sábado, 26 de novembro de 2011

O charme suicida do anti-convencionalismo


É preciso ter “doidões” passeando pelo cosmo, errantes como cometas. Só eles reúnem condições de dar assombros éticos, estéticos e comportamentais na vidinha limitada dos humanos comuns. Não se pode precisar suas trajetórias e humores. Apenas, cumprindo deus sabe lá que estigmas, emprestam de bom grado certa instabilidade moral para o mundo. Mesmo que momentânea e, para o bem dos puritanos, não influenciadora de massas. Graciosa e acidamente, provocam rompantes de loucos suicidas, socialmente falando, somente.

Normalmente, o mortal que se preza, por pura consciência, até mesmo por ser ridiculamente mortal, é contido. De forma alguma se permite exageros. É erroneamente racional. Vai à Igreja, religiosa e profanamente, ou simplesmente agarra-se a uma Holy Bible. Que esta seja nova ou rota não importa, uma vez que, pouquíssimas vezes, foi lida de forma autônoma, isenta e natural como só os loucos são capazes de lê-la. Toda leitura sagrada foi ditada por um mentor de intenções duvidosas para uma mente distorcida e atolada até os bagos no convencionalismo.

O mortal que se preza freqüenta o bar e toma todas, dá um “tapa” nunzinho de vez em quando só pra distrair, faz amores ilegítimos para puro deleite egoísta da carne, da “machice” ou da feminilidade liberada e “socialmente” condenada. Faz parte da ritualidade social. Depois se resigna, reza, implora, se martiriza e, de volta a rotina e à paz do lar, agarra um deus desocupado e faz cultos à plena realização terrena. Claro, sempre de olho naquele terreninho celeste pago com debulhares intensos do terço.

Penso, por outro lado, que temos que ter “doidões” que reescrevam bíblias. Penso como Ruben Alves que não se deve dar maior importância a bíblia que a de um poema cifrado para uma leitura pormenorizada e silenciosa das entrelinhas. A bíblia, em suma, não deve ser um manual de instruções. Façam dela, mais que qualquer coisa, um poema para suas vidas, sem intervenção de um ou de outro; um dirigista desses que tende a moldar a sociedade mais que dar-lhe o sabor da liberdade de sentidos e rituais.

O irônico é que há uma contenda entre os doidões de griffe e uns extemporâneos doidões de vitrine. É que de repente pessoas normais que não conseguem sair um milímetro de suas comportadíssimas posições sociais se acham, de repente, herdeiros da loucura de alguns ídolos, ou ícones da contramaré do conformismo. Só a titulo de exemplo, a minissérie Maysa nos legou um momento desses. Essa figura marcante da musica brasileira não foi, em vida, um dos modelos mais recomendáveis para a moral cristã e burguesa, onde o recato, mesmo fake até a medula, o usufruto e a sanha pelos ganhos dão a tônica das vidas.

Pois bem, a “indigesta” artista e os seus comportamentos escadalosos pelo lado esnobe e até, para os normais, amorais, acabou por inspirar um monte de gente que, de uma hora para outra, achou glamour em viver embriagado, consumindo tabaco, botando o nariz a postos para o que vicia e, ainda, desejando intensamente outros corpos, se é que você me entende. Coitados. Muitos equivocados, que não conseguem exercer seu naco de loucura sem uma base boa que os acolha (um braço do bom deus, uma conta bancária ou uma família aparentemente bem constituída) caso aconteça algo de errado, ou a covardia os abrace em plena passagem do cordão sobre o abismo.

Ser doidão é lançar-se no espaço. Caminhar sobre nuvens, sem ligar muito para sua contituição: fluidas e andantes. Belas e inseguras. Nada pra um doidão nato é sólido. A sociedade, seus glamours e glacês são construções acachapantes e breguíssimas por sinal. Estruturas de controle, de castração, de doma mesmo.

O doidão é ao mesmo tempo belo e maldito, como diria Lobão. É ser o equilibrista, sabendo que a rede lá em baixo é frágil, velha, puída. Algumas vezes, nem existe, noutras é virtual. É experimentar a cada passo a insustentabilidade de ser, de existir, de tentar ir além. Além aqui quer dizer lugar nenhum ou iluminação, você escolhe.

