quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Game over


“Essa e a forma do mundo ***** dizer à sociedade que não aceita falhas”! Caso lhe fosse apresentada essa afirmação, que palavra o distinto senhor que me lê escolheria para completá-la? Provavelmente você optaria por uma palavra nobre como mundo corporativo, empresarial, jurídico, policialesco ou coisa que o valha. Pois saiba, ó desavisado leitor, que tão compacta e objetiva declaração foi dada por um molecote de 16 anos, preso após assassinar um viciado de 18, a mando do tráfico de drogas em virtude deste ter os denunciado. A morte foi documentada em vídeo e o assassino, ante os holofotes da mídia nacional, cunhou essa indelével frase de efeito.
Não deixei de me assustar com o que os amados colegas da imprensa chamam de “frieza” do infante assassino. Por outro lado, admirei a retórica e não deixei de fazer uma comparação direta com o perfil linguístico dos homens do mundo corporativo. Lembrei-me de Roberto Justus, seu dedo em riste e seu bordão “está demitido”. Também não deixei de lembrar os xistosos Cabos Tenórios de antigamente e sua ordem incisiva: “Teje Preso!”.
As cenas do filme, onde o assassino fala em “missão” e ri da traíragem e da inabilidade da vítima em adequar-se às leis do mundo cão sugerem exercício consciente, de poder. Poder construído, poder “conquistado” graças à capacidade de se adaptar aos ditames arbitrários do crime, através de uma escala própria de valores que dão suporte à ascensão. O domínio das técnicas e do discurso que, teoricamente, dão legitimidade ao ato. Que me perdoem a comparação chula, mas penso ser esta a lógica da competitividade (in)sana do mundo contemporâneo.
O mundo é dos fortes, dos hábeis, dos infalíveis. Aprendemos isso na escola normal e na escola da vida. O currículo dos vencedores é todo ele pontuado de estrelas que aquilatam os feitos heroicos. São como as marcas no cabo da arma dos pistoleiros. Como a capacidade de impor-se, deus sabe por quais mecanismos, e avaliar a conduta de outro e dar-lhe o bilhete azul. Sem pena. Nesse mundo não cabe a complacência e a piedade. Não há lugar para o perdão ou a eventualidade da segunda chance.
O dedo que aponta e põe fim aos ciclos é similar a metranca que determina o fim de vidas. São game overs de carreiras, perspectivas e, modernamente, de vidas. Estamos todos no mesmo processo de avaliações ligeiras e execuções sumárias. Lamentos, tentativas de diálogo, explicações, argumentações de nada valem. Valem a eficiência, a obediência cega a regras e regulamentos, a produtividade máxima e desumanização crescente atrelada a tudo isso. O mundo não permite falhas... à crédito de evolução. Qual? (por Edson de França)     
edsondefranca@yahoo.com.br

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Monumentos, estátuas e vandalismo


