quinta-feira, 11 de maio de 2017

O barato do Sr. Cucaracha

O capítulo da saga dos predestinados pode reservar estórias para além da imaginação. Quando elas têm um pé no real, então a coisa assume tons surreais. Para começar, parece haver uma relação intestina – aleatória, claro, entre o nome de batismo ou sobrenome de descendência e a escolha de uma profissão. Em outros casos, o impulso das sociabilidades impõe contingências que se atrelam como um desígnio, uma traquinagem do destino com atos e manias do escolhido.
            São coisas do tipo: aquele ente que ganha no batismo o sobrenome Tiradentes e durante a vida acaba atuando profissionalmente como dentista. Ou então, o cara é premiado com o magestoso nome de Emérito Cornélio Simples e, na sequencia da vidinha besta, vira um senhor pacato, namora, noiva, casa e, naturalmente, como uma galhofa dos deuses do acaso, ganha portentosos cornos de brinde da vida. Predestinação pura.
São coincidências, como as coletadas pelo humorista José Simão, da Folha de São Paulo, entre elas: Elisa Metefogo (diretora de presídio); Gustavo Coelho (médico veterinário); Temildo das Trevas (chefe do Cadeião de Maceió); Fernando Cabide (vereador); José Carlos Aquino Velho (médico geriatra); Carlos Redondo (superintendente da Pirelli Pneus) e Giorgio Rabolini (médico urologista).
            O engraçado, porém, é quando o nome (ou sobrenome) em algum momento da trajetória dos eleitos possa ser traduzido em comportamentos contumazes ou instantâneos.  Partindo dessa premissa, é que utilizo-me do meu espaço crônico para narrar a estória do predestinado Barata. Guardem o nome e lembrem-se das manias ou modus operandi do indesejável habitante do planeta que ascende dos esgotos e insiste em compartilhar moradia com os habitantes, lambendo, na surdina, tudo que lhes pareça apetecível.
            Penso que conheci o Barata nos meus tempos de estudante. Era político já, na época. Por muitas vezes, o encontrei como candidato a algum posto eletivo. Ao que consta, jamais conseguiu ter direito a um mandato, nem como eventual substituto em caso de licença saúde de algum titular. Restou, creio, utilizar a experiência e o voto nominal dos incautos eleitores para ganhar ou galgar posições no serviço público, prática comum entre os políticos nanicos.
            Passei muito tempo sem vê-lo. Também acho que ele esgotou a cota de desejo de se tornar um parlamentar ou, em outra hipótese, talvez tenha conseguido o cargo e a consequente remuneração máxima que suas múltiplas candidaturas lhe possibilitaram. Encontrei-o dia desses em uma situação, se não hilária, no mínimo nauseabunda, que justifica integralmente a predestinação da persona.
Estava em um ponto de ônibus numa avenida movimentada de Subirauá, quando o vi se aproximar. Estava mais velho, meio manquitola e com um ar especialmente blasé; daqueles que já experimentam o doce alheamento que a loucura e a senilidade proporcionam. O Barata ia fazer a mesma coisa que eu; esperaria um ônibus que nos levaria a algum ponto daquela atraente urbe.
Mas enquanto permaneci em pé, o Barata tratou de arranjar lugar mais aprazível. Acomodou-se numa mesa de um bar próximo. Ficou por lá, cara de boi lavado, observando a vida ao redor. Já havia até esquecido que o tinha visto, quando um instantâneo me chamou a atenção. Vi o Barata pegar um guardanapo e limpar vigorosamente a boca. Seria natural, o dia estava quente, a testa sua, escorrem suores pela boca.
Porém, fiquei cá comigo imaginando, que parte ou complemento teria perdido daquela cena. Resolvi fixar minha atenção na figura e notei, em principio que na mesa só havia mesmo as garrafinhas porta temperos (abastecidas, claro), que servem para condimentar os pratos pedidos pelos clientes de fato. O Barata estava ali, de penetra. Um ocupante, vamos dizer, indesejado.
Se nossa expressão pudesse ser traduzida em holográficos emojis, usaríamos na hora, dois olhões arregalados para expressar, a minha e das demais testemunhas, diante da cena dantesca. É que o Barata começou pelo molho de alho, deu duas ou três mamadas na bisnaga, empertigou-se e usou o providencial guardanapo para limpar a prosbócide. Daí, foi à pimenta, dois três goles, língua nos lábios e, outra vez o guardanapo.
Caiu de boca no azeite e repetiu elegantemente o procedimento. Chegou a vez do vinagre, e lá se foi o Sr. Cucaracha satisfazer sua inspeção matinal dos alimentos. Pelo que vi, salivou todos os temperos, batizando-os. Acho que só faltou mesmo palitar a dentuça e devolver os palitos ao seu lugar de origem. Sei não. Pensei no cliente que viesse a ocupar aquela mesa na hora do almoço, e aprendi: em bar que tem baratas, melhor não fazer uso dos temperos disponíveis na mesa.
Por Edson de França     