Sexualidade incontida, alcoolismo e outros baratos afins, talento para a criação e para afronta, a alegria e a dor não combinam com quem insiste mediocremente a viver todos os dias de uma vida em branquíssimas e sólidas nuvens.

Chegamos ao ponto em que temos que concordar. O mundo admira os loucos, os exagerados, os excêntricos, mas os vigia, os teme, não os quer por perto. Nos primeiros sinais de decadência real daqueles, de uma queda iminente, seus fãs se riem. Se lhes estendem a mão ou mandam um sermão, religioso, social ou de bons costumes não é pra lhes valorizar os feitos. São auras postas sobre a cabeça, como uma perfuratriz inseminadora de bons e aceitáveis, diríamos também, comportadíssimos costumes.

Na realidade, o mundo não queria Maysa. Era meio ninfo e apreciava umas boas doses. Não amava Cazuza e Renato Russo. Recriminava-os em suas preferências sexuais ecléticas. Não idolatrava James Dean. Pernicioso, representava o lado rebelde de uma juventude.

No fundo no fundo, havia amor, amor às figuras, aos mitos, mas nem aí pras pessoas; para profundidade dos seres, além da exterioridade espalhafatosa. Devoravam de todos o talento, sem entender-lhes o sentido social de sua passagem. Temiam o Lobão doidão e o João Gordo boquirroto. Mais confortável é vê-los MTVaícos ou Legendários. Melhor é tê-los todos enjaulados, comportados ou, simplesmente, mortos. Melhor ficar apenas com a voz da Amy e enterrar sua figura esquelética, pro mundinho seguir quadradinho, comportado e insosso.

Aos que se foram, cabe reconhecer, que a presença não era benquista, convenhamos. Nem pelos que beberam de suas músicas, de suas representações, nem os que compartilharam de leitos, pratos, espelhos e lâminas. Vê-los e admirá-los na telinha, glamourizados ou mumificados, é muito fácil, confortável. Não deixa marcas na pele, secreções na camarinha, nem compromete o hipócrita convívio social. Durmam em paz ancestrais de nossa loucura sã. Viva a doideira fundamental.

por Edson de França

Cigarras da Praia

Os rapazes do extinto humorístico global Casseta e Planeta cunharam uma piada sobre o assédio dos cantadores de viola que “atormentam” a vida de turistas e nativos que curtem os bares da orla. Na realidade, como o humor em sua cerne deve servir fundamentalmente para a crítica social, política e de costumes, a piada em foco deve ter um leitura bem mais ampla do que o simples riso passageiro diante das constatações óbvias. Os cantadores de viola - sobretudo os que dão seu expediente nas praias - fazem parte, atualmente, de um estrato social segregado e servem como exemplo da extensão da miséria econômica e cultural que impera no Brasil.

Sente-se em um bar em qualquer lugar desses brasis, que logo serás assediado por um exército composto de miseráveis. São meninos de rua desnudos e viciados, pequenos trabalhadores, boêmios precoces consumindo álcool e cigarros, menininhas de olhares lânguidos e famélicos, mulheres-meninas andrajosas com recém-nascidos remelentos no colo, bêbados, loucos e doidões pedintes de centavos e pingas, vendedores de rede, miçangas, bugingangas, quinquilharias e pingentes hippies.

Enfim, toda uma fauna de excluídos e “alternativos” que encontramos dos litorais
aos sertões deste país. Cidadãos de segunda, de terceira ou, sabe lá Deus, de que classe.

Junto a esses, os cantadores de viola, compõem um capítulo a parte. Eles não pedem simplesmente. Eles vendem arte. Talvez não à altura da qualidade e pureza que caracteriza o gênero e que a história nos relata. Mas, a seu modo, mantêm a tradição. Insistem, às duras penas, em permanecer tecendo versos para quem quiser (ou não) ouvi-los. Pululam nos bares buscando tão somente da boa vontade de quem quiser ouvi-los, aquele quinhão que os ajudará a manter a família e a inspiração.