Dias atrás, alguns órgãos de imprensa paraibana, denunciaram a ação de pichadores no chamado centro histórico da capital. Praticamente todas as unidades imobiliárias da localidade mostravam tatuagens – ou deveríamos dizer cicatrizes – feitas a desajeitados jatos de tinta spray. Nada mais, pareciam sugerir os colegas repórteres, que a expressão bárbara de alguns membros de uma geração cujo sentimento e respeito pela história não se instalaram nas veias.
Infelizmente, situações desse tipo não são exclusividade cruel de centros como a nossa velha Filipéia das Neves. Ao contrário, se multiplica país a fora. É epidêmica. Não creio que exista sitio histórico imaculado em qualquer praça ou logradouro dessa república. Não pouparam nem a estátua do singelo poeta Drummond, no posto 06 de Copacabana.
Há, na verdade, uma sanha destrutiva – um tsunami de descaracterização - de monumentos grassando país a fora. Se um cidadão qualquer quiser protestar ou arrefecer frustrações, que se cuidem os monumentos.
Há tempos, roubaram a mala do poeta Caixa D’agua. Até hoje a Prefeitura não repôs e o poeta está lá; caminhando pra lugar nenhum com uma mão, a da mala, vazia e a outra estendida a espera de um bêbado que a aperte.  Vez por outra, alguém se morcega nas costas de Jackson do Pandeiro ou de Livardo Alves, localizadas na Praça Rio Branco e Ponto de Cem Réis, respectivamente. Muito mais na intenção de “machucar” o cobre que simplesmente posar para estilosos selfies.
Pergunto-me muitas vezes para que serviria a pasta de Caixa D’agua ou o pandeiro de Jackson, em metal, para uma pessoa comum. A ausência deles daria, sim, um belo mote para os cronistas, algo do tipo “separação traumática dos bardos de seus instrumentos de encanto”. Para os depredadores, no máximo, um souvenir dispensável que, tão logo roubado, seria esquecido num canto qualquer. Ou, na melhor das hipóteses, teria a destinação degradante de ser vendida no ferro velho para permitir ao gatuno a oportunidade de comprar uma lata de sardinha e um pão dormido.
 O ato de tocar ou macular um monumento público tem algo a ver com desafio. Parece ser coisas da adolescência, da fase complicada de insatisfações contra as instituições limitantes, tipo sociedade e instituições como família e, sobretudo, governos. Um misto de insatisfação e rebeldia. É como denunciar a passividade da sociedade comportada e retrógrada e a insuficiência de governos e seus agentes. O cancro, porem, reside no fato de que essa inconsequência tatibitate se espalha idades à dentro.
Pichar ou arrancar partes de um monumento é um ato psicologicamente explicável pelo desejo de dessacralizar. Retirar a “aura”, parodiando Walter Benjamim, no sentido material, acachapante, destrutivo. Não é retirar a aura pela reprodução como dizia o pensador, mas roubar-lhes partes, macular a estética com intervenções violentas.
Parece ser difícil para alguns conter-se diante da exposição a céu aberto, sem proteção, de uma obra alusiva a memória coletiva. É muito mais, no entanto, um atestado de nossa infantilidade civilizatória, de nossa incapacidade de, articuladamente, investirmos em educação como principio e forma de atuação social longe dos apelos do vandalismo vazio e assim, friamente, sem causa.