             

Os piratas das esquinas

Terror dos mares. Assim ficaram conhecidos os piratas. Todos nós em um dia da nossa distante infância quisemos ser piratas. Andávamos encantados com as possibilidades (irreais, claro) de aventuras e paisagens e lutas de espadas e mosquetões e roupagens exóticas e pistolas e canhões e velas, mastros e terras a vista. Chegávamos a sentir os sabores do vento, da descoberta, das ilhas desertas, dos esconderijos, do manejo secreto dos mapas do tesouro, dos segredos guardados a sete chaves, do encontro ocasional de riquezas. Creio que só não sabíamos do gosto do rum na época.
Crescemos e o desejo naturalmente se diluiu; aprendemos a ver a vida sem mais sabores de aventura, nada além da paisagem cinzenta da prisão da rotina e do cotidiano sem luzes ao fim do túnel. Penso hoje, depois de grande, falido e besta, que as crianças é que estavam certas. Era melhor sonhar de olhos abertos e horizontes para além da vista. A milhas de distancia dos cartões de crédito, livros e cartões de ponto, remuneração pífia e olhares atravessados dos chefes. Lá, no imaginário, sempre havia um tesouro a ser conquistado.
            Entre os fins do século XVI até o século XVIII piratas, corsários e bucaneiros saqueavam as potências da época, particularmente atacando os navios daquelas que mantinham colônias ou postos avançados de comercio na região caribenha. Cabe dizer que essas potências carregavam o pecado de, em nome do expansionismo colonialista, dizimarem populações nativas inteiras para roubar o ouro, a madeira, o marfim e a força de trabalho, escravizando-a.
            O pirata, portanto, seria, numa leitura inimaginável para nossas consciências naqueles dias, um herói ante o imperialismo e a politica de saques promovida pelos donos do mundo. Para nós era um individuo de atitudes heróicas e pronto. Creio que sobreviveu no mais intimo de nós essa visão. Na sequencia holywoodiana Piratas do Caribe (EUA, 2003/2017) todo mundo torce para que o pirata histriônico Jack Sparrow (Johnny Depp), se não vença, pelo menos escape das investidas de seus inimigos no filme. Ou, ainda, na melhor parte humilhe-os, passe-os para trás ou deixe a nu suas faces despóticas.
            Os mares do nosso cotidiano, hoje, são as populações urbanas, o rebanho indócil e consumista que invade as ruas. Pelas esquinas da cidade, hoje, o pirata é o produto - cd’s e dvd’s, quinquilharias da china, roupas e acessórios que imitam as marcas famosas e toda sorte de produtos de origem duvidosa. Quem vende seria uma espécie de marginal, um fora da lei que negocia bens produzidos à margem do sistema convencional, ou seja, na ilegalidade. Resta dizer, porém, que o preço praticado pelos ilegais cabe direitinho no bolso dos pobretões, ou seja, atendem às limitações financeiras de uma porção da população que deixam lascas de se precioso couro no chicote sutil da exploração moderna.
            No lado oposto, a propaganda me pede desesperadamente, apelando para o meu senso de cidadão, para não adquirir tais produtos. Falam da qualidade e da minha contribuição para o mundo do crime, estabelecem uma relação direta entre o trafico de drogas e de pessoas e o comercio informal. Penso. Essa é apenas mais uma estratégia de deslegitimar, criminalizando evidentemente, esse comércio, não?
Ao mesmo tempo, a tal propaganda ainda quer me convencer que todo o lucro das grandes empresas, dos conglomerados multinacionais, é integralmente conseguido de forma lícita, legal e gera benefícios para a coletividade, para o país, para o distante subúrbio onde moro, para os irmãos que dividem as senzalas urbanas saltando de busão em busão. Para os marginais, os invisíveis, os sem carteira assinada, os sub-empregados de toda ordem, os explorados em sua força laboral que não percebem (nem tem como perceber) a sutileza brutal da exploração em que estão enredados.
Poupem-me. A logica não é essa, compadres. Quando tivermos empresas que paguem bem, enxerguem verdadeiramente o lado humano, invistam na sociedade, na educação e no meio ambiente paro de adquirir produtos piratas ali na esquina. Por enquanto, ainda acredito que a criança em mim tem razões para embarcar na nave pirata e expurgar, mesmo que por pirraça, a lógica que me induz a adquirir produtos de marca tal ou qual, aquela que jamais me dirá como foi produzida e que marca de chicote utilizou para “incentivar” a produção. 