Chova, faça sol ou chuva, lá estão eles, cantando tal qual as cigarras da fábula, enquanto as “formigas” roçadeiras labutam, ganham e gastam seus dinheiros, se divertem, se embriagam. Só que, ao contrário da fábula, as formigas não largam de seu labor um instante para dirigir a palavra, ou no mínimo, os ouvidos para as cigarras. Ali o contrato é econômico, um busca a sobrevivência, o outro... Alguns ouvintes chegam até a ceder alguma mixaria, com ares de desdém, apenas para livrar-se mais rápido daquele incômodo.

Os versejadores, espécie em rápido processo de extinção, viraram mendicantes do verso enfrentando um amplo espaço - este sim em processo crescente de expansão - de incompreensão. Sua musicalidade cabocla ainda tem que enfrentar os superpotentes sons de bares e automóveis envenenados tocando a última pérola musical de um grupo qualquer, batizado com um nome composto, geralmente, de harmonia incongruente. São vozes destoantes - para alguns, irritantes - diante de um mundo que sugere não querer ouvi-los mais. Viraram “praga”, simplesmente cigarras de praia em confronto com um mundo apoético, competitivo, em que o canto ancestral
destoa da racionalidade contemporânea. São sobreviventes atuando no amplo palco da indiferença.

Memórias dos Elementos


Memória das águas. Esculturas de pedras. Dizem os especialistas que as regiões desérticas ou de clima semi-áridos, um dia já foram mar. Foram assim por milhões de anos até que o refluxo das águas acomodou a geografia terrena à atual distribuição topográfica do planeta. Litorais, brejos, cariris, sertões, desertos. Uma impressionante gradação climática, ao sabor das mais abundantes as mais homeopáticas dosagens de água. Cada qual com sua constituição própria, onde se sobressaem as mais variadas formas e texturas de relevo.

Observando com olhos de criança a exuberante composição do planeta pode-se vislumbrar os mais controversos fenômenos. Entre a fauna animada e os elementos inanimados existe uma vida dinâmica, uma relação de observação passiva e, às vezes, invasiva, imitativa. Mas não é só. Entre os elementos da natureza, sejam inertes, voláteis ou móveis, também havia de existir uma relação de exibicionismo, cada qual em sua particularidade que dá cores próprias ao seu ritual de representações. Paremos, então, antes que tarde seja, para ler o discurso imagético de pedras e nuvens.

As nuvens, vagando errantes por todo o globo, guardam memórias, figuras do mundo e as vão moldando, criando representações. Ícones multiformes Reproduzindo-as, sob a força dos ventos que as transportam, no cenário dos céus, seguem compondo imagens. Os olhos despreocupados, também errantes, observadores e sonhadores dos seres infantis as identificam e, também vão incorporando ao cabedal de memórias. São parceiros da viagem lúdica.Parece que um ser supremo e moleque, como o menino Cristo de Fernando Pessoa, brinca com a ingenuidade dos elementos.

As nuvens representam, em seu bailado, imagens de toda terra. Aqui um rosto humano de perfil, acolá um elefante estilizado e um pássaro diáfano que te persegue, um rebanho de cordeirinhos, logo ali, um cavalo alado, um sorriso de criança, uma montanha de algodão-doce. Há até quem tenha conseguido ver um rebanho desgarrado na pradaria, e vaqueiros como loucos a gritar, galopando para o além. Esse é élan da natureza das nuvens mutantes, errantes, nômades. Já as pedras... As pedras dos sertões. Impávidas, colossais, titânicas. Qual inertes guardiões dos séculos, solenes em seu mutismo mostram também suas memórias.

Vão recortando sobre a longitude dos horizontes, toscas figuras. Belas, na grande maioria das vezes, estranhas e soturnas, umas tantas outras, constituindo, à sua maneira, vastissínmo pasto para a imaginação. Lá, com doses de imaginação, é claro, vê-se leões marinhos, focas maternais e seus filhotes, um crocodilo pétreo que descansa a beira de um charco; todos em reverência ao confins infinitos do cosmo. A falível e passageira constituição do homem entra em contato sobre-humano com a fugaz representação das nuvens e com a dura constituição milenar das pedras.