por Edson de França


quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Sobre a poluição humana

Sou de um tempo onde, dentre as recomendações aos passageiros de coletivos urbanos, destacavam-se duas. “Fale com o motorista somente o indispensável” e “Proibida a utilização de aparelhos sonoros no interior deste veículo”. Afora as informações gerais sobre limites de lotação, passageiros em pé e sentados, preço da passagem, dedetização do veículo nada mais era necessário. A viagem seguia em paz. Se bem que, vez por outra, um operador do sistema ou uma paquera entrava pela porta da frente e ocupava os degraus da porta em alguma conversa atravessada com o condutor... Não se ouviam aparelhos sonoros, não sei se pela falta deles ou pela força de lei da recomendação escrita.
Eram outros os tempos. Penso que as cidades não agonizavam com o inchaço populacional, tinha-se poucos automóveis circulando pelas vias, não haviam, enfim, o ruge-ruge a  correria em busca do vil metal dos dias que correm. Bem diferente dos tempos de agora, onde o nome coletivo cai apropriadamente nos limites da nossa conturbada convivência. Coletivo é sinônimo de viver junto e, por extensão, é significado de balburdia, desrespeito, insanidade, violência, competitividade, incivilidade. Por hoje, basta de sinônimos. O que nos cabe convir é que proximidade de indivíduos gera confusão e gravíssimas diferenças de pontos de vista.
Com muitas idas e vindas comecei a me incomodar com o cigarrinho que alguns insistiam em tragar, numa época em que o fumo era um dos “esportes” preferidos dos brasileiros. À época, era um hábito ainda tolerável. Não sei se pelo incômodo coletivo ou pela descoberta e consciência da melevolidade do cigarro para os passivos inalantes e para os pacholas fumantes, surgiu uma nova placa nos coletivos: a ilustração de um cigarro com um X informava policialmente “proibido fumar no interior deste veículo”(Lei nº 110 de 25/06/93). A lei era informada e o cigarrinho foi, aos poucos, sendo banido do interior dos veículos. 
Novos ajustes vieram em seguida com novos reclames, postos ali por força de leis ou de novos ataques a convivência andante dos busões. “Lei do troco” e “Estudante apresente a sua carteira de estudante quando solicitado” para evitar as inevitáveis confusões entre cobradores e passageiros. “Sorria você esta sendo filmando” para garantir a segurança dos passageiros na era dos assaltos a coletivos. O ônibus urbano passou com o tempo, também, a ser considerado veículo de propaganda in-door e out-door. Eventos religiosos, produtos variados e até projetos poéticos encontraram ali seu nicho publicitário.
O ônibus está para lá de integrado na paisagem urbana. São eles o espaço da convivência mutante em tempos de urgente e indispensável mobilidade. Convivência mutante e passageira que, a cada giro das catracas do tempo, tem que ser revisitada para introdução de novas normas. Novos dias, novos panoramas humanos, novas urbanidades e até as novas tecnologidades introduzem novíssimos hábitos. A ciência da civilidade, por esse prisma, é algo também em movimento sob ameaças naturais de evolução e retrocessos.     
Tornaram-se irritantemente comuns em nossos dias o uso indiscriminado de tecnologias de reprodução de som. Pra todo canto que você se desloque, dentro do ambiente urbano, intermunicipal ou interestadual, é sempre possível ter-se a paciência ultrajada pela ação de dijeis amadores munidos de celulares e limitados princípios de civilidade, bom senso e respeito ao sossego alheio.  
De volta à prancheta das regras de convivência. Outros caminhos têm que ser traçados, ou melhor, repisados. Caímos mais uma vez na velha questão da educação para a cidadania e a civilidade, nossa eterna litania dramática. Outra vez parece ser necessário investir na reeducação de usuários e esse é um processo desgastante. Outra vez, é preciso de leis. E elas existem. Lei estadual (Lei Estadual número 9.977, de 2013, da Assembléia Legislativa da Paraíba) e leis municipais. Basta a fiscalização e a coibição.
O que não se esperava jamais é ter que, outra vez, reativar o velho reclame de proibição de aparelhos sonoros nos coletivos para coibir os excessos sonoros das espaçosas hienas urbanas que, ao expor ao mundo seus indigestos gostos musicais, trazem embutidos boas doses de afronta e barbarismo.

por Edson de França


segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O seletivo paternalismo estatal



