. Ou tão somente, para uma continuidade... de erros.

por Edson de França
Iniciamos com o texto Democracia Monárquica uma nova fase deste Blog. Além das poesias que marcaram o eixo de existência deste veículo nos últimos anos, a partir de agora ele incorporará as crônicas produzidas pelo autor e trará de volta os comentários sobre o cotidiano da mídia, da imprensa e de toda essa incrível, sofrível e, por vezes discutivel, vida e toda cultura que envolve seus (des) caminhos.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Quintal no ar

Meu quintal é uma alusão periférica
Casas pálidas, amarelidão,
escombros, beira de linha,
O Campo do Rato, o queijo,
o crack

E um belo horizonte,
longe, longe, longe.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Glória Cigana (poema revisitado)

Estrelas não caem do céu.
Elas brotam do chão, vez em quando,
como flores.
São únicas, inimitáveis,
raras tão somente.

Solitárias.

A terra as retém e é-lhes estéril,
suga-lhe o sumo e o viço da entrega.

Pela perenidade de apego,
de compreensão, de seiva humana,
a hostilidade campeia ao seu redor.


Frágeis,
da natureza das flores,
em pedra sobre pedra,
apedrejando-se qual masoquistas,
artifices da inglória arte do conviver.

Caem, decerto,
mas se revigoram
e brilham sob o olhar de toda a gente.

Como místicos vagalumes, andaluzes,
ciganos da noite e do dia,
sobrevivem para o espanto geral.

Quando se vão
o amálgama luminar
de beleza e vida e cor e voz
que as definiu
mora no éter,
eternizando-as.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Tema do amor vivido

um amor chão e terra
ímpar como uma foto três por quatro
tese minha,
toda a simplicidade chique da erva daninha.

deixai o amor de céu e sonho aos poetas
(aqueles que não vivem)
nessa utopia,
nosso céu é o dia a dia.

Impulso/1997

A imargem do rio

Nos chãos onde pisou meu pai
Piso eu, agora,



Meu pai foge para a margem do rio
para pilotar jangadas frágeis.

De seu,
o sorriso menino, brincalhão,
os teréns de uma vida inteira,
a gagueira interminável
difícil de dizer "alô"
que não diz: se vai.

Nos chãos onde pisou meu pai
pisei eu, agora,



os passos estão lá,
estão aqui onde piso
e pisa meu pai comigo, consigo.

Impulso/1997