O melhor
momento do dia é quando as línguas descansam. Ensimesmados, conseguimos
rememorar pequenos flashes (a maioria insignificantes) da novela que se passou
em 8, 10 horas de vida ativa. Conseguimos, enfim, ruminá-los...
É que andamos
exasperados, perambulamos, muitas vezes a esmo, falamos (muitos de nós, por
obrigação do ofício, é bom que se diga), comemos a comida suspeita da rua, cruzamos
praças, avenidas, ruelas, becos e (des) respeitamos sinais... observamos as paisagens
e os passantes, vamos ao banheiro alguma vezes atender solicitações naturais e
inadiáveis. Estivemos, durante uma jornada, de frente e de banda pra pessoas, pensamos,
formulamos lógicas, nos exprimimos, fomos bem ou mal entendidos, nos
exasperamos por coisa pouca, paramos, tomamos o Prozac amigo, atenuante como os
colegas da rua. A pressão sobe, desce, oscila, trepida, lembrando um velho
elevador que range e ameaça a tudo exterminar com um baque pras profundezas do
poço. A fronte arde em fogo diante do sol. Fomos consumidos, consumimos.
Consumimos-nos, lobos de nós.
Volta para
casa (diria bar, se todos nós fossemos da confraria da cerveja). Lugar que nos
cabe sem reserva. Lá, encasulados, bem dentro de nós (como o eu caçador
de mim da música do Milton) buscamos, ou perdemos tempo tentando,
encontrar o eu maior e melhor que aquele que projetamos. Fingimos acreditar que
ele existe e pode, a qualquer hora mostrar sua face surpreendente.
Recolhemos
céleres, as ferramentas dos deveres sociais que nos prendem ao cotidiano.
Baixamos o pano do circo. Limpamos a cara.
Ensaiamos outros enleios. Voltamos, enfim, ao barco que nos conhece como
capitão. Verificamos as amarras, largamos o leme. Brincamos de atirar e puxar a
âncora no mar de dentro. Pensamos. Viajamos por azuis, imensidões. Horizontes
tão conhecidos, tão próximos, distantes...
O desafio é
esquecer o dia. Ou algumas partes dele. Talvez as mais desgastantes. Deve-se
guardar dele o delírio significativo para reutilizá-lo num passo errante dos
próximos capítulos. Se houver, é bom que se diga!
Quando enfim
chegar o novo dia (por uma pratica reincidente) nos sentiremos como um outro
ente. Do batéu que plana sereno, das ondas alisadas, das nuvens espalhadas para
despontar um sol brilhante e amigo da pele, do céu azul que artisticamente
pintamos, dos ventos que acalmamos e dos peixes que domamos pra puxar a caravela,
pouco ou nada teremos. Viraremos, outra vez, submarinos forçados a submergir no
mar de fora. Da pressão até suportável, da brisa amena que nos acolheu,
desceremos ao cenário belo e insalubre do cotidiano. Voltaremos a compor capítulos
da lenda tornada visível, palpável e, sobretudo, criticada, degradável.
Convenceram-nos
que desse embate diário dependeremos sempre para garantir sobrevivência. A fotografia
¾ envelhecida no belo quadro social. O trabalho, as horas, os compromissos, as discussões,
os malentendidos, a guerra de egos, os interesses legítimos versus os interesses
escusos, as indiferenças, essa hipocrisia. Até onde aguentará nossa carcaça?
Chamo aos
Homens de submarinos por entendê-los “artificialmente” construídos para as pressões
do mar de lá fora. Onde tem-se que ser lobos quando bobos, irônicos quando
lesos, hipócritas onde a hipocrisia é moeda corrente. Palavras secas (ou
ressecadas numa goela rouca), medos insanos, sentimentos dúbios, tics
pra lá de nervosos, tibiezas enraizadas, recalques, autoritarismos recorrentes,
“simpatias de giz” para ocasiões gélidas, aceitação resignada e crente nas
regras do jogo. Alternamos humores, modulamos a voz para engolirmos e cuspirmos
cururus, apressamos os passos, desconfiamos da destreza do chofer, aguardamos o
passo em falso do passante ao lado, rimos nervosos, damos esmolas como piedosos
cristãos. Assistimos de dentro da cena o rondó desse tempo de desperdício de
talentos e vontades.
Em momentos do
dia, porém, nos miramos telegráficos, monossilábicos, mesmo quando a crônica
nos invade e pede para se esparramar numa folha em branco.
- Hulk!... gelada,
por... favor!
Simplificando.
Bastaria uma palma fechada e um indicador apontado para o alto, para o
entendimento e o silêncio de oratório que o fim de um dia nos cobra.
por Edson de França