Dia desses escrevi texto sobre a contribuição do Estado para a consolidação do “mito do intrépido capitalista inovador” (ver: http://patosonline.com/post.php?codigo=42377). É que na sociedade em que vivemos os laços entre a iniciativa privada e o Estado nem sempre estão claramente expostos e dificilmente ganham explicações plausíveis. São enlaces circunstanciais ocultos, que se manifestam numa esfera de poder e interinfluência a que pouquíssimos tem acesso e a grande maioria das pessoas nem conseguiriam entender. Sobrando aos circunstantes a impressão ilusória de que os grandes feitos da tecnologia e da ciência passam pela iniciativa heróica e altamente independente de visionários.
A relação entre a iniciativa privada e o Estado no campo do financiamento revela a “ajudinha” não revelada, leia-se dinheiro público, para empreendimentos particulares que nunca terão de todo a contrapartida necessária. Talvez (e só talvez) a contrapartida se dê numa porcentagem ínfima, e que nós não sabemos precisar, em termos de impostos ou sob as manobras marketeiras da “responsabilidade social” de empresa.
No caso do texto anterior, a narrativa se prendia a questão do fomento do Estado, seja inicialmente seja durante a escalada de ascensão, aos “inovadores” da C&T. Mas nossa ingenuidade corrompida não nos permite que achemos que esses liames se resumam a essa esfera. Se o poderoso Estado cede sua parcela de força para os “intrépidos inovadores”, por que não daria uma “forcinha” para outros ramos empresariais. Sobre esse ponto algumas perguntas e especulações marotinhas não fazem mal ao livre pensar. Ao contrário, são salutares e muito bem vindas.
A fisiologia da sociedade em que vivemos é complexa demais para se revelar em impressões apressadas. Nosso aparato intelectual, como analistas amadores, não dá margens para que possamos amealhar fatos, unir dados, ruminá-los e tirar conclusões próximas da realidade. Somos apressadinhos em nosso inconsistente poder analítico. É-nos mais confortável apoderarmos da crença na projeção exterior dos fenômenos.
Em um estado como o nosso, por exemplo, em que a dependência da sociedade em relação ao Estado é enorme, creio que as relações entre poder público e privado, se não escandalosas são no mínimo imorais. Desconfio de nosso capitalismo tabajara como desconfio da existência material dos anjos. Quando o financiamento não é direto, ele passa por expedientes sutis como a manutenção de empregos ou cargos próximos da vitaliciedade na máquina pública ou ainda, nesse caso muito mais sutil, que é nas manobras junto aos poderes nas esferas administrativas, judiciárias e executivas.  
    Sabemos que empreender é algo que demanda doses equilibradas de ousadia e coragem, a tal ponto que poucos têm essa característica nata em seu portfólio de vivências. Não existe espaço, porem, para covardia, arrogância ou preguiça. O empreendedor trabalha com uma margem de sustentabilidade cambiante. O empreendedor puro, caso exista, seria uma entidade próxima da natureza autóctone, independente, intrépida, capaz de montar seu próprio meio de sustentação e, dolorosamente, saber que toda e qualquer armação que faça sempre correrá riscos de ruir.
Convenhamos que grande maioria dos empreendimentos que proliferam em nosso meio não tem tais características como base. Estou sempre aberto a contestações, mas não arredo o pé. O dinheiro público alimentou, de forma direta ou indireta, alguns ramos da nossa economia. Não me perguntem com que moedas são construídas as grandes mecas comerciais, desde suas pedras fundamentais. Não me perguntem qual o moto propulsor das iniciativas na área médica, de saúde ou educacional por essas bandas. Não, não especulem o capital inicial de um monte de empreendimentos mirins que se espalham em sua volta, cujos chefes entram para o imaginário popular como insignes empreendedores.
O Estado é uma espécie de mecenas pouco dimensionado e compreendido. É mais fácil falar de sua inoperância e tomar isso como axioma, que compreender a penetração cuidadosa, cirúrgica e secreta que ele tem na vida “empresarial”. O estado não só arbitra, fiscaliza, cobra, maltrata com a cobrança excessiva de impostos. Ele exerce o seu papel de paizão por trás de filigranas burocráticas. Pelo menos para alguns, quem sabe intrépidos exploradores dos cofres públicos em prol de suas causas tão particulares e personalistas.

