quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Chá de “puxadinho"

           
 A composição urbana de nossas cidades, em sua porção mais suburbana, é pra lá de caótica. Ela, flagrantemente, acaba revelando a face mais dolorosa de nossa condição socioeconômica. Enquanto nas regiões mais centrais e nobres das urbes, a tendência é que os aglomerados humanos sigam uma lógica de organização, nos arrabaldes impera a informalidade e o aproveitamento irracional dos espaços exíguos. Por lá, o “puxadinho” é quase uma instituição, uma particularidade típica dos “morros mal vestidos”.
            Para quem não sabe do que fala o cronista é preciso recorrer à sociologia e à antropologia dos andarilhos urbanos – os flaneurs -  para captar em essência o fenômeno. “Puxadinho” é, a rigor, a saída encontrada pelos abandonados da sorte para abrigar uma grande quantidade de pessoas em certo lugar. Sabendo da sentimentalidade humana natural dos pobres, não é difícil intuir que, destituídos dos bens materiais que desumanizam e geram o desapego, só lhes resta manter os parentes, aderentes e agregados próximos. É uma espécie de solidariedade, de simbiose (às vezes, com veias de parasitismo, mas deixemos o caso para outra crônica), da celebração ritualística dos laços afetivos.
            O “puxadinho” é filho da necessidade. Ela resolve, informalmente, nosso déficit habitacional. É a alternativa dos pobres de toda ordem para organizar e abrigar seus rebentos primais e, consequentemente, os nascituros desses rebentos. Quando me referi ao flaneur lá no alto, é que foi flanando, em um período de atividades inúteis, como recenseador, que aportei em alguns “cortiços” suburbanamente formados a base de “puxadinhos”. Um puxadinho (ou puxadinha) sempre acaba puxando outro até virar uma série, um acampamento sujeito à miséria endêmica e às atividades mais promíscuas.
            Em um terreno de, em média, de 300m², localizado dentro do triângulo formado pela trinca da Beira Molhada, Ninho da Perua e Bola na Rede,  seu João Apolinário ocupava a casa da frente. Palmas e “ô de casa” não foram precisos. Seu João ocupava uma cadeira de balanço, as pernas rugosas, pés rachados e meio sujos descansavam displicentemente dependurados, feito esculturas de tocos de arvores decrépitas. A corrulepe jazia inútil aos pés do homem de 55 com aparência de, pelo menos, dez anos a mais.
Recebeu-me com a formalidade dos humildes. Comuniquei-lhe o nome e a missão e ele se prontificou a prestar as informações que eu necessitava.  Mandou “puxar o banco” espécie de escultura rudimentar, esconcha, produzida pelas astúcias de um aprendiz de marceneiro. Ofereceu café e se dispôs a responder às perguntas do questionário básico: nome, sobrenome, cônjuge, descendentes, moradores da unidade e coisas do tipo. Falou-me da composição familiar da casa “grande”. Mulher, filhos, netos, sobrinhos de longe que em sua casa encontravam abrigo. Entre um dado e outro, histórias da vida, experiências vividas e comentários genéricos sobre os mais variados assuntos.
Antes de a entrevista chegar ao fim, havia uma pergunta que interrogava ao líder da casa se o terreno era ocupado por outra habitação. Aí foi que descobri a magnitude do cortiço que ocupava aquela área. Pela lateral direita da casa principal, um corredor com musgos na parede e lodo no solo levava a outro mundo, um quadro pintado com cores berrantes e lúgubres, sob as astúcias literárias de Aloísio Azevedo e uma atmosfera musical múltipla e perturbadora.
Um casario mal-ajambrado, estacas fincadas por todo canto, arame farpado se confundindo com fiação elétrica improvisada de uma casa a outra, varal de roupa, roupas estendidas, uma profusão de meninos de todas as idades e mulheres, placas de fossa pontuando o terreno... Só ali consegui recensear cerca de 45 almas. Antes de me despedir, missão cumprida, ainda recebi um convite para voltar no final de semana pra “tomar uma”, na inauguração de mais um puxadinho. Era uma recepção ordinária para um pródigo desgarrado que estava voltando do sul. A “puxadinha” já estava em pé e o rebento desgarrado também acamparia no terreno do pai até deus mandar bom tempo.

por Edson de França