A
expressão “fogo amigo” remete-nos aos cenários de guerra, aqueles em que um
guerreiro fatalmente “distraído para a morte” é abatido por um bólido qualquer,
disparado por um companheiro de farda. É difícil, senão impossível, identificar
as razões motivadoras do fogo amigo, afinal o alvo de quem se podia pegar um
depoimento esclarecedor, está mudo para sempre. Sepulcralmente encerrado em seu
papel de vítima do acaso. Ops! Falei acaso? Pode ser que a coisa também não
seja tão pacífica assim. Reflitamos.
No
máximo, pode-se listar duas ou três possibilidades fortes para a fatídica
ocorrência. Primeiro, por descuido. Há sempre, em todo exército que se preze, a
figura do vacilão; aquele que cuida displicentemente de seus afazeres mais
básicos e, em meio à guerra, é capaz de descansar os dedos tensos no gatilho da
arma. Segundo, por tensão ou zelo extremo. Na guerra, veem-se fantasmas ou
sugestões psíquicas de presença inimiga; isso desperta no soldado um estado de
tensão vigilante e sentidos de autodefesa permanentemente acesos. Basta uma
sutil assombração e lá vai bala.
Finalmente,
sadicamente falando, investiguem-se os casos de intenção homicida. Essa é a
arena do amigo da onça. Não cogitemos aqui especular as possíveis motivações
(aqui é uma crônica e não um tratado), mas ao menos duas possibilidades hão de
ser consideradas. Por uma neurose detonada pelo estado de guerra, onde matar
tenha se tornado uma necessidade, uma ordem superior emanada sabe-se lá de que
esfera.
Ou,
por uma arenga qualquer que o sniper
tenha tido com aquele desavisado alvo, na difícil convivência da caserna. Uma
terceira via nos levaria à pratica do divertimento puro e simples, ao prazer
mórbido que motiva gentes a infringir dores físicas ou psíquicas em outrem. Não
importa a causa. Ao final, estará um corpo estendido no chão, uma alma penada a
mais para se acostar ao túmulo do soldado desconhecido. E, em alguns casos, com
o remorso do atirador, caso tenha atirado por inapetência emocional.
Após
quatro enfadonhos parágrafos, hão de me perguntar o que essa zorra toda tem a
ver com o titulo. A rigor, o fato de que a via internáutica criou uma espécie
de fogo amigo que, com todas as suas sutis nuanças virtuais, tem um efeito bem
real na vida das pessoas. Não são poucos os casos de imagens geradas por amigos
em potencial, reais ou virtuais, que após viralmente distribuídos, agem como
uma espécie de morte social para as vítimas.
A
via internáutica serve como território grandioso para o culto famigerado à
personalidade. Da mesma forma que se fazem cultos à estética pessoal (em sua
maioria, ridicularmente) por meio dos selfies, se promovem exposições baratas do ridículo alheio e
exibições ingênuas de candidatos a fama ou ao tiroteio do fogo amigo.
O
caso da enfermeira do Samu, em Campina Grande, há dias atrás, foi o que
levou-me a considerar essas possibilidades tão reais. A exposição despojada às
lentes dos cinegrafistas amigos, levou aquela profissional ao questionamento,
por parte de seus superiores e pela sociedade, de suas habilidades laborais e
respeito ao ambiente de trabalho. Fogo amigo no mais extremo dos extremos.
Não
nos cabe especular qual a motivação de quem postou a tal filmagem. Cabe em duas
palavras: sacanagem e inapetência com o uso das tais redes sociais. As redes
estão aí, ao alcance de todos e devidamente descomplicadas para espalhar coisas
para o bem ou para o mal. Ela, atualmente, dá a medida da inabilidade, da
displicência e do mau-caratismo das pessoas.
Há
um tempo, pela fluidez do signo linguístico utilizado para compor boatos, a
dança da moça levaria um tempo para chegar aos ouvidos de quem quer que seja,
ainda assim, sob a imprecisão da historia repetida e do descrédito, cobria a
aura dos boateiros de plantão contumazes. Hoje, tanto o anonimato criminoso
como a notabilidade trocista possibilitam a materialização visual das produções
da corte de fofoqueiros e, a velocidade com que eles se espalham, acaba
manchando, quase sempre, créditos sociais adquiridos e traindo fatalmente
estágios construídos de convivência.
Distribuir,
por molecagem ou displicência, fotos ou filmagens de pessoas (amigos?) em
despojada naturalidade é o fogo amigo mais cruel que se pode considerar em
nosso tempo. Cruel porque, em verdade, mortifica a vítima, causando-lhe
transtornos sociais irreparáveis. Isso, enquanto as hienas riem e os livres
abutres da miséria alheia se protegem, finoriamente, por trás de suas lentes
assassinas e usurpadoras de reputações.
por Edson de França