por Edson de França

Terrinha de cemitério



Apenas uma foto amarelecida enfeitava a lápide.
Era um desses túmulos grandiosos, espécie de mansarda tétrica, plantada entre construções de porte similar. Alameda de jambeiros, frondosos como a gozar da fertilidade daquele solo. Piso de paralelepípedos irregulares, chão coalhado de frutos; alguns estourados ou graciosamente corroídos como se tivessem levado apetitosas mordidas. A tal paz dos cemitérios estava ali. Era aquilo. Paz em meio à ambientação lúgubre que serve de cenário pras coisas mórbidas. Lodo. Colunas de hera. Plantações rasteiras. Flores e restos mortais de coroas funerárias. Tocos de vela na base dos túmulos, uma ou outra acesa. Crucifixos por toda parte. Palavras escritas em placas que não parávamos para ler; sabíamos da redundância comum dos escritos.  
Era uma tarde de nada a fazer. Andávamos apenas.
Até os raios de sol se escondiam timidos por trás da ramagem densa do arvoredo.
Andávamos pela parte do campo santo onde os túmulos mostravam certa suntuosidade. Se cemitérios fossem locais de visitação turística esses seriam os atrativos; cova rasa não tem charme algum. Construções em mármore, granito, puxadores de metal amarelado ou em bronze, imagens de nosso senhor crucificado também em metal amarelado, anjinhos, vasos para flores, castiçais para velas no dia dos finados, cruzes, cruzes, cruzes. 
Olhávamos as fotos dos desencarnados pra passar o tempo da tarde modorrenta.
A imagem da foto que agora olhávamos e esplendor do túmulo eram monumentos à suntuosidade da senhora morte em alguns casos. 
Sabíamos da geografia do cemitério. Do apartheid social e econômico que separa os homens até na hora da morte. Do lado periférico, sabíamos das covas rasas, dos tumulozinhos baixos de cimento cru e cruzinhas de madeira, do tempo de permanência de cada corpo na fria morada, dos deslocamentos da cova para os ossários verticais, do sebo das velas que se acumulava formando pequenas montanhas enegrecidas, das margaridas murchando...    
Os túmulos em geral se parecem como extensões indesejadas das casas habitadas em vida pelos finados. Extensão de barraco da ralé é cova rasa. Prolongamento físico de mansarda é mausoléu, esnobes até no vocábulo. Ademais, efeito visual e simbólico do poderio exercido pelo clã a que os idos pertenceram quando andantes.
Paramos em frente aquele portal, território dos limites simbólicos entre as duas faces da existência. Não haviam escritas palavras sobre o figura da foto. Nada. Nenhuma frase inspirada que lhe recomendasse a alma. Havia um nome, claro. E um sobrenome nobre creditado aquele senhor na foto oval rococó. Túmulo de família, sinal exterior de nobreza. Havia um banquinho. Sentamos ali como fazem vagabundos e parasitas em seu ócio permanente, enquanto esperam e dialogam com o vácuo que se forma em torno de suas existências.
            O senhor da foto, um desses amulatados que passa por caucasiano, apresentava-se bem vestido. Um rosto de traços fortes, a boca escondida por um respeitável bigode (desses que ninguém mais ousa usar), símbolo de masculinidade e poder patriarcal. Sabíamos do nome nobre, pois ele se perpetua por aí em postos da burocracia palaciana, mas não conhecíamos a figura. Arquitetamos para ele, então, uma fantasia biográfica, baseados malandramente em nossos pré-conceitos e na projeção miasmática que o ambiente sugeria.
- Que figura, hein! O que deve ter feito da vida?
- Sei lá! Usineiro, fazendeiro, empresário...
- É, deve ser por aí. Político, talvez...
- Quem sabe, com essa cara de rufião de cabaré rsrsrsrs!
- Talvez tudo ao mesmo tempo. Talvez até simplesmente um playboy, viveu e morreu nababescamente, jamais deu um prego numa barra de sabão, talvez tenha conhecido a Europa, um bon vivant, enfim!        
- É... deve ter desencaminhado, a força, um monte de raparigas.
- Tem cara também de quem se envolveu com as letras.
- Provavelmente registrou memórias comezinhas em livro bancado pelo dinheiro público. Historiador de província provavelmente. Deve ter algum título esquecido com sua assinatura. Devia tirar onda de estudioso e amante das artes. Deve ser eternizado por aí em alguma Academia.
- Sei lá. Patrono de uma porra qualquer aí.
- O povo dessa época é chegado a um soneto, um verso romantóide ou parnasiano. Arrotam erudição enciclopédica e produzem memórias para manter a lenda familiar. Infelizmente a lenda não é lenda. São factóides, isso sim. Capitalizados e reproduzidos.
            A tarde correu. Não se demorou com as nossas viagens especulativas. Guarda Belo passa e avisa que o horário de visita acabou.
De saída, quando o fitamos mais uma vez, o fantasma do retrato parecia rir por trás da bigodeira. Ria de nós. Um riso de faceirice e escárnio pelo nosso vão exercício de dissecação de caráter e ironias do frágil elemento vida. Saímos pela alameda rumo à saída pensando no poder igualitário que, aos fins, tem a terrinha de cemitério onde ninguém pode criar latifúndios.

