terça-feira, 29 de julho de 2014

O banquete dos bichos escrotos




Correi grilos, gafanhotos e baratas. Ratos aguardem na fila; sua vez chegará. Cupins convocados como prato, tipo arroz exótico, no banquete do fim dos tempos. Formigas, amigas içás, tu que já és consumida em lautos acepipes da gente pobre acompanhada de farinha seca, serás iguaria nos salinhas acanhadas da pequena realeza e entrarás pela porta dos salões decadentes quando a fome adentrar nas portas. Moscas, não pensem que escaparão.
É chegada a hora de perder preconceitos, frescurites, nojos. É hora de ampliar o cardápio de iguarias comestíveis. Os insetos são a última fronteira a ser desbravada, e em larguíssima escala, pela população famélica do mundo. São eles, nossos vizinhos, a maior população de seres vivos da terra. Penso, inclusive, que eles é que realmente herdarão a terra. Eles são o sal, mas também o prato principal a ser temperado.
O brasileiro tem um paladar refinado. Por aqui, a não ser quando oriundo mesmo que da classe baixa metida a besta, o indivíduo faz cara da nojo para um apetitoso manjar de vísceras bovinas ou de cérebro de ovinos. A ralé, ao contrário, vai de calango a guaxelo. Isso sem contar os gatos que dão o couro pro tamborim e a carne pro espetinho. Uma performance alimentar digna de chineses.
Esses últimos, por sua vez, dão lição ao mundo ao aproveitar, lautamente, a farta oferta de proteína dos insetos e carne de cachorros. Mas, também, eles tem em mão uma equação difícil de resolver. Muitas bocas para alimentar, pouco espaço de terra para suportar a multiplicação exponencial de vidas. Só poderia sobrar, então, para insetos e cachorros.
Ouvir de alguém certa vez (não lembro se um antropólogo, sociólogo ou historiador) que nosso “refino”, deve-se a fartura de nossa terra e do próprio processo histórico; onde não desponta uma guerra, por exemplo, que nos obrigasse a experimentar a escassez extrema. E a escassez é mãe de todos os desatinos. É onde o homem perde a pose e seu lado selvagem perde a compostura.  Em assim sendo, vamos desfilando nosso preconceito contra comidas exóticas, tipo carne de fuleco ou testículo bovino a milanesa.
Quando a justiça discute a possibilidade de controlar a superpopulação desses simpáticos e marrentos “irmãos” através do sacrifício, nada soa mais natural que a proposta de uma missão sanitária contra a multiplicação dos insetos. E que melhor destinação para esses indesejados tripulantes do árido planeta, senão a alimentar. Uma destinação nobre para uma cruzada terminal. A civilização curte desbravar fronteiras e dá a isso pomposo nome de evolução. Evolução, no controverso entender do homem, é destruir o que está próximo. É chegada a hora então dos bichos escrotos. Vai um prato a base de larva de aedes aegypt?
O homem é lobo quando faminto, ou age lupinamente quando pode tripudiar por puro oportunismo e divertimento. Em busca da sobrevivência ou tão somente para manter-se em pé, ele precisa de energia para gastar em coisas prosaicas. Olhar a vida alheia, falar mal da vizinhança, dar pitacos na vida de quem passa, fornicar feito coelhos, produzir rebentos barrigudinhos para o “mundo” criar, discutir sobre o que não entende, usar ares de sapiência e autoridade, instilar preconceitos e até cuidar de hortas desnecessárias. Ou seja, para gente que sobrevive escrotamente, nada melhor que bichos escrotos no banquete do fim dos tempos.
por Edson de França

segunda-feira, 28 de julho de 2014

AH, MAR!




Amar é mar em seu desleixo.
pedra lisa, seixo.

Amar é mar revolto.
desassossego, porto.

Amar é o mar e seus sismos.
procelas, abismos.

Amar é mar, suas milcores.
Lágrimas, dissabores.


