É preciso ter “doidões” passeando pelo cosmo, errantes como cometas. Só eles reúnem condições de dar assombros éticos, estéticos e comportamentais na vidinha limitada dos humanos comuns. Não se pode precisar suas trajetórias e humores. Apenas, cumprindo deus sabe lá que estigmas, emprestam de bom grado certa instabilidade moral para o mundo. Mesmo que momentânea e, para o bem dos puritanos, não influenciadora de massas. Graciosa e acidamente, provocam rompantes de loucos suicidas, socialmente falando, somente.
Normalmente, o mortal que se preza, por pura consciência, até mesmo por ser ridiculamente mortal, é contido. De forma alguma se permite exageros. É erroneamente racional. Vai à Igreja, religiosa e profanamente, ou simplesmente agarra-se a uma Holy Bible. Que esta seja nova ou rota não importa, uma vez que, pouquíssimas vezes, foi lida de forma autônoma, isenta e natural como só os loucos são capazes de lê-la. Toda leitura sagrada foi ditada por um mentor de intenções duvidosas para uma mente distorcida e atolada até os bagos no convencionalismo.
O mortal que se preza freqüenta o bar e toma todas, dá um “tapa” nunzinho de vez em quando só pra distrair, faz amores ilegítimos para puro deleite egoísta da carne, da “machice” ou da feminilidade liberada e “socialmente” condenada. Faz parte da ritualidade social. Depois se resigna, reza, implora, se martiriza e, de volta a rotina e à paz do lar, agarra um deus desocupado e faz cultos à plena realização terrena. Claro, sempre de olho naquele terreninho celeste pago com debulhares intensos do terço.
Penso, por outro lado, que temos que ter “doidões” que reescrevam bíblias. Penso como Ruben Alves que não se deve dar maior importância a bíblia que a de um poema cifrado para uma leitura pormenorizada e silenciosa das entrelinhas. A bíblia, em suma, não deve ser um manual de instruções. Façam dela, mais que qualquer coisa, um poema para suas vidas, sem intervenção de um ou de outro; um dirigista desses que tende a moldar a sociedade mais que dar-lhe o sabor da liberdade de sentidos e rituais.
O irônico é que há uma contenda entre os doidões de griffe e uns extemporâneos doidões de vitrine. É que de repente pessoas normais que não conseguem sair um milímetro de suas comportadíssimas posições sociais se acham, de repente, herdeiros da loucura de alguns ídolos, ou ícones da contramaré do conformismo. Só a titulo de exemplo, a minissérie Maysa nos legou um momento desses. Essa figura marcante da musica brasileira não foi, em vida, um dos modelos mais recomendáveis para a moral cristã e burguesa, onde o recato, mesmo fake até a medula, o usufruto e a sanha pelos ganhos dão a tônica das vidas.
Pois bem, a “indigesta” artista e os seus comportamentos escadalosos pelo lado esnobe e até, para os normais, amorais, acabou por inspirar um monte de gente que, de uma hora para outra, achou glamour em viver embriagado, consumindo tabaco, botando o nariz a postos para o que vicia e, ainda, desejando intensamente outros corpos, se é que você me entende. Coitados. Muitos equivocados, que não conseguem exercer seu naco de loucura sem uma base boa que os acolha (um braço do bom deus, uma conta bancária ou uma família aparentemente bem constituída) caso aconteça algo de errado, ou a covardia os abrace em plena passagem do cordão sobre o abismo.
Ser doidão é lançar-se no espaço. Caminhar sobre nuvens, sem ligar muito para sua contituição: fluidas e andantes. Belas e inseguras. Nada pra um doidão nato é sólido. A sociedade, seus glamours e glacês são construções acachapantes e breguíssimas por sinal. Estruturas de controle, de castração, de doma mesmo.
O doidão é ao mesmo tempo belo e maldito, como diria Lobão. É ser o equilibrista, sabendo que a rede lá em baixo é frágil, velha, puída. Algumas vezes, nem existe, noutras é virtual. É experimentar a cada passo a insustentabilidade de ser, de existir, de tentar ir além. Além aqui quer dizer lugar nenhum ou iluminação, você escolhe.
Sexualidade incontida, alcoolismo e outros baratos afins, talento para a criação e para afronta, a alegria e a dor não combinam com quem insiste mediocremente a viver todos os dias de uma vida em branquíssimas e sólidas nuvens.
Chegamos ao ponto em que temos que concordar. O mundo admira os loucos, os exagerados, os excêntricos, mas os vigia, os teme, não os quer por perto. Nos primeiros sinais de decadência real daqueles, de uma queda iminente, seus fãs se riem. Se lhes estendem a mão ou mandam um sermão, religioso, social ou de bons costumes não é pra lhes valorizar os feitos. São auras postas sobre a cabeça, como uma perfuratriz inseminadora de bons e aceitáveis, diríamos também, comportadíssimos costumes.
Na realidade, o mundo não queria Maysa. Era meio ninfo e apreciava umas boas doses. Não amava Cazuza e Renato Russo. Recriminava-os em suas preferências sexuais ecléticas. Não idolatrava James Dean. Pernicioso, representava o lado rebelde de uma juventude.
No fundo no fundo, havia amor, amor às figuras, aos mitos, mas nem aí pras pessoas; para profundidade dos seres, além da exterioridade espalhafatosa. Devoravam de todos o talento, sem entender-lhes o sentido social de sua passagem. Temiam o Lobão doidão e o João Gordo boquirroto. Mais confortável é vê-los MTVaícos ou Legendários. Melhor é tê-los todos enjaulados, comportados ou, simplesmente, mortos. Melhor ficar apenas com a voz da Amy e enterrar sua figura esquelética, pro mundinho seguir quadradinho, comportado e insosso.
Aos que se foram, cabe reconhecer, que a presença não era benquista, convenhamos. Nem pelos que beberam de suas músicas, de suas representações, nem os que compartilharam de leitos, pratos, espelhos e lâminas. Vê-los e admirá-los na telinha, glamourizados ou mumificados, é muito fácil, confortável. Não deixa marcas na pele, secreções na camarinha, nem compromete o hipócrita convívio social. Durmam em paz ancestrais de nossa loucura sã. Viva a doideira fundamental.
por Edson de França