por Edson de França

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Sketch político



Subirauá. 14:47. Sabor de tarde morna. Eu e Lorota Jock, velho amigo industrial falido e político sem mandato, derrubávamos umas loiras geladas no mais singelo exercício cidadão de nada fazer, também conhecido como ócio improdutivo. Desfrutávamos do parasitismo são, queimando nossas ultimas finanças, quando vimos adentrar ao recinto uma solene figura. Um histrião, um tanto quanto espalhafatoso, uma tanto quanto impressionante. Jock o reconheceu:
_ Olha lá, olha lá... Dr. Marmelo Siqueira! Há quanto tempo não via essa autarquia...
            Indiferente pra mim.
_ De quem se trata? – indaguei.
_ Tu não conhece? Já vi que tu não sabe nada da história da tua cidade. Do povo importante da tua cidade, da elite.
Dei de ombros.
- Dr. Marmelo, na realidade Ibsen Marmelo Siqueira Milk, com todas as letras. Descendência inglesa, meu velho. Uma das famílias mais importantes dessa cidade, figurinha carimbada nas colunas sociais. Tem até parentesco com os fundadores... com os fundadores, meu filho, sabe o que é isso? O pai foi fazendeiro; ele herdou as propriedades, investiu em outros ramos de negócio, é advogado e conselheiro do Clube Social de Subirauá. Sinceramente, meu velho, tô com vergonha de tu não conhecer, vergonha por tu, otário. Só num sei, “mermo”, o que ele ta fazendo aqui...
Do relato empolado de Jock nada guardei, não faziam parte do meu raso memorial de lembranças públicas. Decidi ali na hora que não gostaria da proximidade do figurão. Mas recessivo como estava na mesa, assisti impávido o empolgado amigo invocar a criatura:
_ Dr. Siqueira, meu amigo, figura impoluta, chegue aqui próximo do amigo, chegue, dê-me cá um abraço. O que faz nessa espelunca, visitando os remediados, arrebanhando serviçais? Pois está claro pelo porte do amigo, que essa pocilga não está à altura de sua persona...
O figuraça se apossou da nossa paz vespertina. Graças aos deuses, me olhou com um ar de superioridade e desprezo. Sinceramente agradeci pela pouca importância, rezei intimamente a oração da invisibilidade, meu amigo antídoto para figuras de sociabilidade dúbia. Fiquei ali, quieto, assuntando feito um vira-lata desconfiando.

_ Diga lá, doutor, o que manda?
            Meu amigo parece ter esquecido de mim com a chegada da ilustre personalidade. Agradeci duplamente. Pela indiferença e o preconceito explicito do figura e pela desimportancia do amigo para comigo.
_ Tô em campanha! – sentenciou o homem já tirando um maço de santinhos do bolso do paletó. Sinto-me obrigado em nome da baderna que se instala em nosso meio. Para mim hoje é essa uma cruzada em nome das pessoas de bem desta terra. To candidato em nome do resgate da dignidade das classes gestoras, empreendedoras, históricas dessa cidade, das pessoas de sangue, de descendência nobre, dos conquistadores. Veja só, permitiu-se a ascensão de gentinha, meu amigo. Gentinha, meu amigo!
Afundei-me ainda mais no meu mutismo. Mente viajando pras fronteiras do insondável.
_ Imagine só, meu amigo... meu amigo, como é teu nome mesmo? Já não se pode mais andar de avião, por exemplo. É gente paupérrima, mau educada, sem finesse, pingentes de pau de arara rá, rá, rá... enchendo o aeroporto com suas vergonhas. Não, meu amigo, é preciso subvencionar as elites para que voltemos a respirar em paz...
Calcei minha rota sandália havaiana. Levantei-me. Ninguém nem deu fé. Saí de fininho, levei minhas “oiça” pra longe do discurso do representante da realeza inglesa. Minha mente estava sintonizada em outra estação, distante, mais humana, mais pé no chão, mas sem brasões ou títulos de nobreza e sem nenhuma intenção de aterrissar.

por Edson França