Amar é mar,
temores, risos,
difíceis de conciliar.

Amar é dar-se gratuito.
É permitir-se navegar
por dentro do sem mar.

Cidade parda




Fim de ano.
Nenhum enfeite,
(rasuras no cotidiano impávido)
Só uma leve ânsia, devir.

Finde ano.
Finde-se. Assim,
Nos rascunhos da paisagem, alguns
Saborearão teus hálitos.

Mar de palavras




Protejam-me das palavras duras,
palavras-pedra, palavras-ilha
(recuso-me a ser náufrago).

Leve-me, nau,
Mergulhe-me nas palavras-sal
- mesmo que impenetráveis.

Terei lá, imerso, tempo e tato
Para absorver-lhes a essência
e enegrecer minha língua...

... marejar-me de seus abismos
e voltar, quem sabe, marinheiro audaz,
e emprenhar mais uma prosa.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Leiturinha boa, sô!




          
Meu amigo Marcelo (o Negreiros) me liga empolgando-se. “Negão, tô lendo um livro aqui que é a tua cara!”. Com um misto de luz e som na voz, ele falou do que se tratava o livro e, em meio à empolgação, ia narrando passagens da leitura, fazendo referencias a códigos que são temas comuns de nossas tertúlias etílico-musicais e já sentenciava: “Não consigo desgrudar da leitura, mas assim que terminar te empresto! Tu vai gostar!”.
            Não demorou. Logo o livro estava em minhas mãos. Tratava-se de obra assinada por Marcio Borges e se chama “Os sonhos não envelhecem”. Assim como Marcelo, não demorei a ler o livro. Ou melhor, devorei. Devorei as páginas como uma traça gigante, dessas que não se satisfazem com a reles matéria que enche o bucho, mas com o sentido último contido no emaranhado de signos gráficos. Com o que ativa as tempestades elétricas do cérebro, despertam as sensibilidades vadias e  dão luz à alma. Dessas traças que não comem com a boca, mas com os olhos e a mente. Melhor, usam de alimentos para incendiar essa última. Nem só de pão há de viver o homem.
A partir da leitura, flanei por uma Minas Gerais anos 70, convivi com as ambições e as despretensões de uma geração. Num pit stop remissivo, fortaleci impressões sobre a condição de vida jovem sob um governo de exceção. Bebi da fonte milagrosa da produção cultural da época. Vivi, em espírito, como toda boa leitura pode proporcionar, num instante, flashs positivos, reminiscências, referências de pessoas, lugares. Enfim, tomei lições generosas e como os “sonhos” são construídos, ou melhor, de que matéria eles são feitos.
            Os sonhos como sempre pensei não surgem magicamente como os milagres bíblicos. Eles emanam do cotidiano. É difícil falar de pessoas como especiais, mas utilizamos essa categoria genérica para falar de pessoas que, pegando o Trem azul onde nos sentíamos sós, passam a contribuir com nossa trajetória pessoal, profissional, afetiva e amena. Essa é uma das lições do livro. Essa é a magia por trás de uma seara - nem grupo, nem movimento - chamada Clube da Esquina.
            Para ser didático posso dizer que o Clube da Esquina é um parto mineiro com ares transnacionais, intergalácticos (caso nossas consciências puderem aí chegar ou fazer as pontes). Um grupo de pessoas “especiais”, talentosas e determinadas a construir mineiramente um artesanato músico-literário único e marcar, do seu jeitinho, (desculpem-me o chavão) a “evolução da musica popular brasileira”.
            Ouvir Clube da Esquina, por si só, é voltar às particularidades de um Brasil atávico que se entranha nas montanhas de Minas. Conhecer histórias sobre a convivência, as pedras, os caminhos, as estradas, as ruas, a luz, o mapa das estrelas e a planta do pé que faz história, às vezes chamuscado de lama, às vezes embranquecidas de pó. Ler “Os sonhos... é decifrar, nos fragmentos memorialísticos de Marcio Borges, a trajetória de “moços” – que também se chamavam estrada, viagem de ventania” – e de homens – que também se chamavam “sonhos”.
            O livro, na própria definição do autor, tem como elemento central a figura de Milton Nascimento, o Bituca. Com mérito. Milton e o principal expoente do Clube. Mas o livro traz mais. Traz o amalgama que constrói os grandes momentos. Traz o suor que marca as trajetórias, que desce pelo rosto e respinga na roupa dando-lhe um colorido outro. Traz a constituição dos sonhos, a manufatura do cotidiano. Traz, enfim, a celebração permanente (nem sempre linha reta, escorreita, de navegabilidade garantida) da vida que se faz entre encontros, desencontros e, por vezes, de paradas no meio do nada esperando uma carona para a próxima estação.    

