quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

O mistério dos ônibus fantasmas

        


Enquanto a ciência especula a existência - ou não - dos universos paralelos, o pobre das grandes cidades experimenta-o na pele nua e crua. Todos os dias, sem escapatória, viaja neles, assiste atônito suas estripulias e sofre com suas pegadinhas sádicas. Nem todos, como é comum nas matrix, têm consciência plena disso, mas bebe da experiência por ali, entre o conformismo da ignorância e a indignação silenciosa.  

É sabido que a vida social nos grandes centros é organizada por “universos” isolados. Círculos bem desenhados, é verdade. Universos que se tocam em algum momento mas, na maior parte do tempo, são dissociáveis, distantes, apartados por fronteiras indeléveis. A localidade, a condição econômica,  o padrão de vida e de consumo, o acesso a serviços e bens e, sobretudo, as condições de mobilidade determinam objetivamente esses status. 

Andar a pé ou utilizar os serviços de transporte público, ônibus sobretudo, é estar na base dessa pirâmide e, portanto, mais sujeito às molecagens dos universos paralelos. Sim, os universos paralelos, vez em quando, criam interfaces com o nosso, assim como o gran monde faz com a favela,  tão somente no intuito de humilhar aqueles que já andam ao rés do chão.

Os tais mundos, paralelos ao nosso, pressupõem-se extremamente avançados tecnologicamente. Qual seja, ambientes integralmente mediados pelos recursos da tecnologia, facultando aos viventes facilidades em suas tarefas. Tecnologia que também é fetiche do nosso universo e que, como tudo o mais, começa sendo usufruída pela classe A para, bem depois, chegar a ralé como novidade, inovação e promessa ilusória de melhorias. 

 Ainda bem que, por essa marcha irônica da história, a comida ultraprocessada seduziu e matou primeiro os ocupantes do pico da pirâmide, para só chegar às mesas paupérrimas muitas covas tubulares depois. 

Pois bem, afirmei lá em cima que o modo de deslocamento é determinante para estabelecer os universos paralelos visíveis. A tecnologia, então, desenvolveu-se para ampliar as distâncias. Do jeito que os computadores de bordo garantem a eficiência dos automóveis individuais, foi prometido aos humilhados que também favoreceria os coletivos.

Para pôr a prova testei os recursos de Wi-fi da frota renovada e dos excepcionais “geladinhos” de minha cidade. Não consegui, até agora, desfrutar de um segundo de navegação na rede. Ou seja, a loguei. Fiz o login. Moral da história: levaram meus dados e não prestaram o serviço. Logro tamanho família e humilhação. Não basta ser pobre.

Outro engodo, sadicamente planejado, implantado no sistema foi o aplicativo de espera de ônibus. Cada usuário tem, com certeza, uma taxa de resposta a expectativa é de malogro. Essa última, digo, deve superar em muito a primeira alternativa. É uma especulação, claro, mas que me apontem os pontos unanimemente positivos.

O sistema trouxe ideias como a previsão de chegada, o mapa de paradas e a integração temporal. Na teoria todos os veículos são monitorados, em tempo real, via satélite pelo GPS. O problema é que se chega no ponto, consulta-se o app e está lá uma previsão de 6 minutos, por exemplo, para o veículo pretendido. Toda satisfeita a vítima espera e nada; consulta outra vez e aparece o alvissareiro “em breve”, nada; consulta uma última e o infeliz, só faltando gargalhar na cara, indica: seu só ônibus daqui a 40 minutos.

Minha teoria é que, numa sacanagem inter-universos, o tal ônibus passou. Só que não na parada onde era esperado, mas em uma outra, ou seja, num universo outro, um metaverso, bem distante dos deveres, afazeres, presas e necessidades dos pobres, de fato e de direito, mortais. 


por Edson de França 


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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Selvageria


 

Alguns ousam classificar como amor. Amor à camisa, ao manto sagrado, à esquadra atual que os representa, aos registros,  ano a ano, de feitos e conquistas heroicos, aos heróis dos títulos épicos. Tudo  besteira. O amor mais verdadeiro mora no peito dos resignados, dos tolerantes, dos pacíficos, dos que entendem a circularidade da vida. Dos que sabem ganhar e perder. 

Os que inflam as narinas, estufam o peito e se armam para briga não são adeptos do amor. São amantes da horda, da balbúrdia, da insanidade, do ódio e, numa escala mais agravante, do homicídio, da eliminação do outro. Da barbárie, enfim. No adversário, eles só enxergam o inimigo de sangue. Suas consciências são incapazes de refrear seus instintos primários. Também parece não haver forças externas capazes de dissuadi-los. 

Partem para o confronto cego como feras ensandecidas. Só que,  diferentemente das feras naturais, cujo instinto de morte demanda dos chamados inadiáveis da sobrevivência, aqueles lá - chamados genericamente de “torcedores organizados" - atendem a uma outra lógica: a da sensação de frustração, da impotência, da falha total como ser humano.  

São seres insatisfeitos até consigo mesmos. Numa palavra, mal resolvidos. Prenhes de problemas psicológicos dificílimos de contornar ou de curar. Numa turba selvagem qualquer um, frustrado e covarde, tem condições de extravasar, praticar a maldade que o habita e gozar, com alguma sorte, do beneplácito do anonimato. 

Até hoje ninguém localizou a mão (ou mãos) que matou um torcedor com um vaso sanitário em Recife, após uma partida desse mesmo Santa Cruz que protagonizou a confusão no sábado (01/02/2025). O assassino - essa é a palavra que o define - jamais se denunciou e, por onde andar, pode muito bem posar de cidadão de bem, patriota, temente a deus e outras leseiras mais que marcam a identidade de um homem imaculado.

Caso fosse traçado traçado um perfil individualizado desses senhores (e senhoras) facilmente seriam identificados traços, dizem os estudos, dos "transtornos mentais maiores". Expressão traduzida do inglês que se refere a transtornos mentais graves, como esquizofrenia, transtorno bipolar, depressão maior e transtorno delirante. 

Ousaríamos incluir também neste rol, mesmo não sendo especialistas, as sociopatologias afetivas. A total falta de amor, de respeito e de outros ingredientes básicos da convivência, que vem a definir estágios minimamente avançados de civilização. O futebol, por acaso, é veículo despertador da insanidade? Serviria o esporte de milhões como um catalisador de instintos assassinos?

Ficam os questionamentos. Ficam os fatos registrados. Fica o medo do cidadão comum em frequentar os estádios. Fica, enfim, o espanto da população em geral sobre eventos inaceitáveis. Objetivamente, na parte atlética, o futebol se resume ao que acontece na arena. Fora dele, porém, se desenrolam outros cordéis.

A partir da arbitragem, a cargo das Federações, até às Bets, sites de apostas, tudo envolve valores monetários e manipulação das paixões. As torcidas, correndo por fora, também entram no jogo, sendo patrocinadas e organizando-se em grupos de apoio às equipes e, pelo que se vê, em quadrilhas de arruaceiros.

Não é portanto apenas o “amor ao clube” que justifica os movimentos de rua. O rastro de destruição que eles deixam são denotativos de desajustamento e incompreensão do básico do esporte: o desempenho e a conquista  demanda da existência do outro. O embate só é justificável com o qualificativo do outro exercer o direito à torcida, à escolha de um lado e, sobretudo, o direito democrático de defender suas cores, sem medo da exposição e dos riscos à integridade física. 


 Por Edson de França 

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