12h35min de um dia comum. D. Iva, do alto dos seus quase 80 anos, se posta à entrada do Bl.01 do condomínio residencial. Vai “olhar o mundo”, como diz a quem passa. Para quem pára por alguns segundos para ouví-la, reclama da vida que leva e fala do seu desejo de rasgar mundo, viajar, rever terras por onde passou, onde viveu a feliz juventude, desbravar lugares novos, ver e rever gentes. A fiel obrigação de D. Iva a condiciona a uma rotina de pouquíssimos e limitados passos. Presa às mecanicidades da vida domestica e às plugagens extasiantes ao mundo colorido da Tv a cabo.
Vez por outra, a velha senhora experimenta estágios de depressão. Nota-se pelo seu desinteresse repentino pela vida e seus hobbys mais ternos. O jardim por ela cuidado é quem clama aos quatro ventos o estado letárgico da amiga. Que as rosas não falam, até concordamos com o velho poeta; mas tanto elas como a natureza em geral são expressivas por demais em seu mutismo. Assim é o jardim da velha senhora. Nele, a sintonia da flora com a fauna humana materializa-se em sinais. A felicidade do viço, a flor que se abre para saudar as manhãs, o verde que parece agredir pelo frescor, a felicidade das chuvas de mangueira. A fragilidade, a decrepitude do verde, a ausência do frescor, a cor em chumbo motivada pelo abandono, sinais do desânimo provocado pela reiteração dos dias, irritantemente iguais. Estados que sinalizam as contradições e antagonismos da vida, de toda ela.
D. Iva me serve de mote. Roubei dela o instante e a lição. Precisamos como elementos contraditórios da matéria vida de plugagens. Mantermos saudáveis plugues com pessoas, elementos da natureza, estados de espírito, paisagens diversas, fatos da vida mundana, palavras que sugiram horizontes a alcançar. Por outro lado, lançamos mão das indefectíveis âncoras como élan de estabilidade e segurança. Assim são o jardim e os desejos aventurescos de D.Iva. É com ela que aprendo, dia a dia, poeticamente (quiçá, filosoficamente) a alternância de estados vitais no decorrer da existência.
Utilizo muitas vezes o termo ancoragem. Sou meio fã da poeticidade que a palavra emana, mas tenho cá meus senões com o que ela sugere. A âncora, mãe significante da palavra, por sua função, sugere certo pouso estático. Correntes e grilhões amarrados a um objeto cujo objetivo é limitar movimentos; segurar outro objeto contra os convites sedutores do mar imenso.
A plugagem, por sua vez, sugere abertura de portais. Um prosaico objeto que ancorado em um receptáculo acende luzes, abre telas, propõe intercâmbios simbólicos, dá sentido a materialidades e imaterialidades sugestivas. O plugue pressupõe correntes múltiplas, ondas inimagináveis, previsibilidades mínimas, descontinuidades.
Somos, independente da idade em que estejamos, como D. Iva sentada a porta do seu apartamento térreo. Estabelecemos com o mundo relações de plugagens e ancoragens. Fomos moldados gradativamente a buscarmos pouso, âncoras, que nos permitam estar em situação de espreita, repouso, relativa paz com objetos, pessoas, coisas ao nosso redor, mesmo que isso se revista de uma incômoda rotina. De outra mão, é-nos imprescindível ampliarmos as plugagens, lançarmos mãos dos tais plugues, para que a mente, mesmo enfronhada, desafie o rotineiro. Que vá livre buscar o passado, que dê cores psicodélicas ao presente, que visualize futuros. A ancoragem, de fato, é um estado passageiro, afinal o mar sempre será o convite aberto da partida. O plugue é o mar, real ou virtual, que propõe turbilhões de aventuras, sejam tíbias ou inquietantes, e visualizações marotas e lúdicas sobre o mar da vida, suas tessituras e profundezas.
por Edson de França