Distante do mar, as pedras do sertão, em seu negrume férreo, vão estranhamente antropomorfoseando-se em criaturas aquáticas. Não lembram imagens dos desertos, dos animais terrestres seus pares que, sendo da natureza de seu habitat, lhes seriam bem mais peculiares. Têm a memória das águas que um dia banharam-lhe o dorso e, numa mirada atenta, fervorosa e enigmática dos céus, ficam em tempo de espera pelas eternas ondas que fecundaram-lhes de lembranças.


Bem


Diga-me sem pensar muito: quantas pessoas você, amigo leitor, conhece a quem poderia, sem ressalvas, dar um titulo de "boa gente". Gente boa, de verdade. Imagino-o agora contando nos dedos apreensivo para ver se entre os seus chegados existe um componente dessa espécie em acelerado processo de extinção. Daqui, do meu posto, já dou a pena capital: dificilmente (senão impossivelmente) encontrarás representantes legítimos dessa ave rara.

Terás, entre teus conhecidos, um ou outro Don Quixote desgarrado da esfacelada legião do bem, mas o grosso das pessoas que você conhece simplesmente não passariam no mais ridículo teste de bondade. Muitas delas, mesmo travestidas de representantes das hordas do senhor, não passam de insignes covardes que, habilmente, utilizam-se da fantasia eclesial para ludibriar os incautos com o seu potencial angelical, enquanto morrem de medo do clamor divino e promovem um inferninho particular na vida dos semelhantes. Tudo, claro, sob a capa protetora do discurso atribuído a Deus e ensaiado à exaustão nos salões dominicais.

Convenhamos que o bem não é tarefa fácil de ser exercida ou praticada. O receio das pessoas em promovê-lo parte, sobretudo, da demarcação de espaços; instituição por demais arraigada nesses nossos tempos. Quinhões esses motivados pela guerra da sobrevivência que, forçosamente, leva o indivíduo a cercar-se de cuidados especiais. Em primeiro plano, ser amante em tempo integral da infalibilidade e da competência pessoal. Do que faz questão, por dever de ofício ascensional, de fazer propaganda e promover ações de marketing; na maior parte das vezes sobrepondo-se, ou melhor, achincalhando a quem, em seu duvidoso senso de apreciação, não dispõe das qualidades por si apreciadas.

Ao mesmo tempo, alimentar o medo terrível de ser confundido, em seu intuito rumo ao bem, com as artes da ingenuidade e da fraqueza, quando não a vir ostentar o singelo rótulo de "besta", o que não condiz com o perfil exigido para os "homens" do presente. Lembre-se, estimado leitor, que no reino dos fortes não existe lugar para o bem, e também não é exatamente algo que vá se aprender em algum lugar. O bem é muito apreciado, admirado e usufruído, mas muito difícil de ser cultivado e exercido. Exige desprendimento, exercício constante de tolerância ou, numa palavra, ser intrinsecamente bom.

Se o indivíduo não traz em si, naturalmente, esse gene "defeituoso" - já que a regra geral é oprimí-lo sob as regras do canibalismo social - que impele compulsivamente o ser humano a cometer atos benéficos à cidadania, aos bons costumes, ao cultivo das regras de convivência mais básicas e, sobretudo, ao respeito extremado à vida e ao semelhante não há (ou não existe ainda) instituição reformadora (sejam escolas, quartéis ou igrejas) que possam desenvolvê-lo. E essa é uma obra ainda a se fazer, caro leitor.

Poema de passáro


Mais uma vez penduramos na varanda de casa um depósito de água açucarada; um arranjo de flores artificiais para atrair beija-flores. E eles vieram. Pelo menos, reconhecidamente, uns dois. Vieram e tornaram-se fiéis visitantes diários, exigindo das pessoas da casa o hábito, também fiel ao extremo, de manter o repositório de garapa sempre cheio. Sua presença natural, entre assustadiça e indiferente, ante o homem que por trás da tela do computador assiste ao seu bailado leve revela, mesmo a custa da artificialidade das flores de plástico, a convivência pacífica entre o homem, espantalho por natureza, e o pássaro.