por Edson de França

Forro de gesso e guaraná

Subíamos uma região íngreme quando, logo depois de uma acentuada curva, surgiu a placa. Era uma dessas placas de publicidade populares composta em letras retas e uma seta, dessas que geralmente indicam para uma imprecisa direção. A localidade era meio erma. Como dissemos enladeirada. O barro vermelho vincado por veias abertas pela descida das águas de chuva e uso doméstico. Algumas casinhas geminadas típicas de subúrbios ou povoados do arrabalde compunham a paisagem local. Talvez a coisa mais atrativa ao olhar ali fosse justamente a chamativa placa e seu reclame.
            Notei que os olhos do parceiro de aventura quase saltaram das órbitas ao vê-la. “Ôba, óia só, um forró!!! Mais tarde, quando nóis se desocupar, vou vir aqui pegar umas ‘nêga’, exclamou sorridente. Acusei imediatamente o engano do colega, mas não o resgatei do erro. Não quis tirá-lo do estado onírico que antecipava prazeres no FORRÓ DE GÉSSO (penso que a sonoridade soaria como se a palavra fosse escrita com Ç, portanto Geço). Confesso que ri por dentro, deu vontade de alertá-lo, mas me contive e seguimos viagem.
            O português para quem os linguistas requerem o rigor e o purismo das formulas do bem falar e escrever e os poetas denominam de espada para a luta inglória por dar sentidos e traduzir sentimentos é a mesma que, poeticamente, o povão reinterpreta e a faz viva e dinâmica. Em qualquer dos casos ela em realidade se mostra como uma lamina de dupla face com gumes amoladíssimos.
Se por um lado ela serve eficientemente com o instrumento básico da comunicação humana, não importando como seja usada nem em que nível, por outro, é uma caixinha sempre disposta a pregar peças, turvar compreensões e macular interpretações. Além disso, é pródiga em gerar mal entendidos, facilitar o duplo sentido e, como no caso acima, induzir a interpretações livres, apressadas e, na maioria das vezes, risíveis.
            A placa dizia formalmente em um português claro para os padrões da comunicação urbana: “Indo naquela direção você encontrará FÔRRO DE GÊSSO” (Forro de Gesso). Intencionalmente reproduzi a o enunciado da placa ressaltando os diferenciais que não lembro se haviam na original.  Acentos diferenciais no caso fariam a diferença gigantesca.
Para o lúbrico amigo o que saltou a vista, entretanto, foi a possibilidade de desfrutar de alguns momentos de libido com as meninas do tal forró de Gesso. Creio que até hoje ele vasculha aquelas bandas a procura do tal forró e suas voluptuosas negas.     
HxHxHxH
O bilhetinho, tipo ordem de serviço informal para o emissário que iria a barraca de Xará buscar o lanche da tarde para a rapaziada da Livraria era objetivo e claro.
2 coxinhas (uma de frango e uma de carne)
6 pães queijo
2 esfihas
1 guárana pet de 2 litros
Alguém, no entanto, antes do bilhete evaporar do recinto, chamou a atenção do redator da missiva gastronômica.
- O acento agudo desse guaraná aí não está errado não?
- Ah, é mesmo. Vou consertar, imagina se alguém mais vê!
Sacou a caneta e consertou, solfejando em voz alta todas as silabas.
- 1 guarána pet de 2 litros.
Chamado atenção mais uma vez, mais desculpas, “affi, tô morto de vergonha”. Sei que, acentos e desacentos depois, a palavra acabou saindo da livraria corretamente acentuada e o redator, talvez, um pouco mais atento para as armadilhas da ortografia.  
A história, claro, é que não podia morrer ali. Virou piada entre os pares e extrapolou os limites do ambiente de trabalho. A testemunha ativa do episódio incorporou o episódio ao seu arsenal de potocas. Não sabendo, porém, que a história ainda poderia render mais um capitulo xistoso.
A expectativa comum a todos os contadores de estórias – mesmo os instantâneos pessoais verídicos – é ver a cara de lua do expectante abrir-se num sorriso largo e  desague numa suculenta gargalhada. No presente causo, a expetativa não se confirmou, ou melhor, foi danada de desconcertante.
- E guaraná tem acento? – perguntou um aparvalhado ouvinte.
Coisas do nosso português.

Por Edson de França