Repartição é uma palavra antiga. O vocábulo “antanho”, como fazem uso os doutos, talvez lhe adjetivasse melhor. Quando penso na palavra, e no ambiente que ela evoca, invoco mentalmente a personagem que a frequentaria.
Um tipo franzino, trajando calça de brim com vinco acentuado, camisa lisa de manga curta impecavelmente engomada, sapatos gastos, brilhando mais que trilha de lesma. Completando o visu escovinha, o cabelinho repartido no meio e um bigodinho sovina. Em dias mais solenes traja um paletó meio puído, herança de algum tio defunto.
Quem passeia pelas ruas do passado como eu notará que a figura que compus lembra o figurino do personagem “O Amigo da Onça”, criação do cartunista Perícles de Andrade Maranhão, publicado pela Revista Cruzeiro, de 1943 a 1972. Tracei inicialmente os caracteres físicos, mas não esqueci os atributos psicológicos inerentes.
Exemplares do típico funcionário da repartição, que na nomenclatura moderna recebe o nome de secretaria, setor ou escritório, podem ser encontrados nos romances e contos de Machado de Assis e Lima Barreto.
Imagino-o saindo de casa, às 6 horas e quinze minutos de uma segunda-feira, de sua morada localizada em um subúrbio bem afamado, dando um beijo na testa da “fiel companheira" e proclamando: “Não posso me atrasar para o expediente na repartição!”
A primeira vista ele engana. É muito gente boa. Leva uma vida simples vida simples, frugal, sem muitos vícios. Mas a convivência certamente o levará a concluir que, por trás da lã superficial, encontra-se o verdadeiro “finório da repartição”.
Não quero de forma alguma afirmar que a figura é uma espécie endêmica dentro das repartições do funcionalismo público. Os cartórios estão cheios de engomadinhos suspeitos que compõem, sem jaça, essa irmandade. Aponte o seu, onde quer que esteja.
São gente boa em boa parte. Escondem uns pecadilhos decerto, sob a pele de “cidadãos de bem”. Porém, quando compõem a “legião do mal” se destacam escandalosamente pelo caráter duvidoso, pela ética controversa e, sobretudo, por aquele tapete vermelho portátil que ele estende toda vez que o chefe cruza o batente da repartição.
A repartição se modernizou, é claro. Respira-se outros ares, os figurinos sofreram a influência dos modismos hodiernos. Aquele tipinho foi ultrapassado, assim como as rotinas dos setores. Mas guardem a imagem. A fauna humana que nela se reproduz, entretanto, vez ou outra sente saudades de “antanho” mostra-se exuberantemente reacionária, bem disfarçada por trajes modernos.
A maioria, como dissemos, é gente boníssima. Pacatos na medida certa, educados, prestativos, até ciosos de seus ofícios. Mas, para toda regra rolam exceções estrambóticas. Eis o feudo dos ardilosos, sonsos e sagazes da repartição, aqueles que compartilham expedientes similares ao amigo da onça aludido acima, com o agravante de serem periculosos, com tendências a dedos-duros e, sua maior característica, chaleiras do chefe.
Em sua homenagem, o poeta popular (no caso, o cronista que vos dirige a palavra), dada as singularidades do colega, traçou os versos que seguem, cantáveis em ritmo de marchinha de carnaval.
Pra polir bem
Você não acha
Um lambe botas
Tem que ter língua de graxa
Um escovão
E uma escovinha
Para manter
O piso do chefe na linha
Passa, passa o trapo companheiro
Lambe até brilhar
Que o chefe é tenso
Não dá bom dia
E anda a procura de uma boa montaria
De alguém que chegue
Se curve e brigue
Para manter o calçado real nos trinques
Dar à tramela
O texto e o tacho
Que lambe-lambe
Já nasceu pra ser capacho
Deixa-me rir
Não me socorre
Que o tal menino
Se não lamber botas morre.
por Edson de França (poeta, cronista e Jornalista)