A fidelidade dos beija-flores é-nos consentida tão somente pela religiosidade de sua presença, atraídos que são pela fonte doce das flores cotidianamente reposta por mãos zelosas. Pela simples manutenção desse acordo silencioso, tácito. Os seus companheiros (quase me esquecia de dizer que o arranjo de flores também atraiu pássaros de outras espécies), no entanto, além de colorirem o ambiente, ainda acham por bem trinar em frente a janela ou até mesmo dentro de casa. Despertando atenção sobretudo pela algaravia de suas tentativas de agarrar-se a flor suspensa.

É que os beija-flores, graças às suas habilidades aéreas inatas, conseguem abiscoitar as gotículas açucaradas com relativa facilidade. Seus pares, não. Irrequietos, pousando aqui ali, se equilibrando nos fios do varal de roupas, invadindo a casa aos bandos eles vão fazendo par com os beija-flores, sem disputa a primeira vista, em busca do néctar da amizade.

Dia desses como atrasássemos a reposição de água do reservatório, alguns afoitos passarinhos foram flagrados bicando as lâmpadas da sala em busca do repasto açucarado diário.

Duvido haver espetáculo mais belo que aquele quadro dinâmico de onde a vida transborda e penetra o olho enlevado e impassível do homem que o frui. Nada o supera. Mesmo que a flor seja artificial, o açúcar industrial e, nem ao menos, dimensionarmos que efeitos o composto de água e açúcar possa ter no metabolismo dos pássaros. (Alô, zoólogos, se tiverem uma resposta, qualquer senão, liguem ao cronista que só entende de juntar palavras e observar a natureza).

Frente a isso, com impassividade do espantalho escrevente, o cronista digere as notícias da semana: "Aves de arribação em processo de extinção" "Blitz do Ibama e da Polícia Florestal apreendem pássaros e animais silvestres em feiras livres". Faltam-nos as palavras. Outros homens-espantalhos, esses móveis e sanguinários, provocam a notícias.

Estão nas primeiras páginas dos jornais expondo sua obra. Outros, sob a mentalidade escravista e possessiva, querem capturar a beleza, querem auferir ganhos com a vida silvestre fragilizada. Práticas antagônicas que põe de lados opostos necessidades, apreciações e mentalidades. Expõem cruamente a diversidade de faces da natureza humana.

Pássaros. Prefiro-os livres. Assim como aprendi com Bashô, o poeta-rônin, a sublime e poética lição para o usufruto das flores no dia de finados. "Do jeito que estão", ou seja, majestosamente libertas e agarradas ao solo da boa terra, no campo, "devem ser oferecidas aos mortos". Os pássaros, cumprindo sua natureza irrequieta e errante, devem, tão somente livres, compor a elegia da liberdade.

Mãos de Jardineiro



Seu Otacílio chegou de mansinho, calado. Instalou-se no apartamento cento e três, térreo do Bloco dois e, provavelmente, dada à natureza bucólica e aos pendores agrícolas dos oriundos da roça, não agradou-se do cenário a sua volta. Árvores mal podadas, escassez de flores, aridez no solo dos jardins, ervas daninhas tão ou mais daninhas que a própria acepção da palavra. E tinha ainda pior: pessoas insensibilizadas, totalmente enfronhadas na quotidianidade, pisoteavam com desdém os menores e mais frágeis rebentos vegetais resistentes. Inclusive, as ervas daninhas.

Em um bloco de dezesseis unidades, habitados por famílias de médio porte, pessoas solitárias, adultos, crianças, velhos. Toda uma gama de gentes, convivendo. Talvez por uma dessas coincidências do destino (quem sabe muito mais escolha particularmente pessoal) calhou de seu Otacílio vir lá das bandas de Solânea ocupar um apê perto do chão, da terra, seu elemento de inspiração e diálogo permanente.

