Numa das ultimas vezes que o vi, ele dava cambalhotas no meio da rua, entre sua praça e a barraca de Diassis. O burrinho de cana barata, estrategicamente protegida do sol e das investidas dos sócios de carraspana, dava-lhe o combustível necessário para compor a cena tragicômica. No curto intervalo do trânsito, entre a passagem de um carro a outro, ele meio que encostava o ombro no chão e compunha um arremedo de catrâmbias para uma plateia entre extasiada e aflita pela exposição gratuita da decadência humana.
O público
circunstancial de transeuntes sorria. O rei da praça fazia as estripulias para
divertir o público permanente de comerciantes, taxistas e contumazes dos bares.
Os parças
de cana e sina soltavam piadas e incentivavam. O bufão sem fantasia se
esforçava para diverti-los, arriscando-se, pacote bêbado, naquela performance
suicida.
Chico,
assim era conhecido, se intitulava o rei da praça. Era nas fronteiras bem
delimitadas daquele logradouro, que ele parecia encontrar seu lar, seus domínios.
Além de tudo, a sobrevivência, a dignidade do trabalho pelos favores prestados
aos comerciantes do local em troca de uma dose, um resto de comida, uma peça rota
de vestir, uma caixa de papelão, uma latinha de alumínio para vender.
A
praça do rei não passava de uma área pública desocupada que foi ganhando
contornos de praça a partir da intervenção dos moradores. Comerciantes se
instalavam, alguém plantava algo e o rei vigilante fazia uma espécie de guarda
intensiva, diuturna e amorosa.
Logo pela manhã, quando os moradores saiam
pros seus trabalhos, encontravam o rei da praça varrendo o local. Se parassem
para ouvi-lo certamente notariam que, muitas vezes, ele não juntava coisa com
coisa. Falava sozinho, enfronhado no meu mundinho, se dirigindo num linguajar
estranho as figuras reais e imaginárias. Algumas vezes pedia uma ajuda,
chamando por nomes que ele guardava ou inventava.
Uma
coisa, entretanto, soava bem audível para quem quisesse ouvir: “Eu sou o rei da
Praça”.
A quem
parasse para ouvi-lo, ele falava da família. Falava de brigas com a mulher, com
os filhos, de pobreza e expulsão de casa. Contava do cotidiano dos
frequentadores da praça e das acontecências. Se ganhava um móvel ou objeto de
casa, corria para arranjar um transporte e conduzia o bem para a casa que ele
dizia ter, porém que nunca informava o local.
Parecia
ter uma deferência especial por quem o ajudava de alguma forma, ou ao menos
dava a impressão de considera-lo além da figura pública do pária e alvo das
brincadeiras de mau gosto. Desses lembrava nomes e repetia ao que parece para não
esquecer, contava suas peripécias e grandezas, ria das piadas e executava os
pedidos que acaso lhe fizessem como quem serve a um deus pagão. Era quando
exalava um ar de agradecimento e submissão.
À noite,
num nicho formado entre duas barracas, com papelões e tecidos, o rei improvisava
a cama. Dormia com os cachorros que guarneciam seu sono, não deixando que ninguém
se aproximasse. Outra vez, compondo o cenário, lá estava a garrafinha plástica de
parati fazendo companhia para atravessar a noite fria.
Nunca
mais vi o rei da praça. Não sei o destino, se é vivo, morto ou se eternizou,
como acontece aos moradores da rua, que sobreexistem entre a decadência e a
insanidade. Talvez, com a perda progressiva do reino, devido a ocupação desregrada
dos espaços e a debandada natural de seus personagens, ele migrou para outra
herdade. Foi para tomar conta, ser o rei e recompor, a seu modo, toda a escala
da nobreza a massa plebeia do seu reino.
Hoje,
quando atravesso a praça, escuto seu chamado “Ô, baiano!”. Paro, escuto outra
vez na sua conversa arrevesada, assisto atento seu desfile de personagens e
situações. Quando me vou, escuto bem claro às minhas costas: “Baiano, eu sou o
rei da praça!”
por Edson
de França