por Edson de França

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Té mais, João!




João Ubaldo se foi e eu não consegui superar o mar de páginas de sua obra “Viva o povo brasileiro”. Varias vezes comecei, garanto que com a voracidade dos marujos destemidos, só que, páginas depois, quedei-me a beira d’agua como um reles grauçá que namora as ondas. Já que se trata de um mar, acho que minha nau vasqueira não estava pronta para tal percurso. Li crônicas, li Sargento Getulio, li e reli o Sorriso do lagarto, vi até a série de Tv, mas a massuda obra continua lá, na prateleira, iconicamente a propor-se como desafio. Penso, às vezes, que ela, em sua mudez, até usa de uma fina ironia para comigo.
Gostava do João Ubaldo. Gostava da figura do João. Uma imagem criada a partir das inúmeras entrevistas concedidas por ele a que tive acesso para ler ou assistir. Gostava da baianidade do João. Curtia o pensamento dele, a forma de enxergar esse micro mundo chamado Brasil. Gostava do humor, da mordacidade, da lucidez do João. Dos escritores contemporâneos, acho que me afinava com o João em muitos aspectos. Penso que dentre os componentes da Academia Brasileira de Letras, é ele quem pode melhor ser considerado escritor com E maiúsculo.
A obra do João Ubaldo Ribeiro, com todas as letras, não é exatamente uma obra fácil. Digerível. Antes é uma obra volumosa (falo de quantidade de páginas mesmo), reflexiva e instigante. Obra para quem gosta de ler. Uma senhora obra e não um arremedo de palavras. Uma obra abrasileirada, abaianada, ilhoa, com uma boa dose da embriaguez cotidiana. Dali emerge um país e seu processo civilizatório contraditório. Cheio de nove horas. Um país de contrastes, contratempos, festividades apolíneas e mesquinharias amiúde.
O João era um pensador das coisas do Brasil. Não escondia seu pensamento sobre nossas virtudes e tibiezas, nosso eterno dilema entre o esplendor das realizações grandiosas do espírito e do engenho humano e as baixezas entranhadas na nossa psique tão incongruente. Ironia e contexto social, dizem os críticos profissionais, banham a obra de João Ubaldo em todos os quadrantes. Uma obra de velas abertas. Um pano finamente costurado pelas linhas do humor. Ou como define o também acadêmico Antonio Olinto, em artigo para a Biblioteca Folha, em 1999, “Em tudo insere João Ubaldo a visão do humorista, que vê o que não aparece,identifica a nudez das gentes, entende os pensamentos ocultos”.
Nas palavras de Olinto, João escrevia “na cadência de um rio que avança ou do vento nas folhas”. Palavras e sons. Enredo social. Canção alegórica para um país criado e recriado. Carnavalização. João inventou um país. Um país que vive nas suas palavras imorredouras e que se (des)estrutura nas ruas, vielas, becos apertados, estradas enlameadas, maresias e caiçaras. Mas que, também, se cristaliza na cara do povo, das gentes, em nós com nossas grandezas e desvios comportamentais, nosso jeito ímpar de andar, seguir o cordão da dança e arrastar os chinelos.
por Edson França