Paisagem concreta por demais. Blocos, blocos, blocos. 24 ao todo. Gaiolas para humanos. Todas sob a inspiração verticalizadora de nossa época, carente de terrenos e forjadora de novíssimos tipos de convivência e, ainda, insustentáveis políticas hodiernas de vizinhança. Restos de construção por toda parte. Cimento, barro, rebocal, cacos de madeira, tijolos. Metralhas. Restos de massa pronta e não utilizada que endureciam o chão, por onde escorreram os suores dos muitos Zé Piões que ergueram a micro-cidade Água Azul. Seu Otacílio chegou como proprietário de um lote enclausurado na disposição racional e limitadora do bloco, mas com alma, jeito e rusticidade típica dos serventes e construtores. Dos jardineiros, dos agricultores. Das pessoas cujo contato com a terra modifica a constituição física, a alma, a sensibilidade, o olhar. Olhou em volta, demarcou seu território. Pôs seu pendor laborioso a serviço de uma causa.

Começou a agir pelos fundos do Bloco, bem próximo a calçada de sua morada. Pés de planta brotaram. O verde inquietante instalou-se ousadamente sobre o terreno estéril. Seu Otacilio começou também a dialogar com as árvores, com as poucas espécimes vegetais resistentes. Quis saber de suas vidas, reconhecer-lhes as necessidades.

Com o pé de cajueiro - nossa cria e do qual não detectávamos, por pura falta de investigação e sensibilidade, o estado de prostração e animosidade que o abatia - estabeleceu belo diálogo e integração.

Perguntando-lhe dos motivos de sua inanição, executou uma anamnese vegetal e quase, humanamente, chorou ao descobrir que havia uma motivação exacerbadamente humana para o fenômeno: uma criança, provavelmente por brincadeira ou puro instinto predador de sua raça, golpeara o jovem e indefeso espécime vegetal. O golpe comprometera seu desenvolvimento, atirando-o num longo período de inatividade para cicatrização e convalescença. Otacílio assimilou as dores, agiu como curandeiro, cuidou - proteções extremas, forquilhas para erguer-lhes o porte, estrume na base, água todos os dias - rezou diligentemente pela sua recuperação.

Depois, mirou o jardim. Adquiriu plantas, plantou-as. Aproveitou algumas mal cuidadas que algum morador diligente havia plantado, mas jamais cuidado. Onde a terra era endurecida pelo cimento, amaciou-a, tornou-a fértil, semeou-a com plantinhas, flores. Em um episódio não muito raro na vizinhança, a menina-foguete do bloco ao lado despetalou, por pura pirraça, alguns das caras flores de Seu Otacílio. Prosseguiu, desfolhou outras tantas plantas. Otacílio reclamou, com razão. A partir desse dia, os pais da endiabrada e destruidora criatura, passaram a chamar o jardim de "mato", num muxoxo de repulsa e incompreensão. Tudo bem, assim caminha a humanidade, onde não tem-se pulso e brios para ensinar os filhos os verdadeiros valores da vida.

Seu Otacílio, cidadão brasileiro, é ainda portador de uma certa capacidade ancestral de conceder e preservar a vida que nosotros, cidadãos do novo milênio, vamos perdendo pouco a pouco. Mesmo sendo também dado às artes da construção como demonstrou depois, seu Otacílio, mantém a capacidade de criar, fazendo jarros que servem como berços e moradas para suas amadas plantas. Lidando, também, com materiais pesados e agressivos à natureza, mesmo assim, ele consegue consociá-las harmoniosamente com as frágeis plantas do jardim.

Pseudos-magos

Pobres de nós. Nós, pobres mortais, sem poderes mágicos, sextos sentidos ou pendores para os meandros exotéricos e esótericos. Nós que temos que conviver com a leva de magos, alternativos e pitonisas, que logram saber tudo sobre os baratos orientais, ocidentais, indígenas, negros, aborígenes e toda gama de conhecimentos mágicos, adivinhatórios, em contato superior com o divino.

Xamãs de toda ordem nos esperam em cada esquina, sem saber, muitas vezes, que andam na contramão de um tempo louco. Acham-se doutorados, escolados e permanentemente antenados com poderes capazes de esmiuçar a região aurática das pessoas em mínimos segundos. E o que é pior. Capazes de condensá-las em poucas, vazias e, principalmente, equivocadas palavras. Pobres de nós que, desavisadamente, acabamos sendo pacientes-alvo das imprecações dessas criaturas.

Convenhamos que, a princípio, não pode haver mal algum, em escutar uma pessoa ponderada, cujo esforço em entender o ser humano os leva a ter cuidados especiais, tanto no estudo quanto nas palavras que emprega. Sempre deixando margem para que o consulente entenda a maleabilidade dos seus conceitos que não podem, sob hipótese alguma, ser definitivos.

O mal é quando não nota-se nenhum traço de humildade nos chatos magos, nem muito menos um bom conhecimento da arte que eles acreditam dominar e, para o ridículo extremo, fazem questão de tornar público. Falta-lhes a noção de falibilidade.

A princípio recomendaria aos oráculos da nova era uma ida urgente aos dicionários - do velho Aurélio aos específicos de mitologia e magia - para afiar um pouco o cabedal de seus presságios.

Para ser só um pouquinho radical, os mandaria à paz e a sapiência que os proporcionaria, certamente, a leitura de um clássico da nossa filosofia. Ou até a um maciço, desde que verdadeiro, tratado de magia. Mas, infelizmente, como a preguiça mental aflige a grande maioria dos neo-bruxos, eles contentam-se com alguns opúsculos vendidos em qualquer banca de jornal. E, sei que eles não tem tempo suficiente para deleitar-se com qualquer leitura séria, muito mais fácil digerir qualquer indício de conhecimento e sair por aí enchendo a paciência das pessoas, dando novos nomes aos deuses e misturando panteísmo com parasitismo, sem nenhum constrangimento.

Eles vêm, é bem verdade, ao encontro dos anseios de uma gente desesperada que tenta agarrar-se a qualquer palavra que os conforte, dê alguma luz, os encaminhe aos caminhos da realização pessoal, espiritual prática e, principalmente, material, já que ninguém é de ferro.

As condições de sobrevivência e competição no mundo atual fragilizou as pessoas. Se os tempos são de incerteza, os homens são de vidro. Tão vítreos, quebráveis e transparentes que constituem-se num campo vasto para a imersão dos magos. Mas, que eles não se enganem, os seres não são tão cristalinos, a ponto de poderem ter desvendados todos os seus mistérios, com olhares e intuições superficiais, baseados em suposições do senso comum mais ralé.

Se é verdade que existem mais mistérios entre o céu e a terra do que possa supor nossa vã filosofia, concordemos que o homem está em meio a um turbilhão de influências energéticas. Portanto não pode ser presumido nem elucidado, em sua complexidade, por um mago de última hora, munido de toques relâmpagos retirados de leituras superficiais.

Os pseudo-magos da era da informática não ajudam a convivência. Não elevam o nível espiritual do planeta. Melhor, com seu estilo fantasioso, podem muito mais gerar distanciamento e desunião entre as pessoas. Num estágio mais avançado e pernicioso a apatia, a falsa esperança e a alienação. Imediatamente, a chatice e a intromissão, sem ser requisitada, no sagrado direito do ser, por si só, conhecer-se e traçar seu caminho, sem querer ter nenhuma idéia preconcebida - saída da pressuposição de terceiros, o que (cá prá nós!) beira a praga - sobre seu futuro.

Edson de França, Jornalista - João Pessoa/PB

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Onde jazz a utopia

A pérola retórica “jazer em berço esplêndido”, que parece inspirado no verso do hino nacional “deitado eternamente em berço esplêndido”, tem tudo a ver conosco. Somos o país que jaz em berço esplêndido. Jazer aqui no sentido não apenas de estar deitado, mas sim de estar inanimado ou, no máximo, comportando-se como zumbi sagaz. Aparentemente vivaz, mas morto por dentro. Falta-lhe alma, gênio, coordenação motora e direcionamento.

Não é preciso ser exageradamente iluminista para perceber que um pouco de razão aplicada à ação humana influi decididamente na organização da sociedade e, sobretudo, na definição dos papéis sociais e responsabilidades individuais. Um país não é apenas uma porção territorial ocupada por indivíduos; mas fundamentalmente esses indivíduos em ação é que, em ultima instância, determinam o estatuto de pais, nação ou qualquer outro qualificativo que se dê a um pedaço de terra com meia dúzia de individualidades forjando convivências.

As noções de pertencimento e identidade, portanto, não fazem sentido se não emanam verdadeiramente de uma consciência plena do ser (individuo, pessoa) como construtor, mesmo que minoritário, do ideal de nação.

O que acontece conosco é emblemático. Somos “conscientes” a décadas do nosso baixo nível de escolaridade, por exemplo. Baixo nível de escolaridade redunda fatalmente em dificuldade em lidar (absorver, digerir, dar sentido, criar espírito critico) com os conhecimentos mais básicos. Mas, ironicamente, não fomos ainda capazes de construir um sistema escolar inclusivo e capaz de reverter esse quadro. Nosso sistema é excludente e, muitas vezes, inócuo. Temos gênios que não conseguem progredir nos estudos por n motivos e analfabetos nas universidades. Educação e conhecimento por aqui ganham status de projeção social no pior sentido.

Por outro lado, elegemos como instancia mais avançada de informação popular – aqui como criador de um determinado tipo de conhecimento que, no nosso caso, se tornou hegemônico – a mídia. Os últimos 40, 50 anos foram marcados pela polarização entre os meios de comunicação e a combalida escola. Ao passo que esta ultima via esvaziados seu sentido e recursos, aquela outra ganhava espaços com uma pedagogia muito mais atrativa (linguagem informal, nenhuma rigorosidade e os apelos fáceis da emocionalidade dentre outros). Tudo isso, claro, sem a oposição da mentalidade crítica que delimitasse espaços e exigisse incrementos qualitativos.

Por fraturas e contradições no nosso processo de escolarização é que o nível intelectual que andamos por ai usando, infelizmente, é bem mediano mesmo; daquele que justifica e, o pior, legitima o cardápio da mídia que é oferecido como base da informação popular.

Se alguma coisa é definida com o rotulo de “o povo gosta” pode contar que irá às ruas, invadirá as bancas, adentrará a sala de estar sem pedir licença. Mesmo efêmera, a coisa fincará raízes. A mente do povo estará plugada e o papo cabeça de vento girará em torno de alguns sucessos questionáveis. Não duvido nada que o anúncio de separação da dupla Zezé e Luciano tenha rendido mais preocupação e análise por parte de doutos e rudes do que as sucessivas quedas ministeriais do governo de D. Dilma. Estes últimos quando rendem comentários quase sempre são da base achista dos desentendidos, dos pigmeus do Boulevard e dos oposicionistas flutuantes.

Por aqui não se define, em nível de informação, o que é necessário, preciso, mas apenas o que cobre o caráter especulativo, facinho, digerível por osmose e, sobretudo, o que cabe dentro do desejo imediato de consumo mais ralés.

Penso que mesmo contra a maré cada editor de um jornal popularesco especializado em nos três b’s (bunda, bola e bala) devia montar na credibilidade adquirida e criar meios impressos que tocassem pontos nodais da vida moderna (economia, mundo corporativo, sustentabilidade, tecnologia, comportamentos saudáveis, direitos e deveres etc), mesmo que em linguagem popular, já que essa é a única que nós medianamente conseguimos entender. Penso (utopicamente, claro) que estaríamos contribuindo para um país e um mundo melhores. Mais rico de informações que, acima do mais do mesmo do mundo das celebridades improdutivas, cairia como alimento sustentador para os construtores cotidianos do país.

Enquanto nada disso ocorre – talvez, convenhamos, pela nossa incapacidade técnica, intelectual e insensibilidade social e futurista, ou mais, por uma indolência natural pelo que é passível de ser compartilhado -, vamos tocando improvisadamente com reco-recos, tamborins um réquiem para aquele que jaz. Um arremedo de jazz. Quem dera que o jaz que nos cabe fosse grafado com dois Z e que nossos improvisos rendessem, ao menos, melodias estimulantes para espíritos inquietos.

por Edson de França